Barra de navegação do site

Página inicial Carta ao Leitor Reportagens Notícias Entrevistas Resenhas Radar da Ciência Links Opinião Observatório da Imprensa Busca Cadastro Reportagens

Picasso e Einstein, gênios conexos?

A peça “Picasso e Einstein” do comediante Steve Martin, em cartaz em Portugal, explora um possível encontro entre essas duas personalidades do mundo das artes e das ciências nos primeiros anos do século XX, em Paris. Embora seja pouco provável que o encontro tenha acontecido, a relação entre os dois já é especulada desde a década de 1920 por historiadores e críticos de arte que supunham a existência de uma afinidade entre as obras de Picasso, e de outros cubistas, com a teoria da relatividade. A influência de Einstein até hoje é aceita por muitos historiadores da arte, mas há posições divergentes sobre o assunto: uns questionam a generalização que se faz ao conectar cubismo e relatividade, pois nem todos os artistas e obras pertencentes ao movimento cubista permitiriam tal analogia; outros, mais radicais, negam qualquer possibilidade das obras cubistas ilustrarem princípios da teoria da relatividade e desconfiam totalmente da relação entre o desenvolvimento artístico e os resultados científicos da época.

A controversa relação

Violinos e guitarras aparecem nas obras de Picasso e Braque – representantes mais conhecidos do cubismo – dissecados, esfacelados, como se pudéssemos vê-los simultaneamente a partir de diversos pontos de vista: de cima, de baixo, de dentro, de fora; nenhum deles com autoridade exclusiva. A perspectiva tridimensional da renascença, que reinou por tanto tempo na pintura, deu lugar no cubismo a uma representação que tentava revelar a quarta dimensão: o tempo, como proposto por Einstein, não como fluxo, mas como uma faceta da realidade.

Imagens: Reprodução

 
The Guitar Player”, Pablo Ruiz Picasso, 1910
 
“Violin and Pitcher", Georges Braque

 

Para alguns historiadores da arte, que vêem o movimento cubista como exposto acima, parece ser óbvia a influência de Einstein sobre a produção artística da época, mas, para outros, é extremamente controverso saber em que medida pintores, escultores e escritores absorveram idéias da física em suas obras. Victor Knoll, professor de estética do Departamento de Filosofia da USP, chama a atenção para o fato de que a relação entre cubismo e teoria da relatividade não surgiu com os artistas da época e sim com críticos da arte da década de 20.

De fato, no caso de Picasso, a maioria dos historiadores diz ser pouco provável que o pintor tivesse lido Einstein ou ainda Poincaré. Porém, sabe-se que no círculo de amigos de Picasso estavam pessoas com amplo conhecimento matemático, como Maurice Princet que ficou conhecido como “o matemático do cubismo”. Princet conversava freqüentemente com pintor sobre a quarta dimensão, as geometrias não euclidianas e outros temas matemáticos. O quanto essa atmosfera que envolvia Picasso pode ter influenciado sua linguagem artística talvez nunca saibamos.

Imagens da peça “Picasso e Einstein” em cartaz em Portugal.

Knoll defende a idéia de que o cubismo não é uma ilustração da teoria da relatividade ou, ainda, não é a figuração da quarta dimensão. Em sua opinião “virou moda entre alguns teóricos e críticos associar o cubismo à teoria da relatividade nos anos 20 porque ambos, Einstein e os pintores, trabalhavam com noções de espaço e tempo em suas obras”. Os estudos de Meyer Shapiro, em especial os publicados no ensaio “Einstein e o cubismo: ciência e arte”, da obra “A unidade da arte de Picasso”, são a principal fonte de argumentos de Knoll.

Schapiro esmiúça o assunto e traz aspectos relacionados tanto à relatividade, quanto aos estudos da arte, para mostrar que entre Einstein e o cubismo não existe relação alguma. O teórico da arte apresenta uma carta escrita pelo próprio Einstein, em 4 de maio de 1946, em resposta ao historiador da arte Paul Laporter, que comparava o cubismo aos conceitos de espaço-tempo na teoria da relatividade. Sobre essa comparação Einstein conclui na carta: “essa nova 'linguagem' artística [o cubismo] nada tem em comum com a teoria da relatividade”. O ensaio traz o texto integral da carta, também já citada em outro livro, "Cubismo e relatividade com uma carta de Albert Einstein" (Cubism and relativit with a letter of Albert Einstein) de Paul Laporter.

Para Knoll este é um dos pontos mais fortes na argumentação de Shapiro. “Esquecendo o que Einstein escreveu, sua própria opinião sobre essa comparação, talvez fosse possível alinhavar argumentos em relação a essa tese. Como, aliás, se poderiam alinhavar argumentos em relação a qualquer tese”. Na avaliação de Knoll essas análises tentam encontrar na representação cubista uma noção de tempo que não era a proposta pelos pintores. “As obras cubistas sugerem uma noção de tempo diferente da que existia antes representando uma ruptura com o projeto estético do renascimento, mas tudo isso independente da relatividade”, avalia, e conclui: “sem dúvida há uma relação entre cubismo e ciência, mas não com Einstein e, sim, com a geometria”.

Além da influência da geometria nas obras cubistas, Shapiro explora a possível influência da arte antiga e medieval nas pinturas do período de 1910-11 e 1913-14, particularmente com a arte egípcia. Conclui o ensaio dizendo que não tem motivos para acreditar que esses artistas tenham sido inspirados por idéias científicas e fala da oportunidade que teve de acompanhar o trabalho de um pintor famoso, apaixonado por microfotografias de câmaras de nuvem e de trajetórias de partículas atômicas. Embora essas imagens estimulassem o pintor, e servissem de motivo para suas telas, seu objetivo não era comunicar conceitos da física. Muitos artistas utilizam conceitos que estão no imaginário social em suas produções sem se preocupar com o significado científico deles. No caso do pintor “o que atraía era seu aspecto fenomenal, como numa época anterior teria representado paisagens vistas de novo modo, com uma luz diferente”, afirma Shapiro.

A polarização da discussão – situada ora na relação incondicional e generalizada entre cubismo e relatividade, ora na inexistência de qualquer relação – incitou José Marcos Romão da Silva, do Departamento de Artes e Representação Gráfica da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp de Bauru-SP, a desenvolver sua pesquisa de doutorado. “Tanto o cubismo quanto a teoria da relatividade são muito amplas e não se pode generalizar a relação entre elas. Resolvi investigar onde seria possível a conexão", diz. Para Romão apenas na fase analítico hermética do cubismo, e tão somente nas obras de Picasso e Braque de 1909 a 1912, é possível encontrar relação com o princípio da indissociabilidade espaço-temporal de Einstein.

“Violon et Cruche”, Braque, 1910

Romão contesta ainda os argumentos de Shapiro pautados na carta de Einstein: “provavelmente Einstein recebeu uma série de pinturas de fases diferentes do cubismo que, inclusive, não são mencionadas, e ao ser perguntado se via ali a teoria da relatividade disse que via vários sistemas de representação. Como, em sua opinião, a ciência não precisava ser demonstrada em vários sistemas, mas bastava provar em um deles, ele não via ali uma correlação entre o cubismo e a teoria da relatividade”. Embora concorde com Shapiro em vários pontos de sua argumentação, o pesquisador da Unesp acredita que o teórico também generalizou a inexistência da relação.

Arte e ciência

Embora não exista consenso sobre a influência de Einstein na forma como os pintores cubistas trabalhavam a noção de espaço-tempo, existem muitas outras associações, tanto na pintura, como na escultura, arquitetura e literatura que denotam a intensa repercussão da teoria da relatividade nas artes até os dias atuais. Fala-se da influência de Einstein nas poesias de Apollinaire, nas pinturas de Mondrian, Kandisnky, Marinete e até mesmo nas produções cinematográficas de Eisenstein. A teoria da relatividade instigou a imaginação de escritores como Siegfried Lenz, no conto “Einstein atravessa o Elba em Hamburgo" e Ítalo Calvino em Cosmicômicas.

Menos conhecida, a pintora Remedios Varo é citada no artigo “Física influencia a arte: evidências na pintura surrealista de Remedios Varo” (Physics influences art: evidence in surreal painting of Remedios Varo) pelo físico Alan Friedman, do New York Hall of Science. Os detalhes do mundo fantástico criado por Remedios Varo tem intrigado o cientista, assim como inúmeros críticos de arte. A pintora espanhola, que se radicou no México durante a Segunda Guerra Mundial, tornou-se conhecida nos Estados Unidos pela divulgação de uma de suas obras – “Fenômenos de ingravidade” – em um livro de física; um manual de relatividade editado pela Academia de Ciências de Nova York (New York Academy of Sciences).

 
 
“Fenômenos da Ingravidade”,
de Remedios Varo, 1963
 
“Ciência inútil” ou “O Alquimista”, Remedios Varo, 1955
 
“Criação de aves”, Remedios Varo, 1958

Para Romão, essa repercussão do trabalho de Einstein nas artes deve-se ao fato desse período ser marcado pela idéia de que ciência e arte poderiam ser aliadas. “Houve uma pretensão dos artistas de desenvolver uma arte ligada à ciência que pudesse ajudar a sociedade”. O historiador da arte Giulio Carlo Argan conta, no livro Arte Moderna, que Picasso e Braque apostaram nessa possibilidade. “O cubismo foi um novo modo dos artistas representarem a relação entre arte e ciência”, diz. Mais tarde, quando aconteceu o massacre de Guernica pelos nazistas, Picasso passou a criticar a ciência e os artistas que diziam poder chegar a um acordo com a tecnologia industrial e que esperavam poder redimi-la numa grande finalidade social.

(SD)

Leia mais:

Sites

“O estilo de Picasso: três ensaios de Meyer Schapiro sobre Picasso”

Victor Knoll

“Relação espaço-tempo: pesquisa mostra elos entre a teoria da relatividade e o cubismo”

“A imagem da literatura”
Klaus R. Mecke do Instituto de Física Teórica, Universidade Erlangen-Ürnberg e Instituto Max-Planck para Investigação de Metais, Stuttgart, Alemanha. Traduzido por Paulo Ivo Teixeira, da Faculdade de Engenharia da Universidade Católica, e de Katharina Lorenz, do InstitutoTecnológico e Nuclear

A clarification of Einstein’s theory of relativity and the four-dimensionality of cubism in the early twentieth century
Jennifer Gimmell

Livros

A unidade da arte de picasso
Meyer Shapiro. Tradução de Ana Luiza Dantas Borges

The fourth dimension and non-euclidian geometry in modern art
Linda D. Henderson

Einstein, Picasso: space, time and the beauty that causes havoc
Arthur I. Miller

Versão para impressão

Anterior Proxima

Atualizado em 10/03/2005

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2004
SBPC/Labjor
Brasil