A quem pertence o conhecimento produzido na universidade?
O conhecimento produzido na universidade envolve vários atores, entre os quais, a própria instituição, os pesquisadores, professores, coordenadores, estudantes, agências de fomento à pesquisa ou empresas que estabelecem parcerias com a instituição de ensino. Nesse contexto de produção e de valorização econômica do conhecimento, são cada vez mais centrais os debates sobre o papel das universidades e sobre a apropriação do conhecimento produzido.
Marli Elizabeth Ritter dos Santos, diretora do Escritório de Interação e Transferência de Tecnologia (EITT), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) explica que, seguindo a Lei nº 9.279/96, o conhecimento gerado pelos pesquisadores de uma universidade, pertence a essa instituição. Em seu artigo 88, a legislação prescreve que "a invenção e o modelo de utilidade pertencem exclusivamente ao empregador, quando decorrerem de contrato de trabalho cuja execução ocorra no Brasil e que tenha por objeto a pesquisa ou a atividade inventiva, ou resulte esta da natureza dos serviços para os quais foi o empregado contratado".
Elizabeth lembra ainda que a matéria também está regulamentada por uma legislação federal – o decreto nº 2.553/98 – que estabelece o limite de até 1/3 sobre os valores auferidos pela universidade, como premiação à atividade inventiva do pesquisador. “Este dispositivo vem sendo aplicado pela maioria das instituições federais de pesquisa”, diz ela.
O pró-reitor de pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), Luiz Nunes de Oliveira, relata como isso acontece na USP. “Quando não há parcerias, o conhecimento é de propriedade da universidade, cuja política pode ou não prescrever repartição de receitas originadas na geração do conhecimento”. Ainda sobre essa questão, Antônio Carlos Alessi, pró-reitor de pesquisa da Universidade Estadual Júlio de Mesquita (Unesp), ressalta que entre os envolvidos na produção de um conhecimento na universidade parece ser razoável considerar como autores aqueles que preenchem um requisito fundamental, que é o de que "cada autor deve ter tido participação tal no trabalho que seja capaz de assumir, publicamente, responsabilidade sobre ele" como sugere o Journal of the American Medical Association, importante periódico científico da área médica, em 1997.
No caso do conhecimento produzido resultar em patente, o titular ou proprietário é aquele que tem o direito de posse sobre a invenção, e o(s) inventor(es), aquele(s) efetivamente considerado(s) autor(es) da invenção. “A estes, a lei também assegura o direito à autoria do invento. Portanto, quando ocorre a exploração econômica de uma patente, a universidade aufere ganhos econômicos na forma de royalties, valores que podem ser compartilhados com os inventores”, afirma Elizabeth. Nunes exemplifica confirmando que quando se trata de depositar um pedido de patente, a USP assume a titularidade, lista todos os pesquisadores diretamente responsáveis pela geração do conhecimento como inventores e, quando a patente é comercializada, reparte 50% dos proventos entre os inventores. “Nessa partição, somente um acordo entre os inventores poderá privilegiar o coordenador da pesquisa, por exemplo”, explica.
O pró-reitor da USP destaca que a transformação de uma patente em produto negociável normalmente exige um desenvolvimento custoso e que conduzirá a resultados incertos. Para ele, o licenciamento de uma patente deve ser feito com base em acordo, que preveja royalties, calculados como porcentagem do faturamento líquido (bruto menos impostos) e contenha cláusula com penalidade no caso do produto não ser lançado. Nunes complementa afirmando que o licenciamento só interessa à universidade quando os termos do acordo favorecem a participação de estudantes no desenvolvimento do produto, uma vez que o objetivo da universidade sempre é aperfeiçoar a formação de seus alunos. “Nos casos desfavoráveis ao envolvimento de estudantes, preferimos vender a patente”, diz ele.
Sobre este ponto, Elizabeth ressalta que além de se constituir num produto acadêmico, a patente está associada, necessariamente, a um valor econômico e à comercialização. “Se não for assim, não há porque patentear. Por isso, antes de se patentear deve ser realizada uma avaliação econômica do invento, para orientar a tomada de decisão. “Patente não comercializada gera um passivo elevado para as instituições, em virtude das despesas que sua manutenção acarreta e não concede à instituição os benefícios do sistema, entre os quais, a aplicação dos recursos auferidos na realimentação da pesquisa”, diz ela, que acredita que tendo esse cuidado é importante estimular a formalização de políticas institucionais de proteção da propriedade intelectual.
Para Elizabeth, tal estímulo encontra respaldo no fato de que o patenteamento de invenções na universidade não significa que todo o resultado de pesquisa será protegido e que acabará o livre acesso ao conhecimento. “Ao contrário, sendo proprietárias de patentes, as universidades exercem a prerrogativa de decidir a quem e de que forma este conhecimento será colocado à disposição, podendo resultar num maior benefício público à sociedade. Por isso, é fundamental que as universidades, estabelecendo claramente de que forma querem atuar nessa matéria, assegurem a preservação de sua missão básica no ensino, pesquisa e extensão”, diz a diretora do EITT.
Mas a que tipo de conhecimento produzido se referem Elizabeth, Nunes e Alessi? Quando questionados sobre a quem pertence o conhecimento produzido nas universidades, alguns intelectuais da área de humanas trazem respostas completamente distantes de legislação, estatutos das universidades e de repartição de benefícios ou lucros, tratados por esses pesquisadores/gestores. A grande questão para esses grupos é focalizar o tema de forma mais ampla e crítica, observando o contexto histórico, econômico, social e político do tema.
Para o sociólogo Sergio Silva, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, que apresentou um dos seminários no evento da Unicamp, na atualidade o conhecimento está cada vez mais dominado por objetivos mercantis e é nesse sentido que devem ser pensadas, na opinião dele, a autonomia da universidade e a liberdade do conhecimento. Segundo Silva, é por causa desse objetivo que a universidade visa mais o conhecimento aplicado e, a instituição, que já esteve mais ligada a produção de um conhecimento crítico e, acima de tudo, independente, passa a ser inteiramente gerida de um ponto de vista de rentabilidade privada. “É com base nessa meta que se responde a perguntas como a quem pertence o conhecimento produzido na universidade, focalizando a forma como se divide o dinheiro que vai ser ganho. Preocupa-se com a gestão do que se está produzindo e não em discutir o que está sendo produzido, que por sua vez é entendido como a única forma possível. Isso é um problema sério não apenas para a universidade, como para a sociedade, pela falta de um pensamento mínimo que avalie o que significa esse fechamento sobre si”, argumenta o sociólogo.
Para ele essa exigência de que os conhecimentos produzidos na universidade sejam aplicáveis é uma mudança que censura e limita a sua produção. “As Humanas passam a ter como papel decisivo manter o funcionamento da sociedade através da gestão, tanto das empresas, quanto do Estado, e exige-se que os projetos de pesquisa estejam sempre ligados, por exemplo, a políticas públicas. Na verdade, são conhecimentos aplicáveis ao sistema econômico atual e à gestão do Estado, e também à conversão da universidade em produtora de conhecimento tecnocrático”, conclui o sociólogo.
Para ele, a exigência de que os conhecimentos produzidos na universidade sejam aplicados é uma mudança importante e tem também resultados perversos. “As humanas passam a privilegiar o estudo da gestão das empresas e do Estado, através de projetos de pesquisa ligados, por exemplo, a políticas públicas. As outras pesquisas são consideradas de menor utilidade.”, diz Silva, que acredita que esse formato nunca questionará quais são os objetivos realmente válidos, nem como se reflete criticamente sobre os objetivos que se apresentam como tal. O sociólogo ainda acrescenta: “Sob o manto de serviços à comunidade, na verdade são produzidos conhecimentos aplicáveis ao sistema econômico atual e a gestão do Estado, e a conversão da universidade em produtora de conhecimento tecnocrático”, conclui.
As parcerias com agências de fomento e empresas
Quando há o financiamento de agências de fomento, as situações são bastante variadas no Brasil. Elizabeth explica que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e algumas agências regionais, como a Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp), por exemplo, têm uma política de assegurar para si direitos proporcionais de titularidade sobre os resultados dos projetos que apóiam e vem discutindo a regulamentação do assunto que deverá ter, em breve, gerar um documento para apresentação, discussão e aprovação em seu Conselho Superior. “Isto tem suscitado muitas discussões, pois as universidades entendem que assim as agências não estão respeitando suas políticas institucionais, que estabelecem a propriedade exclusiva ou a co-propriedade dos resultados. Essa é uma questão polêmica que ainda está em discussão”, afirma Elizabeth.
Elizabeth conta ainda que existem outros casos, como da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), por exemplo, que tem adotado uma posição mais flexível, requerendo participação na titularidade, apenas nos possíveis ganhos econômicos que venham a ser auferidos. Já no caso das empresas que participam financeiramente dos projetos, ela explica que há situações diversas, mas na sua maioria, a flexibilidade que se obtém é, no máximo, a co-propriedade.
Com relação à parceria com agências de fomento, o pró-reitor da USP defende que a titularidade deve ser compartilhada entre os parceiros. Segundo ele, como parâmetro indicador, aceita-se que as receitas sejam compartilhadas na proporção de 1/3 para a(s) agência(s) e 2/3 para a(s) universidade(s) – que terão o ônus de remunerar os inventores – mas na prática a divisão deve sempre estar atenta aos investimentos feitos. “Se uma agência participa de uma pesquisa custosa, apenas por meio de uma bolsa de iniciação científica, por exemplo, a sua parte na divisão não pode ser 1/3. Quando há empresas na parceria, a titularidade da patente é dividida e a divisão de receitas deve ser estipulada no convênio que rege a cooperação”, diz Nunes.
Apesar de tais afirmações, o pró-reitor da Unesp, Antônio Carlos Alessi, alerta que no Brasil não há tradição em se conduzir uma partilha do produto, e afirma que eventualmente surgem situações embaraçosas, pois os estatutos de universidades e contratos com agências ditam percentuais de participação, no caso de geração de recursos financeiros, cuja soma por vezes ultrapassa os 100%. “Como as situações são extremamente variáveis quanto ao montante de recursos aplicados e participação de diferentes instituições, é importante definir bem os pontos de partida para evitar isso. Acredito que seja razoável que o coordenador receba entre 10 e 20%, e repasse para sua equipe, conforme acordo interno. O restante poderia ser dividido em duas partes iguais: uma destinada à instituição sede (que também poderia dividir com outras, conforme a participação) e a outra, seria dividida entre as agências financiadoras, proporcionalmente ao investimento de cada uma”, diz ele.
Ainda no caso da parceria com empresas, Marli Elizabeth Ritter dos Santos diz que o ponto chave para possibilitar a conciliação de interesses de empresas, pesquisadores e universidades públicas é o estabelecimento de uma política institucional claramente definida, contemplando limites e responsabilidades. É esta política que vai respaldar as negociações com empresas e demonstrar que a instituição está capacitada para a gestão de projetos conjuntos. Ela reitera ainda outro aspecto fundamental, o cuidado de estabelecer as condições da parceria, no que se refere ao sigilo e aos direitos de propriedade intelectual, no início do projeto para evitar conflitos no futuro. “Embora isso muitas vezes retarde a negociação, é preferível fazê-lo no início do projeto, do que deixar a decisão para depois, especialmente, no caso do projeto resultar num produto final patenteável, pois neste caso haverá uma disputa sobre os resultados. Com esses cuidados prévios, a probabilidade de se chegar a um bom termo na negociação é maior”, argumenta Elizabeth.
Para o pró-reitor da USP, Luiz Nunes de Oliveira, os impasses nessa área também estão relacionados a problemas com a atual legislação e a questões práticas. “Na sua forma atual, a exigência de licitação para concessão de uma patente impõe sério obstáculo ao licenciamento porque bloqueia o trabalho de agentes especializados em comercializar patentes, além de tirar a oportunidade de pequenas empresas. A Lei de Inovação em discussão no Congresso não resolve esse problema. Não se trata de autorizar as universidades a licenciar suas patentes a seu bel prazer, mas sim de criar legislação que remova os obstáculos sem prejudicar o interesse público – o que é perfeitamente possível”, argumenta ele. Nunes ressalta ainda que, no âmbito estadual, seria valiosa a constituição de um conselho formado por representantes das instituições de pesquisa e da Fapesp, no caso do estado de São Paulo, que se reunisse freqüentemente, para facilitar acordos nos casos de parcerias. O pró-reitor afirma ainda que, há mais de um ano, encaminhou uma proposta com esse objetivo à diretoria científica da Fapesp, que se propôs a coordenar uma discussão sobre o tema, mas não pôde ainda dar seqüência aos trabalhos porque algumas instituições não aceitaram participar dos debates.
(MK)
Para saber mais:
Chauí, Marilena “Em torno da universidade de resultados e serviços”, IN: Dossiê Universidade Empresa, Revista USP, , n. 25, pp. 54-61, mar.-mai./95.
“Universidade e Humanidades”, Revista da Associação de Docentes da Unicamp, ano 4, n. 1, novembro de 2002
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