Barra de navegação do site

Página inicial Carta ao Leitor Reportagens Notícias Entrevistas Resenhas Radar da Ciência Links Opinião Observatório da Imprensa Busca Cadastro Reportagens

Liberdade de conhecimento e a reforma educacional brasileira dos anos 1990

Ialê Falleiros Braga

Neste breve artigo, proponho refletir sobre como as políticas públicas para a educação básica no Brasil atual – especialmente as relativas ao estabelecimento de parâmetros curriculares nacionais – vêm contribuindo ou não para a edificação de uma proposta educacional voltada à liberdade de conhecimento.

Antes de tudo, gostaria de contar uma conversa que tive com um amigo professor de uma escola estadual na periferia de Campinas, na qual ele dizia que, vendo seus alunos desmotivados com o estudo, resolveu questioná-los sobre o estado de ânimo geral da turma. Um dos adolescentes desabafou: a escola, com todos aqueles conteúdos, tarefas e provas, o aprisionava. Meu amigo, desolado, passou a se perguntar: “Como convencê-los do contrário? Eu acredito que o conhecimento liberta!!!”

Uma nova concepção de educação pode ser percebida nas políticas encaminhadas pelo MEC ao longo dos governos FHC. Afinada ao novo modelo de Estado implantado nesse mesmo governo, a educação pública passa nos anos 1990 a ser entendida como responsabilidade de todos, embora as diretrizes curriculares e a avaliação escolar devam ficar a cargo do MEC. No caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a comunidade escolar tem a opção de aderir ou não a eles, mas será avaliada pelo MEC a cada etapa de seu trabalho. O Estado, preestabelecendo um corpo de conhecimentos e uma forma específica de analisá-los – através dos PCN – e avaliando as escolas públicas a partir desses mesmos conteúdos – via SAEB, ENEM, Provão –, “deixa livre” as redes estaduais e municipais de ensino e as unidades escolares para “gerenciarem” e “operacionalizarem” o novo currículo (im)posto.

Mas no que esse corpo de conhecimentos difere do anteriormente trabalhado nas escolas? Por que adotar esse novo modelo curricular?

A “educação para a cidadania” proposta pelos PCN tem em vista desenvolver entre crianças e jovens – a partir dos Temas Transversais – valores gerais de solidariedade, compaixão, tolerância, preparando-as para participar no futuro, dentro ou fora do local de trabalho, de ações voltadas, em última instância, aos excluídos ou àqueles que não dispõem de uma condição de vida minimamente digna, mas também às questões voltadas à saúde e à preservação ambiental, bem como aquelas ligadas à aceitação das diferenças – religiosas, culturais, de opção sexual etc.

O problema é que essa “nova cidadania” vem carregada de um forte apelo fatalista (“vai faltar água se não pouparmos”; “a camada de ozônio será destruída se usarmos produtos com CFC”) e de cunho individualizante (“cada um deve fazer o que está à mão para reverter parte das mazelas sócio-ambientais”), em detrimento de uma visão abrangente dos fatores sociais que causam a exclusão, o preconceito, as epidemias e a devastação do meio ambiente, e das possibilidades efetivas de solução desses problemas no mundo capitalista globalizado do século XXI.

Além disso, os PCN propõem o ensino por competências: saber agir e reagir com pertinência; saber combinar os recursos e mobilizá-los num contexto; saber transferir, saber aprender e a aprender a aprender; saber se engajar (Ramos, 2001, p.249-250).

Ainda que os apologistas das competências afirmem que o que se propõe é apenas um novo método de trabalho dos conteúdos escolares básicos em substituição ao seu antigo tratamento tradicional descontextualizado e estanque dado pelas disciplinas escolares, a mudança de foco do saber acumulado para o saber vivido do aluno pode pôr em risco a liberdade de conhecimento se essa bagagem prévia de conhecimentos trazida pelas crianças e jovens para a escola não for trabalhada arduamente para se chegar ao conhecimento científico e aos embates mais amplos que o caracterizam. Nos PCN, ao contrário, o conhecimento sistematizado aparece como desvinculado da história, “desideologizado”, assim como as competências a serem trabalhadas para a vida profissional e cidadã.

Os jovens devem sair da escola básica (o que, a partir da Lei de Diretrizes e Bases de 1996, significa ensino fundamental e médio) com a certeza de que só terão bom desempenho profissional e pessoal se continuarem aprendendo ao longo da vida. Essa verdade se torna cruel, no entanto, quando analisamos o quadro de desemprego estrutural que assola o mundo e em especial os países capitalistas periféricos. Diante dele, os indivíduos passam a ser responsabilizados pela sua capacidade pessoal ou não de competir e garantir os recursos para sua sobrevivência e, ao mesmo tempo, de contribuir para a diminuição dos contrastes sociais existentes.

Essa nova proposta educacional acredita ser capaz de preparar futuros profissionais/cidadãos a partir de valores e atitudes a la “faça sua parte” e, ao mesmo tempo, valores e atitudes agressivas para competir num mercado de trabalho cada vez mais precarizado e restrito no contexto do aclamado “progresso tecnológico”. A escola tem um papel fundamental na difusão desse novo modelo de cidadania e, num país tão grande e com tamanhas diferenças regionais como o Brasil, os programas escolares passam a sofrer, nos anos 1990, um processo de padronização através de parâmetros curriculares e avaliações nacionais.

Nos PCN, não cabe à educação escolar básica, nem no seu último estágio (o ensino médio), a preparação para a pesquisa científica e o desenvolvimento de novos conhecimentos. Ao contrário, a ênfase está no manuseio das novas tecnologias e na preparação subjetiva dos educandos para lidar com as instabilidades características do atual mercado de trabalho e com as novas formas de participação política que marcam nossos dias.

Não por coincidência, os valores ligados à “nova cidadania” difundidos pelos PCN se assemelham à visão do Banco Mundial, como podemos visualizar neste trecho do relatório do seminário “Novas parcerias em políticas de combate à pobreza”, realizado em Belo Horizonte, em 1997, por esse banco, com o apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES) e do governo estadual de Minas Gerais:

O seminário foi convocado como parte do Plano de Ação de Participação para a América Latina, que previa seminários regionais em toda a América Latina. (...) Durante o seminário se debateu questões mais amplas como as relações entre governo-sociedade civil, novos atores da sociedade civil engajados no combate à pobreza, e estudos de caso sobre programas específicos de combate à pobreza dos governos e da sociedade civil. (Garrison, 2000, p.67)

No que se refere às escolas públicas brasileiras, esses “novos atores da sociedade civil” são principalmente empresas que, através de fundações, institutos e demais ONGs, vêm buscando realizar atividades voltadas à responsabilidade social direta ou indiretamente vinculadas à educação. Um exemplo disso é o manual “O que as empresas podem fazer pela educação”, publicado pelo Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, composto atualmente por 808 empresas, das quais quase 40% são de grande porte. Neste manual, a produção de materiais didáticos é um dos focos de ação sugeridos a empresas que desejam colaborar com a escola pública no país (pp.52-53). Nessa mesma direção, o Projeto Cuidar do Instituto Souza Cruz e o Programa de Educação Afetivo-Sexual da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira assumem a tarefa de implementação dos temas transversais nas escolas da rede pública, fornecendo gratuitamente materiais didáticos próprios ancorados nos princípios gerais delimitados nos PCN.

Verificamos assim que os PCN se configuram num instrumento de controle por parte do Estado do que se deve ensinar e aprender nas escolas públicas de todo o país, de acordo com os princípios gerais definidos pelos organismos capitalistas internacionais – tanto no que se refere à adaptação de tecnologia pelos países de capitalismo periférico quanto com relação ao modelo de cidadania “colaboradora”, que não questione os fundamentos da nossa sociedade –, bem como numa importante via de acesso do setor empresarial nacional às políticas públicas educacionais, favorecendo a possibilidade de intervenção direta das empresas privadas no currículo, na seleção de materiais e na gestão dos recursos das escolas públicas brasileiras.

Infelizmente, a liberdade de conhecimento não é garantida nesse modelo de educação, e talvez por isso professores como meu amigo sintam tanta dificuldade em convencer seus alunos de que “o conhecimento liberta”.

Ialê Falleiros Braga é mestre em educação pela UFF e membro do Coletivo de Estudos de Política Educacional - grupo de pesquisa do CNPq.


Referências Bibliográficas

BRAGA, Ialê Falleiros. Os PCN e a formação escolar do novo homem: um estudo sobre a proposta capitalista de educação para o Brasil do século XXI. Niterói, [s.n.], 2004. (Dissertação de mestrado. Universidade Federal Fluminense – Educação)

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997.

BRASIL. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais – ensino médio. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC/SEMTEC, 1999.

GARRISON, John W. Do confronto à colaboração: relações entre sociedade civil, o governo e o Banco Mundial no Brasil. Brasília, DF: Banco Mundial, 2000.

RAMOS, Marise. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez, 2001.

TOMAZ, Adriane Silva. Concepções em disputa: a política educacional no município de Juiz de Fora. Niterói, [s.n.], 2000. (Dissertação de mestrado. Universidade Federal Fluminense – Educação)

VÁRIOS AUTORES. O que as empresas podem fazer pela educação. São Paulo: CENPEC: Instituto Ethos, 1999.

Versão para impressão

Anterior Proxima

Atualizado em 10/11/2004

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2004
SBPC/Labjor
Brasil