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Não pagar para ver? A ciência em busca de entrada franca

“A instituição fundamental da ciência”, costuma dizer o sociólogo John Ziman, “é o sistema de comunicação”. Por paradoxal que pareça, na época da comunicação instantânea, no pequeno mundo novo da Aldeia Global, tal “instituição fundamental” está sendo ameaçada. Apesar da chamada desmaterialização e da internet, o descompasso entre quem pode ler – tanto no papel como on-line – as revistas de pesquisa importantes, e quem não pode porque não está em condição de pagar as assinaturas, está crescendo. O desafio da liberdade de acesso à informação científica parece enfrentar obstáculos formidáveis.

O problema é tão sério que, nos últimos anos, inúmeras organizações internacionais, entidades públicas e privadas, cientistas e bibliotecas começaram a declarar o assunto como de máxima prioridade. E a debater sobre uma possível, revolucionária saída, o Open Access (OA): o acesso livre, gratuito e integral às publicações e dados científicos mundiais. Em três diferentes encontros, em Budapeste entre final de 2001 e fevereiro de 2002 (organizado pela fundação do milionário George Soros), em Bethesda e em Berlim em 2003, o conceito de Open Access foi debatido e definido. Apesar de pequenas diferenças, as definições de OA compartilham a idéia que o acesso livre é fundamental para o desenvolvimento da ciência e que consiste, por meio de formas diferentes de licenças, em permitir aos usuários de ler, imprimir, copiar e distribuir trabalhos científicos na rede e usá-los sem barreiras (salvo, em alguns casos, o uso comercial ou com fins lucrativos). O conteúdo de artigos científicos tem que ser integralmente disponível, de graça, para qualquer uso científico e acadêmico e para qualquer pessoa ou instituição que disponha de acesso à internet. O único vínculo, e o único papel do copyright no Open Access, deve ser de garantir que os autores dos textos tenham o controle sobre a integridade de seus trabalhos e o direito de ver sua autoria citada e reconhecida de forma correta.

“Os primeiros passos em direção ao acesso livre”, explica Peter Suber, filósofo do Earlham College, no estado do Indiana (EUA), “foram dados nos EUA bem antes que existisse a world wibe web ou até a internet. Já na década de 1960, apareceram propostas para os primeiros arquivos digitais abertos na área de física e medicina. E, em 1971, foi lançada a idéia do Projeto Gutemberg, para disponibilizar gratuitamente textos importantes da literatura ou da ciência mundial. Sucessivamente, o evento que, na minha opinião, acelerou o surgimento da concepção atual do Open Access foi a iniciativa de Budapeste em 2002”.

Logo em 2002, após recomendação de Gro Harlem Brundtland, diretora geral da Organização Mundial de Saúde, e depois de inúmeras, delicadas negociações, a OMS lançou o projeto de “Iniciativa de Acesso à Pesquisa”, Hinari (Health InterNetwork Acess to Research Initiative), com o objetivo de garantir a liberdade de acesso, para cientistas, políticos e cidadãos que vivem em países pobres, a dados e pesquisas médicas e farmacêuticas. Seis entre as maiores editoras do mundo de revistas científicas (Blakwell, Elsevier, Springer-Verlag, Wiley, Kluwer, Harcourt) aceitaram um acordo com a OMS para garantir acesso livre para mais de 1500 revistas e jornais em países pobres. Logo em seguida, mais 22 editores quiseram juntar-se e hoje o projeto Hinari, que tem duração experimental de 3 anos, garante o acesso grátis a 2000 publicações para 68 países (quase todos africanos ou asiáticos) que têm renda anual per capita inferior a mil dólares. Em outros 42 países, cuja renda per capita está entre mil e 3mil dólares (na América Latina, entre outros, Belize, Bolívia, Colômbia, Cuba, Costa Rica, Equador, Guatemala, Peru), cada instituição pode ter acesso à base de dados inteira pagando mil dólares por ano: o preço médio da assinatura de três revistas.

Em outubro de 2003, a FAO promoveu uma iniciativa parecida, o “Acesso à Pesquisa Mundial On-Line sobre Agricultura” ou Agora (Access to Global Online Research in Agriculture), que garante acesso livre, para 70 países do sul do mundo, a cerca de 400 revistas científicas sobre nutrição, agricultura, biologia e ciências sociais.

Mas a idéia do acesso livre vai bem além de acordos econômicos com editoras sobre ajuda de custo para acesso a revistas. Hoje, iniciativas de suporte mais radical ao acesso livre se multiplicaram, tanto no âmbito público como no privado, tanto nos setores non-profit como nos for-profit. A “biblioteca pública da ciência”, ou PLoS (Public Library of Science) é um dos exemplos mais celebrados. PLoS é uma corporação com base na Califórnia, cuja missão é “disponibilizar on-line, de graça, publicações originais de idéias, descobertas, resultados de pesquisa nas ciências da vida e na medicina (e eventualmente outros setores), sem restrições de uso ou distribuição e sem controle privado nem governamental”. A PLoS lançou, em outubro de 2003, a revista PLoS Biology, com peer-review e com a função de competir com as publicações mais importantes do mundo. Tornou-se logo um caso famoso mundialmente. Um ano depois, em outubro passado, foi lançada PloS Medicine. Até revistas que não adotaram a nova idéia, ficaram influenciadas por ela. O celebrado Institute of Physics (IOP), editor de numerosas revistas de alto impacto na área de física, por exemplo, lançou já em 2001 um site (http://www.iop.org/Select/) que disponibiliza, grátis, por um ano, uma seleção dos artigos científicos mais relevantes.

Também baseados na filosofia OA, mas estruturados como arquivos de dados e não como revistas, os arquivos abertos de artigos ou pre-print científicos on-line são uma realidade em expansão. A iniciativa Open Archives estimula pesquisadores e instituições a estabelecer arquivos eletrônicos, de acesso livre, de toda a literatura científica. Um exemplo celebrado de base de dados aberta é a PubMed Central, um arquivo on-line, gratuito, de citações bibliográficas e publicações científicas na área das ciências da vida, desenvolvido nos EUA pela Biblioteca Nacional de Medicina (NLM). Sempre nos EUA, a Associação das Bibliotecas de Pesquisa (Association of Research Libraries, ARL), lançou SPARC (Scholarly Publishing and Academic Resources Colatition), uma aliança de bibliotecas para “corrigir as disfunções do mercado no sistema de publicação de pesquisa”. Por exemplo, por meio do acesso livre.

“Sem dúvida, há mais atividade de caráter OA nas áreas de exatas do que nas humanas, por uma série de razões complicadas”, comenta Suber, que é autor de um gigantesco acervo, livre, de dados e artigos sobre acesso livre, e coordenador de uma newsletter importante sobre o assunto. “A física (veja-se, por exemplo, o projeto arXiv), é hoje a disciplina líder para os arquivos OA. Mas as áreas biomédicas”, continua o filósofo, “dominam os jornais de acesso livre, graças a grandes iniciativas como PLoS ou BioMed Central. Porém, na minha opini?o, o acesso livre nas humanas é tão viável e desejável quanto nas exatas”.

A BioMed Central, que tem nome parecido com a PubMed mas características totalmente diferentes, é um exemplo importante de como alguns editores privados aceitaram o desafio do Open Access. É uma editora comercial que publica mais de cem revistas e adotou o modelo de acesso livre sem abrir mão do lucro. Como conseguiu? Por meio de uma idéia simples e radical: não cobrar do leitor e, sim, do autor. Ao invés de pagar para ver, os cientistas pagam para publicar. Para cada artigo aceito, os autores pagam de 525 até 1500 dólares (dependendo da revista), que servem para as despesas editoriais e com os pareceristas.

Aparentemente na contramão do acesso livre, a idéia de que os cientistas paguem para poder publicar seus resultados já foi aplicada por jornais tradicionais em crise. No Brasil, por exemplo, a prática foi adotada pelo Brazilian Journal of Medical and Biological Research em abril deste ano, devido a problemas financeiros. Apesar disso, o pay-to-publish pode não ser tão estranho, e pode não ser oposto à idéia do Open Access. Muitos cientistas sugeriram que, se isso servir para garantir o acesso grátis às revistas e o direito dos usuários em copiar e distribuir os artigos científicos, a estratégia de pagar para publicar pode ser uma ótima idéia. Em outubro passado, uma das maiores revistas OA, a PLoS Medicine, decidiu cobrar dos autores. O jornal, que é de graça na versão on-line e cobrará só o custo de produção na versão impressa, não será financiado por meio de assinaturas, menos ainda por meio de propagandas das indústrias farmacêuticas e, sim, cobrando US$ 1,5 mil para cada artigo a ser publicado, custo que, presume-se, os pesquisadores pagarão incluindo esse custo de publicação nos próprios projetos de pesquisa e pedidos a agências de fomento nacionais e internacionais. Além disso, a PLoS pretende financiar os autores que não tenham acesso a tais recursos. “Eu acho uma boa idéia”, comenta Suber. “Mas não é o único caminho. Vale a pena lembrar que podemos difundir e preservar informação de acesso livre também por meio de arquivos eletrônicos abertos. Os arquivos têm custos muito menores que os jornais, e não impõem necessariamente uma escolha entre pagar-para-publicar e pagar-para-ler”.

Mas, apesar das revistas de acesso livre serem hoje numerosas e organizadas em grandes diretórios, representam uma minoria no panorama da comunicação da ciência: a literatura OA não chega a representar 1% do que é publicado por cientistas no mundo. Os obstáculos a enfrentar são muitos, especialmente sustentabilidade econômica e confiança dos cientistas, que, em muitas áreas, ainda não acham viável assumir o risco de publicar em revistas sem grandes editoras por trás e sem a garantia de uma elevada visibilidade e fator de impacto. Porém, afirmam muitos, o acesso livre é compatível tanto com formas de garantia do copyright quanto com uma peer review de qualidade, tanto com prestígio acadêmico quanto com versão impressa, indexação, avanço na carreira e as outras funções e características associadas com a literatura acadêmica tradicional. “A diferença principal”, explica Suber, “é que as contas de tudo isso não são pagas pelos leitores e, assim, não funcionam como barreira para o acesso à informação”. Apesar da maioria das publicações de acesso livre não ter ainda um fator de impacto (porque um jornal precisa ser acompanhado pelo menos por 3 anos para receber tal indicador), para aquelas que têm, explica o pesquisador, “os fatores de impacto são comparáveis ou competitivos com os impactos das revistas tradicionais. Em algumas áreas, os maiores jornais OA já tem fatores de impacto maiores que a média. Muitos governos e instituições importantes, tanto públicas como privadas, estão apoiando a idéia. O Wellcome Trust e o Howard Hughes Medical Institute, por exemplo, estão entre os maiores financiadores privados para o OA”.

Por volta de 1665, os filósofos naturais da Royal Society de Londres festejavam o surgimento de uma nova era para ciência. E decretavam algumas das suas características. A pesquisa, disseram, tinha que ser comunicada a todos, “numa linguagem acessível, mais parecida com a linguagem dos mercadores e dos artesãos do que com a dos filósofos”. Hoje, historiadores e sociólogos da ciência concordam. “A comunicação e a difusão do saber”, escreve o historiador Paolo Rossi, “e também a discussão pública das teorias não foram sempre percebidas como valores. Pelo contrário: elas tornaram-se valores”, com o surgimento da ciência moderna. Como todos os valores, a comunicação científica pode ser cobiçada, comprada e vendida como mercadoria. E, como todos os valores, pode precisar ser protegida quando sua mercantilização ameace o próprio sistema que a gerou: a circulação de idéias que deu origem à ciência moderna. Os próximos anos nos dirão se o Open Acess é uma utopia ou um bom e viável antídoto para o problema.

(YC)

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Atualizado em 10/11/2004

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