A
respeito de revoluções: teoria da relatividade e a história
da ciência
Gildo Magalhães
Em nossas universidades fazem
falta bons cursos de história da física, química e de outras
ciências em geral, para formar os respectivos alunos de graduação.
Longe das construções que se repetem enfadonhamente nos livros-textos,
a história da ciência mais interessante é aquela viva, que
interpreta e merece atenção dos pesquisadores exatamente porque
problematiza os métodos e “fatos”, trazendo reflexões
relevantes para os dias de hoje.
O interesse por parte dos alunos é indicativo
de que há uma enorme demanda reprimida por discussões desse teor
– ou seja, os físicos por exemplo, gostariam de discutir mais os
fundamentos de sua teoria quântica, ou os biólogos gostariam de
debater os conceitos filosóficos, os vínculos políticos
e culturais que se introjetaram na formulação original da seleção
natural ou posteriormente na teoria sintética da evolução.
E se constata, infelizmente, pois é uma reclamação geral,
que esses temas nunca foram apresentados por seus professores como o que são,
isto é, hipóteses com maior ou menor capacidade de responder a
perguntas sobre como é o universo em que estamos vivendo.
São portanto teorias que podem estar respondendo
bem aos testes a que foram submetidas, algumas há anos e outras há
séculos, sem que se possa, porém, garantir que jamais serão
substituídas por outras, que lhes sejam complementares ou que até
sejam no momento consideradas opostas às idéias aceitas pela maioria.
Tais possibilidades não implicam o ceticismo total, ou o desprezo pelas
teorias atuais, pois sabemos que elas constituem um patamar comum para o homem
se relacionar de maneira racional e bem sucedida, com o universo. O que se quer
enfatizar é que não há nem nunca houve verdades absolutas.
Ora, se o conflito é inerente às teorias
científicas, o surgimento de discordâncias internas é uma
das características para se definir o que é ciência. A ciência
se distingue pela generalização do conhecimento, e não
pela particularização, ela é uma tentativa de generalização
historicamente situada, com fatores de sucesso, embora sempre com algumas incompletudes
ou imperfeições. Uma generalização absoluta seria
inconcebível, pois seria a explicação final, o fim da ciência
enquanto uma busca de conhecimento.
O século XVIII testemunhou as revoluções
americana e francesa, enquanto que no século XIX ocorreram, com grande
repercussão, os movimentos populares europeus de 1848 e a Comuna de Paris,
em 1871, em que o proletariado fez ouvir sua voz. Costuma-se referir a esse
período e até o início do século XX, com a revolução
soviética, como uma era de revoluções políticas
e sociais.
Diferentemente das revoluções sociais,
as transformações científicas se dão de forma muito
mais lenta. Embora seja útil desmistificar noções tais
como de “revolução industrial” ou “revolução
científica”, é certo que também nas ciências
houve mudanças notáveis nesse período de mais ou menos
cento e cinqüenta anos a partir da independência dos EUA. Nessa época
ocorreu a renovação da hipótese atômica e a descoberta
da periodicidade dos elementos da química, foi desenvolvida a física
matemática básica da atualidade, a criação da teoria
dos conjuntos infinitos por Cantor e muitos outros empreendimentos notáveis.
Foram mudanças que resultaram da contribuição de inúmeras
pessoas em diferentes locais, mas seria negar o papel fundamental do indivíduo
se desprezássemos a contribuição de cada cientista ao processo,
como os trabalhos fundamentais de Ampère, Fresnel, Gauss, Riemann ou
Cantor, por exemplo.
A linguagem musical desse período passou também
por mudanças “revolucionárias”, e em particular o
melhor exemplo disso é o da música de Beethoven, altamente apreciada
e praticada por grandes cientistas que transformaram a física do século
XIX naquilo que hoje conhecemos, como foi o caso de Max Planck e Albert Einstein,
músicos amadores mas talentosos. É na música de Beethoven
que aparece com muita clareza a apresentação de “contradições”
na melodia, que criam o “novo”, inicialmente mantendo a tensão
com o antigo, numa elaboração avançada dos princípios
da fuga e do contraponto. O conflito se resolve de forma a criar uma nova harmonia
com o existente, e quando menos se espera, Beethoven nos dá a inovação
evolutiva, que suplanta o que se apresentara antes, em analogia estreita com
o que se pode descrever para o processo da razão científica na
criação de teorias.
Um exemplo importante desse movimento é a teoria
de Einstein da relatividade, no início do século XX. Esta teoria
surgiu de estudos que Einstein fez das obras de física matemática
de Weber e Riemann (inclusive de sua geometria não euclidiana), além
da história da ciência exposta por Mach, bem como da filosofia
de Espinosa. Observe-se ainda que houve mais de uma “teoria da relatividade”
na época, com pelo menos uma de interesse ainda atual, que é a
de Lorentz. A relatividade de Einstein se divide na chamada teoria restrita,
em que aplica os raciocínios de Galileu sobre o movimento relativo às
cargas elétricas, e a sua teoria geral, em que se concentra sobre a gravidade
e questões cosmológicas de nosso universo.
Os interesses fundamentais de Einstein eram o de interpretar
a física e procurar nela uma unidade fundamental, não se limitando
ao aspecto experimental e matemático usual. Isto se evidenciou mesmo
antes da formulação de sua teoria da relatividade, como em seus
estudos de partículas coloidais em líquidos (movimento browniano)
e a aplicação da quantização da energia à
luz, em suas hipóteses sobre o efeito fotoelétrico. Nessas áreas
Einstein amadureceu seus pensamentos, conseguindo publicar seus três artigos
“revolucionários” em 1905.
Bem, ao contrário do que muitos imaginam, a teoria
da relatividade de Einstein embora bastante aceita não é irrefutável.
A exemplo de todas as teorias científicas, ela criou “instabilidades”
na teoria que acabaram sendo resolvidas, ao mesmo tempo que despertou novas
discordâncias. Exemplos disso são as perguntas que surgem em congressos
sobre os fundamentos da física: existe ou não um “éter”?
A velocidade da luz é constante, já que tem havido diversas experiências
para refutar os resultados de Michelson-Morley? O que é a gravidade?
A julgar pela literatura científica mais crítica sobre tais assuntos,
ainda não é possível dar respostas irrevogáveis
a respeito da exatidão e dos limites da teoria da relatividade de Einstein.
Causa espécie entre os cientistas que não
conhecem a história das ciências citar esse grande debate mundial
que cerca as teorias restrita e geral da relatividade, debate cuja existência
se pretende até desmentir. Sem contar a discussão inicial do começo
do século XX, envolvendo Einstein, Poincaré e Lorentz. Na atualidade
mais próxima de nossa época podem-se citar diversos autores relevantes
que estão trabalhando sobre o assunto. O físico canadense Paul
Marmet, em seu Einstein’s theory of relativity versus classical mechanics
(1998), procura demonstrar que são supérfluos os princípios
da relatividade einsteiniana para explicar a contração e dilatação
do espaço-tempo e o avanço do periélio de Mercúrio.
Estes são fenômenos que segundo o autor se deixam explicar perfeitamente
bem com a mecânica não relativística. Um ponto considerado
basilar para o história da comprovação da relatividade
é a pretendida deflexão da luz pelo campo gravitacional do sol,
e Marmet faz uma análise crítica da precariedade dos dados coletados
com essa finalidade nas expedições do eclipse solar de 1919, inclusive
a de Sobral, no Ceará.
Há uma longa e ignorada tradição
de desconfiança com relação aos resultados obtidos ao final
do século XIX sobre o que seria a constância da velocidade da luz,
evidente com as novas investidas pelo físico americano Dayton Miller
(entre1925-26) para provar que a experiência de Michelson-Morley dá
resultados diferentes do que aquilo que se aprende nos livros-textos. Outro
autor que se dedicou ao assunto é Joseph Levy, que tem trabalhado na
França para demonstrar que a velocidade da luz não é o
limite superior assumido pela teoria da relatividade convencional. Objeções
desse porte têm sido objeto de diversas publicações, como
por exemplo os trabalhos reunidos pelo renomado físico italiano Franco
Selleri – e que se podem consultar em Fundamental questions in quantum
physics and relativity (mais antigo, de 1993, mas não menos relevante).
Como último exemplo em torno do debate sobre a
relatividade, há o exaustivo trabalho que vem sendo empreendido desde
a década de 1980 pelo físico experimental e economista francês
(prêmio Nobel em 1988) Maurice Allais sobre a referida experiência
de Michelson-Morley. Allais retomou esse tema, refinando bastante as bases experimentais,
para concluir que tais resultados eram afinal questionáveis, daí
resultando a publicação de sua obra recente L’anisotropie
de l’espace (1997).
Nada disto nos autorizaria a dizer que Einstein estava
errado, pois há experiências cruciais propostas para tirar tais
dúvidas que ainda não foram realizadas a contento. Tampouco essa
questões tiram o mérito da fecunda e inovadora obra do influente
cientista e pensador que foi Einstein. Certamente ele foi muito engenhoso ao
criar suas teorias mas manter uma abertura para discutir o assunto é
difícil dentro da comunidade científica, que se revela muito conservadora.
Por outro lado, ignorar esse embate de concepções, ou omiti-lo
quando se o conhece, é muito estranho num ambiente formador de cultura.
A impressão é mesmo de que no fundo se desconhece a história
– e quem não conhece história incorre em erros mais facilmente.
As publicações citadas e muitas outras
que se poderia mencionar no caso da relatividade servem pelo menos para atestar
que até “fatos” são passíveis de tratamento
idiossincrático. Temas científicos serem também matéria
de opinião constitui algo salutar e não execrável. Poderíamos
também perguntar se muitos de nossos professores não deveriam
passar por um auto-exame de consciência, indagando se nunca em seu foro
íntimo tiveram dúvidas quanto ao que é consensual em seu
campo – e trágico seria se de fato nunca as tiverem tido.
Por esses motivos e para fazer melhor justiça
a um cientista do porte de Einstein é que todos deveríamos apreciar
o que alguém como Max Planck diz em seu Convite à física:
“Para um teórico realmente digno do nome, pode-se dizer de passagem
que nada poderia ser mais interessante do que um fato que vai contra uma teoria
até então tida como sólida; para ele, o trabalho real começa
nesse ponto”.
Gildo Magalhães é professor de História
da Ciência na USP.
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