Einstein
e a defesa das liberdades civis
Olival
Freire Jr.
Este
artigo apresenta não o Einstein cientista, mas o cidadão, e
seus posicionamentos políticos. Ele apresenta um aspecto de sua biografia
muitas vezes ausente nas comemorações em curso do centenário
de seus seminais trabalhos científicos. Trata-se do Einstein defensor
das liberdades civis, nos Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria. Essa
postura o colocou em conflito com setores da sociedade americana e, sabemos
hoje, converteu-o em um alvo privilegiado do todo poderoso FBI. A postura
de Einstein apresenta, para o leitor contemporâneo, uma preocupante
atualidade, uma vez que muitas das tendências criticadas por Einstein
estão de novo presentes nos Estados Unidos.
A
defesa das liberdades ameaçadas
A Guerra Fria que sucedeu a Segunda Guerra Mundial foi marcada nos Estados
Unidos por uma verdadeira histeria anti-comunista, alimentada pela chegada
dos comunistas ao poder na China e pela explosão da primeira bomba
atômica soviética. Usualmente essa histeria tem o nome de macartismo
por referência ao senador Joseph McCarthy, o qual se notabilizou pelo
incentivo a essa histeria. Para melhor entendermos a expressão histeria
anti-comunista é preciso realçar que o substantivo aqui é
a histeria, um estado não racional que tomou conta de parcelas influentes
da elite norte-americana. O alvo principal foi o setor da intelectualidade
posto sob suspeição de inclinações comunistas.
Esse setor incluía artistas, cientistas, professores e funcionários
públicos. A partir da explosão da bomba atômica pelos
soviéticos a histeria adquiriu um foco mais delimitado. Criou-se a
idéia de que os soviéticos tinham construído a bomba
porque espiões teriam passado o “segredo” da bomba para
os soviéticos. Nesse contexto, os físicos e, em especial, os
físicos teóricos passaram a ser considerados como o “elo
mais fraco” da segurança americana, aqueles que detinham o “segredo”
e eram propensos a passá-lo para os soviéticos.
A
histeria, contudo, encontrou resistências. A resistência das vítimas
se expressou muitas vezes na recusa a responder aos inquéritos das
comissões do congresso, sob a alegação de que a constituição
dos Estados Unidos assegura o direito do cidadão não responder
a interrogatórios que possam levar a uma auto-incriminação.
Evidência de que a histeria não era restrita ao senador McCarthy
e seus seguidores, é o fato de que o pior acontecia depois da intimação
para depor na referida comissão, com as pessoas sendo demitidas de
seus empregos, e não só empregos no Estado, mas também
em universidades e instituições variadas. Para muitas dessas
vítimas a resistência prosseguiu na forma de processos jurídicos
visando à recuperação de seus direitos. Como disse anteriormente,
também ocorreu uma resistência importante entre aqueles que,
mesmo não sendo suas vítimas imediatas, viram nesse processo
uma ameaça às liberdades individuais. Albert Einstein foi o
mais notável desses que resistiram.
A
manifestação mais importante adotada por Einstein foi, seguramente,
a carta que ele endereçou a William Fraeunglass, um professor de inglês
da Escola Secundária James Madison, no Brooklyn, New York. Frauenglass
foi intimado a depor em uma outra comissão do senado, a propósito
de aulas que ele tinha ministrado anos antes. Ele tomou a decisão de
não comparecer à comissão, argüindo ser um direito
constitucional não responder questões relativas a filiações
políticas. Frauenglass foi em seguida demitido de seu emprego pela
prefeitura da cidade. Einstein foi procurado pelo professor demitido, e lhe
endereçou uma carta na qual assinalava que não precisava ser
mantida como reservada. De fato, a carta foi publicada na primeira página
do The New York Times, em 12 de junho de 1953. Pela relevância,
parece interessante transcrever fragmentos desse documento:
Caro
Senhor Frauenglass, [...] O problema enfrentado pelos intelectuais desse
país é muito sério. Os políticos reacionários
têm conseguido instilar no público suspeitas sobre as atividades
intelectuais, associando-as com perigos sem fundamento. Tendo obtido êxito
até aqui, eles buscam agora suprimir a liberdade de ensino e privar
de suas posições todos aqueles que não se revelem submissos,
isso é, levá-los à morte pela fome.
O que deve a minoria de intelectuais fazer contra essa ameaça diabólica?
Francamente, eu só vejo o caminho revolucionário da não-cooperação,
no sentido de Gandhi. Todo intelectual intimado por um desses comitês
deveria se recusar a testemunhar, isto é, ele deve estar preparado
para a prisão e para a ruína econômica, em suma, para
o sacrifício de seu bem-estar pessoal, no interesse do bem-estar
cultural do país.
Esta recusa deve estar baseada na afirmativa de que é vergonhoso
para cidadãos inocentes se submeter a tal inquisição,
e que este tipo de inquisição viola o espírito da Constituição.
Se um número suficiente de pessoas estiver preparado para dar esse
grave passo, eles obterão êxito. Caso contrário, os
intelectuais desse país não merecem nada diferente da escravidão
que lhes está sendo destinada.
Sinceramente,
Albert Einstein
P. S. Esta carta não precisa ser considerada “confidencial”.
A
carta repercutiu intensamente na opinião pública, recebendo
apoios e críticas. Einstein não se curvou à pressão
e, das suas várias manifestações posteriores, aquela
com maior força de persuasão foi uma declaração
ao jornal The Reporter, em 18 de novembro de 1954, na qual afirma
que se pudesse decidir novamente sobre uma profissão para o seu sustento,
ele não tentaria ser um cientista ou professor, ele escolheria ser
um encanador ou um caixeiro-viajante, na esperança de encontrar aquele
modesto grau de independência ainda possível naquelas circunstâncias.
A
declaração de Einstein teve efeitos práticos entre as
vítimas do macartismo, e também repercutiu no seu estado de
espírito. Pouco depois da publicação da carta, os Fraeunglass
visitaram Einstein. Por iniciativa de Tillie Frauenglass, que também
era professora, a família registrou o encontro em notas, as quais foram
mantidas inéditas por quase meio século. As anotações
registram que, no final do encontro, Einstein se dirigiu a William Frauenglass
com as seguintes palavras: “obrigado por ter me propiciado a oportunidade
de me expressar”, e afirmou que ter escrito a carta “deu-me uma
das mais profundas satisfações de minha vida”.
Einstein,
David Bohm e o Brasil
A resistência de Einstein às ameaças às liberdades
civis adquiriu, algumas vezes, o caráter de solidariedade a algumas
daquelas vítimas. Um desses casos, o do físico David Bohm, é
relevante também para a história do Brasil. David Bohm era professor
na Universidade de Princeton quando se converteu em alvo da histeria anti-comunista
em função de suas ligações com o Partido Comunista.
Em um procedimento típico da época, a Universidade de Princeton
decidiu, em meados de 1951, não renovar seu contrato. Bohm, que era
amigo de Einstein, buscou seu apoio na tentativa de encontrar um emprego fora
dos Estados Unidos, sem sucesso. Nessa altura, o Brasil entrou na história
de David Bohm, quando o físico Jayme Tiomno, que finalizava seu doutoramento
em Princeton, convidou-o para vir para a Universidade de São Paulo.
Einstein foi solidário com esse processo, e a pedido de Abrahão
de Moraes, então chefe do departamento de Física da USP, escreveu
cartas em defesa de Bohm endereçadas ao presidente da República,
Getúlio Vargas, e ao governador do estado de São Paulo, Adhemar
de Barros, em defesa de David Bohm. As cartas foram enviadas a Abrahão
de Moraes para serem utilizadas, se necessário. Elas não foram
necessárias, e só na década de 1990, devido ao trabalho
do pesquisador francês Michel Paty nos Arquivos Einstein, essas cartas
vieram a público.
O
envolvimento de Einstein com o Brasil, por intermédio de David Bohm,
teve outros desdobramentos, apenas indiretamente relacionados com o contexto
norte-americano. Bohm nunca se sentiu à vontade no Brasil. O programa
de pesquisa que ele então desenvolvia – uma reinterpretação
causal da mecânica quântica – não motivava os físicos,
e ele tendia a considerar interessantes apenas aquelas pessoas que partilhavam
o seu ponto de vista sobre a mecânica quântica. Ele não
tinha nenhum interesse prévio no Brasil, e nem conhecimento anterior
sobre o país. Quando aqui chegou ele ficou surpreso porque o Brasil
não era tão desenvolvido quanto os Estados Unidos. Além
disso, como reflexo dos tempos do macartismo, o consulado americano confiscou
seu passaporte e declarou que ele só o teria de volta para retornar
aos Estados Unidos. Bohm não gostava do Brasil, mas gostava menos dos
Estados Unidos, temendo um novo processo caso retornasse. Em 1954, Bohm começou
a elaborar planos para ir para Israel, e mais uma vez buscou apoio em Einstein
que inicialmente hesitou, argumentando que só deveriam ir para Israel
aqueles que tivessem planos de se estabelecer por lá. Para o que nos
interessa nesse artigo cabe assinalar que, na tentativa de convencer Einstein,
David Bohm lhe escreveu enfatizando todas as adversidades que encontrou no
Brasil. Deve ser dito que Bohm apontou problemas reais da sociedade brasileira
da época, como a corrupção generalizada, mas a ênfase
foi excessiva. Ele afirma que o governo brasileiro não apoiava a pesquisa,
e é fato que o apoio existente era insuficiente, mas Bohm não
observava que ele mesmo havia recebido todos os apoios que havia solicitado
ao recém criado CNPq para trazer ao Brasil físicos com os quais
queria interagir, como Jean-Pierre Vigier, Ralph Schiller e Mário Bunge.
Einstein respondeu a Bohm com uma carta que incluía uma sentença
curta sobre o papel da ciência e da educação em um país
como o Brasil: “O que mais me espanta é o governo brasileiro
não fazer nenhuma tentativa séria para tornar os altos estudos
mais atraentes – é uma necessidade absoluta para o desenvolvimento
técnico. Compare, por exemplo, como o Japão agiu no século
XIX." A relevância das observações de Einstein para
o Brasil de hoje explica o fato de que, desde quando essas cartas foram publicadas
na revista Ciência Hoje, em 1993, de tempos em tempos a frase
é retomada por cientistas ou jornalistas em declarações
favoráveis a um maior apoio governamental ao desenvolvimento da ciência
no Brasil.
O
dossiê Einstein no FBI
O livro The Einstein File (New York, 2002), de Fred Jerome,
nos propicia uma outra apreciação dos conflitos entre setores
da sociedade norte-americana, o Estado americano, e o físico Albert
Einstein. Não tenho espaço nos marcos deste artigo para uma
descrição circunstanciada desse dossiê, nem para descrever
a saga do escritor para obter a sua liberação. O que farei aqui
é um sumário do que passamos a conhecer com esse livro.
A
mais significativa revelação contida no dossiê que o FBI
acumulou sobre Einstein é que no início da década de
1950, o todo poderoso chefe J. Edgar Hoover, desencadeou uma investigação
visando reunir elementos para apresentar Einstein como comunista, ou como
espião a serviço dos soviéticos, e com base nessa documentação
iniciar um processo de cassação da cidadania norte-americana,
para ulteriormente deportá-lo do país. A informação
contrasta fortemente com a imagem de Einstein, construída na própria
América, que o apresenta como o mais ilustre dos que emigraram da Alemanha
nazista e buscaram a cidadania norte-americana. Por que tal investigação
não transpirou à época? Primeiro, porque o próprio
Hoover, consciente do prestígio internacional de Einstein, conduziu
a investigação no mais absoluto sigilo. Segundo, porque o FBI
e outras agências norte-americanas nada encontraram de substancial para
fundamentar a denúncia. Terceiro, porque com o insucesso da investigação,
e o crescimento, dentro e fora dos Estados Unidos, da insatisfação
com a histeria macartista, e com as notícias do agravamento da saúde
de Einstein, Hoover decidiu, no início de 1955, arquivar a investigação.
Hoover não pôde anular o prestígio de Einstein, e não
quis transformá-lo em um santo laico.
Fred
Jerome teve uma segunda surpresa quando ele leu o “dossiê”
Einstein. A quantidade e a diversidade das atividades políticas ultrapassava
em muito a imagem pública construída pela mídia de um
cientista alienado das preocupações terrenas. Além de
atividades em defesa das liberdades civis, da paz mundial, e dos direitos
dos judeus, outra faceta aparece com nitidez no dossiê. Trata-se da
luta de Einstein contra a discriminação racial contra os negros
norte-americanos; uma luta que muitas vezes esteve mesclada com a luta pelas
liberdades políticas. Essa atividade começou antes mesmo de
Einstein emigrar para a América. Já em 1931, ele e o escritor
Thomas Mann participavam de um comitê alemão em defesa dos negros
de Scottsboro, os quais haviam sido condenados à cadeira elétrica
no estado de Alabama, em um processo viciado pelo ódio racial. Foi
a denúncia do racismo e a defesa das liberdades civis que levaram Einstein
a desenvolver uma relação próxima com duas personalidades
negras norte-americanas, conhecidas pelos seus talentos, pela cor, e pelas
inclinações políticas para a esquerda. Como observa Fred
Jerome, é uma lástima que tantas biografias de Einstein tenham
subestimado suas relações com o historiador W. E. B. Du Bois,
e com o atleta, ator, cantor e ativista político Paul Robeson. Com
Robeson, Einstein manteve uma duradoura amizade. Nenhuma dúvida pode
restar quanto ao fato de que o ativismo de Einstein contra a discriminação
racial dos negros norte-americanos profundamente irritava J. Edgar Hoover,
conhecido pela sua conduta racista. Tratava-se, claro, de uma época,
antes da luta pelos direitos civis, na década de 1960, na qual um funcionário
público com tal responsabilidade não precisava disfarçar
sua postura racista.
Conclusão:
O
gesto de Einstein ao condenar a histeria anticomunista como uma ameaça
às liberdades cívicas foi um gesto visionário. Uma visão
de conjunto dos efeitos do macartismo, na vida política e cultural
dos Estados Unidos, ainda não foi obtida; e é significativo
que apenas nos últimos dez anos tenha aparecido um número expressivo
de trabalhos lidando com os efeitos de tal contexto entre os cientistas. A
corajosa posição de Einstein, contudo, guarda uma preocupante
atualidade. O modo como os Estados Unidos reagiram ao ataque terrorista de
11 de setembro de 2001 tem levado muitos analistas a afirmar que uma semelhante
ameaça às liberdades está posta na ordem do dia. Duas
informações podem ilustrar essa ameaça. Em abril de 2004,
a associação Union of Concerned Scientists, que conta com a
adesão de vinte detentores do Prêmio Nobel, divulgou relatório
cuja tese básica é que a administração Bush tem
tentado interferir diretamente na condução da pesquisa em tópicos
sensíveis às políticas adotadas pelo governo Bush, a
exemplo de contracepção e combate à AIDS. No dia 10 de
novembro do mesmo ano, um dos editoriais do jornal The New York Times,
assinado por Nicholas D. Kristof, alertava para o número de jornalistas
– oito – que estavam sendo processados, e na iminência de
irem para a prisão, porque teriam se recusado a revelar fontes de matérias
incômodas a setores da administração pública. O
editorial afirma que é verdade que a responsabilidade primária
por tais atos é dos juízes que estão conduzindo os processos
contra os jornalistas, mas, alerta o jornal, em alguns casos é o próprio
governo que tem solicitado tais provas. O editorial conclui, afirmando que
“provavelmente não é uma coincidência que esteja
ocorrendo esta ofensiva contra a liberdade de imprensa no período de
uma administração que tem uma afeição brejneviana
pelo sigilo”.
Os
leitores interessados na documentação usada neste texto devem
consultar o meu artigo “Einstein e política: pensamento e ação”,
publicado na revista Ciência & Ambiente, n. 30.
Olival
Freire Jr. é professor do Instituto de Física, da Universidade
Federal da Bahia e do Dibner Institute for the History of Science and Technology,
MIT.
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