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Arte e física no museu de ciências

Sergio de Régules
Tradução: Rodrigo Cunha

Madame Verdurin, personagem do romance Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, vangloriava-se de ser uma pessoa sensível à arte. Nos saraus que oferecia em sua casa, desfrutava-se de música e de pintura. Um jovem pianista, protegido de Madame Verdurin, deleitava os convidados com adaptações ao piano de obras de Wagner. Quando o jovem pianista tocava, o suposto êxtase provocava em Madame Verdurin uma enxaqueca que durava até o dia seguinte.

Proust usa Madame Verdurin para ridicularizar as pessoas presunçosas que pretendem ter sensibilidade artística. Madame Verdurin pôde impressionar seus convidados, fingindo-se extasiada pela música e pela pintura, e Proust pôde criar um personagem inesquecível, porque o gosto pela arte, em geral, é bem visto. Ninguém estranha que uma dama da sociedade tenha gostos artísticos.

Agora imaginem uma Madame Verdurin distinta, que procura impressionar por sua sensibilidade científica. O primeiro parágrafo deste artigo poderia ser assim: “Madame Verdurin vangloriava-se de ser uma pessoa sensível à física. Em seus saraus, desfrutava-se da mecânica quântica e da gravitação. Um jovem físico, seu protegido deste ano, deleitava os convidados resolvendo a equação de Schrödinger para átomos de hidrogênio. Quando o jovem físico escrevia a função geradora dos polinômios associados de Laguerre, brotavam lágrimas em Madame Verdurin e ela tinha que ir para a cama para se recompor da emoção”. Que tal? Absurdo, não? Por que soa impossível essa Madame Verdurin? Porque todo mundo desfruta de arte, mas quase ninguém gosta de física.

Não obstante, nós, adeptos da física, sabemos que esta não carece de qualidades estéticas que poderiam deleitar Madame Verdurin se a ensinarmos a apreciá-las (ou, no caso dessa dama, a fingir apreciá-las). Não me refiro à física que se aprende na escola de ensino médio. As lições escolares de física são, em geral, um compêndio de “fórmulas” que se tem que aprender de memória, sem entender, como se fossem encantamentos. Por isso, ninguém gosta da física. Mas a física de verdade não está nos resultados que essas fórmulas expressam, e sim na estratégia que empregam os cientistas para obtê-los. Mais que uma lista de resultados, a física é uma maneira de pensar. E essa maneira de pensar não consiste somente em fazer experimentos e anotar dados. Também consiste em ordenar esses dados e encontrar neles padrões, repetições, leitmotivs que revelem uma unidade oculta em fenômenos que, à primeira vista, parecem distintos. Esses padrões são o que chamamos leis da natureza, e para encontrá-los, o físico aplica aos dados critérios de simplificação, simetria, elegância. Ao construir teorias, o físico emprega critérios estéticos que tornam a física semelhante à arte – ou pelo menos, a certos tipos de arte.

Albert Einstein, a quem se celebra neste Ano Internacional da Física, era um experto esteta da ciência. Suas contribuições mais famosas à física não nascem somente da necessidade de explicar resultados de observações experimentais. Também vêm do afã em reduzir ao mínimo o número de princípios fundamentais do toda a física; dito de outra forma, nascem de uma necessidade de unificação e economia. Einstein formulou a teoria especial da relatividade para tornar compatíveis duas grandes teorias físicas do século XIX: a física do movimento e a física da eletricidade e do magnetismo. O conceito de partículas de luz, que ele propôs no mesmo ano que a teoria da relatividade, serviu para unificar os conceitos de onda e partícula, que na física anterior apresentavam “uma profunda distinção formal”. Einstein dedicou os últimos 20 anos de sua vida a procurar encontrar uma teoria que abarcasse a gravitação e as forças eletromagnéticas, outra busca unificadora de motivação estética. Esta busca de unidade tem um paralelismo, por exemplo, na pintura anterior ao impressionismo. O pintor buscava dar realismo ao que pintava usando a técnica da perspectiva. Para isso, primeiramente, escolhia um ponto de fuga. O ponto de fuga, junto com as regras da perspectiva, dá unidade aos elementos da imagem que o pintor representa.

Se a física tem critérios estéticos em comum com a arte (ou pelo menos com alguns tipos de arte), tais critérios poderiam ser usados em museus de ciência para ilustrar a relação entre arte e física. Estamos fazendo isso no Universum, museu de ciências da Universidade Nacional Autônoma do México, onde trabalho. Em uma exposição itinerante que será inaugurada em dezembro de 2005, exploramos as semelhanças que existem entre a construção de uma teoria científica e a de uma obra artística.

A exposição se baseia na idéia de que todos os cérebros humanos – sejam de artistas ou de cientistas – realizam as mesmas funções básicas: encontram padrões na informação dada pelos sentidos, fazem inferências a partir de informação parcial e usam os padrões e inferências para fazer predições acerca do comportamento das coisas que os rodeiam. A ciência poderia nascer da necessidade de encontrar padrões ou leis da natureza para sobreviver, e a arte, de um afã recíproco de formar padrões com o que se observa no mundo exterior e o que se produz na mente.

Ilustrar tudo isso em linguagem museográfica não tem sido fácil, mas creio que temos tido idéias úteis para outros museus de ciência. Para mostrar a capacidade do cérebro de encontrar padrões, usamos projeções de nuvens em movimento e fotografias de montanhas, troncos de árvore e formações de rocha onde se podem encontrar padrões sem que os haja. Ao que parece, o cérebro humano prefere as formas de animais e os rostos. Por isso, os vemos em toda parte, mesmo onde não estão.

Imagens : Reprodução
A famosa “cara de Marte”. O cérebro encontra padrões – especialmente caras – mesmo onde não há.

 

Aqui não há um triângulo branco. O cérebro “lê nas entrelinhas” e completa a informação que falta.

A capacidade de fazer inferências – ou, poderíamos dizer, ler nas entrelinhas – é bem exemplificada pelo triângulo de Kaniza (ver figura). O cérebro completa a informação que falta e nos faz ver um triângulo. O mesmo sucede quando lemos um romance. Se o autor descreve um personagem que caminha cabisbaixo, arrastando os pés, e veste uma jaqueta gasta, não é preciso que nos diga que o personagem sofre misérias. Quando vamos ao cinema, também fazemos inferências (ou lemos nas entrelinhas). Se vemos cenas alternadas de uma moça amarrada aos trilhos do trem e de um cavaleiro que cavalga a todo galope, entendemos, de imediato, que o cavaleiro vai salvar a moça. Em física, lemos nas entrelinhas, por exemplo, quando, ao fazer experimentos, traçamos uma curva contínua que une os pontos que obtivemos nas medições. O cientista e o artista compartilham a satisfação que lhes causa a obra terminada. Deve ser porque nossos cérebros adoram a ordem, tanto a que encontram na natureza como a que eles mesmos criam. Talvez, por isso, sejam tão populares os jogos de construção. O prazer de dar forma é comum ao artista e ao cientista.

O gosto de dar forma. Os jogos de montar e construir são muito populares. Criar formas nos causa satisfação.

 

Um importante jogo de montar: a dupla hélice do DNA, descoberta por Watson e Crick. Uma teoria científica é uma estrutura que serve para interpretar dados da observação.

A exposição do Universum inclui uma mesa de jogos de montar, para que o visitante construa estruturas como o cientista constrói teorias e o artista, peças de arte.

É comum que os museus de ciência interessados em mostrar paralelismos entre arte e ciência recorram às gravuras de Mauritz Escher, tão cheios de significado matemático. Também é usual usar imagens de fractais, que são ciência e são bonitas. Mas a relação entre a arte e a ciência, como vemos, vai além da arte inspirada na ciência e dos resultados científicos com qualidades estéticas visuais. A ciência e a arte compartilham o prazer de criar... e muitos dos métodos que se empregam para criar. Os museus de ciência já estão aproveitando esta convergência. Se conseguirem transmitir a mensagem de que ciência e arte não são tão distintas, Madame Verdurin, e todos os demais, poderão ter uma visão mais completa da cultura e desfrutar mais a vida.

Sergio de Régules é coordenador do Universum, museu de ciências da Universidade Nacional Autônoma do México.

 

 

 


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Atualizado em 10/03/2005

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