Mídia
e religião: os espectros continuam a rondar...
Joanildo
A. Burity
Uma
das dimensões da relação entre religião e ciência
tem sido a do impacto da tecnologia sobre a religião. A idéia
do desenvolvimento aplicado do conhecimento se assenta sobre o pressuposto
de que podemos conhecer a natureza e o mundo social e subjetivo “para
além das aparências”, em suas estruturas determinantes.
O saber aplicado também se legitima pela sua capacidade de produzir
efeitos de domínio sobre a incerteza, a contingência, a vulnerabilidade
da vida e a reprodução das estruturas e práticas sociais.
É aí que a tecnologia brota da ciência: é tornada
possível pelo desenvolvimento científico, altera formas de se
relacionar com a realidade (e a esta própria) e contribui para reforçar
um sentimento de autonomia e auto-afirmação do humano sobre
o mundo, que incide sobre as numerosas idéias de transcendência
e do numinoso que historicamente são agrupadas sob o nome da religião.
Um
dos campos em que a tecnologia tem afetado profundamente nossa experiência
do mundo é o das formas de produção, circulação
e consumo da informação e da comunicação. A mídia
(ou, a rigor, os meios) tornou-se, ao longo do último século,
uma dimensão crucial da vida social e da nossa experiência da
realidade. Assumiu um lugar crescente no cotidiano de nossas sociedades, legitimada
sob o manto da isenção, da objetividade e da responsabilidade
pública – imagem construída ao longo da trajetória
da “imprensa” e hoje transferida às diversas modalidades
de intervenção dos meios na apresentação e visibilização
do real.
O
que era signo de sua credibilidade (palavra de irrecusável relação
com a crença e a fé, fiabilidade), a saber, a reputação
e práticas do jornalista/jornal, foi sendo acrescido de uma nova fonte:
a imagem. Não simplesmente a imagem fixa das fotografias e gravuras,
mas a imagem móvel e atual, imediata, das coberturas de notícias
e dos documentários. O que se pode fazer diante da evidência
do olhar? Em nossa civilização, ver é a prova mais cabal
do crer e do ser. Com as tecnologias que permitem a transmissão em
tempo real, da tevê à internet, este traço do jogo das
evidências característico dos meios adquire ares de inquestionabilidade.
O olhar chancela o acontecimento, para além das “versões”
da palavra: testemunho ocular, imediato, da verdade. Nos meios, ver é
crer e ser visto é existir.
Ver,
crer, ser: a ontologia dos tempos da mídia. Embora saibamos que a informação
e a comunicação não nascem por geração
espontânea. São produzidas. E ainda que não estejamos
falando de falsificação e manipulação, a mais
verdadeira das notícias já nos chegará como resultado
de uma produção: seleção do tema, dos lugares,
do enquadramento, das falas, do que dizer, dos processos técnicos que
melhor atualizariam o acontecimento para o olhar do leitor/ouvinte/espectador.
Sendo
assim, o que se nos apresenta, em imagem e som (ruído ou linguagem
articulada) e em tempo real, na medida em que sabemos que é tratado,
técnica e editorialmente, por profissionais de mídia, acrescenta
à realidade material e objetiva um dado novo: sua espectralidade, sua
virtualidade. O real é espectro, é virtualidade, seja porque
o que acontece nos meios é mais e menos do que a seqüência
de eventos que não pode ser enquadrada e mostrada nos rápidos
bits de informação, seja porque muitos atores sociais calculam
seu aparecimento, produzindo acontecimentos como mídia (espetacularização)
e com vistas a “darem mídia”. Mas o real também
é espectro pelo que se oculta através do ato mesmo de mostrar-se
– desde aspectos relevantes que não são incluídos
(exemplo: partes do cenário ou personagens-chave que foram ignorados
ou editados antes da exibição) até estratégias
de recepção subliminares (exemplo: inclusão de “mensagens”
políticas, sociais, morais, subjacentes a produtos culturais como minisséries,
novelas, filmes ou coberturas jornalísticas de certos temas polêmicos).
Há,
nesta interpretação do lugar dos meios na forma de aparecer
do real em nosso tempo, mais do que mera imbricação entre mídia,
virtualidade e religião. Há uma experiência do real, do
acontecimento, da atualidade, em que a espectralidade é um componente
fundamental. E mesmo que não se trate de religião (no sentido
doutrinário ou organizacional), tal experiência nos fala de nossa
abertura ao que há de novo na realidade ou da necessidade de resistirmos
a aquilo que fecharia a possibilidade de novos acontecimentos. É na
“dobra” entre mídia e religião que a espectralidade
ou a virtualidade surgem como elos de ligação entre duas experiências
do mundo que supostamente pertenceriam a temporalidades distintas e a formas
de vida descontínuas.
Como
aparece o vínculo entre religião e mídia em nosso tempo?
Em primeiro lugar, há uma forma de fácil constatação:
a ocupação de espaços de mídia pelo discurso religioso,
seja em seu próprio nome (nas falas de pessoas e grupos religiosos,
na realização de programas religiosos de rádio e tevê,
nas publicações religiosas, na “indústria cultural”
de matriz religiosa, nos inúmeros sítios religiosos na internet,etc.)
seja a respeito da religião (em documentários, entrevistas,
coberturas de notícias, etc.). Tal presença da religião
na mídia é clara e se estende dos produtos à propriedade
de veículos e recursos de produção. Isto acompanha um
processo de mais longa duração, de apropriação
dos processos e recursos da dinâmica cultural numa sociedade secular
e de mercado por parte dos atores religiosos (como organizações
ou como pessoas privadas). Neste sentido, tanto a intensidade deste vínculo
entre religião e mídia como sua percepção e avaliação
pelos diferentes atores sociais não são singulares: vários
outros discursos culturais (e seus suportes institucionais) também
investem o mercado e a mídia como parte do mercado.
De
qualquer forma, o que já foi dito se mantém aqui: de um lado,
a mídia exibe a religião como notícia, como polêmica,
como produto para um certo público consumidor dos rituais e manifestações
massivas da religião (vide a recente cobertura da agonia do Papa João
Paulo II e da entronização do seu sucessor, Bento XVI). De outro
lado, a religião investe a mídia, certa de que a tecnologia
da comunicação pode fazer muito para propagar seu discurso muito
além de sua capacidade de difusão pelos meios clássicos
da pregação ou da interação face-a-face. Mais,
numa sociedade de mercado, diversas formas de mercadorização
do discurso religioso são desenvolvidas, calculadamente, para conquistar
fiéis (vide o sucesso dos neo-pentecostais e a “customização”
da mensagem religiosa através de programas voltados para públicos
específicos).
O
que me parece mais interessante, do ponto de vista da lógica do argumento
proposto aqui, contudo, é uma outra modalidade do vínculo entre
religião e mídia. Eu gostaria de abordá-la a partir de
dois prismas: o da articulação entre tecnologia, mídia
e religião e o do caráter numinoso do funcionamento e das realizações
da mídia. Em ambos os casos, seria possível perceber uma forma
de aparição (espectro, novamente) da religião, numa sociedade
em que esta já não possui o controle da vida social, como era
o caso até poucas décadas atrás (mesmo se considerarmos
algumas sociedades ditas desenvolvidas ou avançadas).
Como
apareceria a religião na articulação entre tecnologia
e mídia? Primeiro pela fascinação que a técnica
suscita ao produzir efeitos cuja complexidade é conhecida apenas por
especialistas e cuja reprodução está ao alcance apenas
de quem detém os recursos (de saber, de hardware e de software, de
capital). As maravilhas das novas tecnologias da comunicação,
sua forma de se apresentar para os consumidores como user friendly
ou como capaz de resolver problemas de forma simples (por seu poder de exibir
o que é real e de pautar o debate público; por seu potencial
de acelerar efeitos e diminuir esforços de comunicação;
etc.), suscita em muitas pessoas um senso de mistério, de fascínio,
quase de transe. A experiência de fazer funcionar o que não se
desconhece “por dentro” e de conseguir “sozinho” resultados
que não se poderia imaginar “antes” da tecnologia evoca
aquela imagem durkheimiana do indivíduo que se torna mais forte, mais
auto-valorizado, por sua crença em Deus. Ao mesmo tempo em que mantém
entre o usuário de mídia(s) e os suportes técnicos desta(s)
aquela distância que separa, no discurso religioso, os seres humanos
de Deus.
Em
outras palavras, estamos sugerindo uma experiência do numinoso como
característica da forma como grande parte das pessoas se relaciona
com os meios hoje. Se haverá dessacralização deste “encantamento”
como resultado da massificação, da banalização
do acesso, não é possível dizer. Mas as indicações
de concentração crescente das grandes empresas de produção
de notícias e entretenimento e do capital que elas movimentam nos adverte
contra expectativas ingênuas. O duplo poderio – econômico
e técnico – desses impérios midiáticos reforça
o efeito de “transcendência” do mundo criado pelas tecnologias
da informação.
Além
do caráter numinoso que a relação “espontânea”,
cotidiana, com os meios encerra, há ainda a fascinação
dos intermediários culturais com as possibilidades abertas pela cultura
cibernética, que os cativa pela manipulação dos recursos
tecnológicos e pela capacidade de formar opinião em larga escala
com menos esforço de mobilização e convencimento.
Por
outro lado, a relativa intransparência da agenda própria da mídia
ao ler o real ou ao permitir um acesso ao real através de seus “instrumentos”
produz um “efeito de viseira” de que fala Derrida, que nos confronta
com um olhar que nos vê sem ser visto, que nos interpela, sem que saibamos
exatamente quem ou o quê se oculta por trás da viseira. O espectro,
como na armadura do fantasma do rei em Hamlet, cuja voz reconhecemos por trás
da viseira, é e não é real, ou melhor, está entre
o real e o virtual, o palpável e o intangível. Quem nos fala
através da tela da televisão ou do computador? A quem vemos?
Como se transmite através do que não se vê aquilo que
é material, corporal ou vivo, chegando do “lado de cá”?
De quem é a voz que nos diz para vermos assim, ou fazermos desta maneira?
Como na palavra mediadora do porta-voz de Deus (sacerdote ou profeta), a mídia
nos fala como/por meio de uma viseira, com o poder irresistível da
palavra-imagem autorizada, auto-investida do “interesse público”,
legitimada por sua forma de dar a ver o mundo “como ele é”,
supostamente pré-interpretação.
Assim,
mídia e religião acabam compartilhando mais do que admite uma
certa idéia do destino inelutável que as separaria progressivamente.
Não somente investem a tecnologia para produzirem discursos sobre a
realidade (humana e natural) como também habitam um mundo em que o
próprio sentido do real acha-se atravessado inextricavelmente pela
virtualidade, pela espectralidade. Que achemos o real da mídia mais
objetivo, convincente ou efetivo do que o real da religião deveria
ser compreendido por uma dupla referência à história:
resultante de um embate político pela hegemonia do mundo moderno e
produto de um mundo legado pela primazia do discurso científico sobre
outras formas de conhecimento. É certo que várias destas vitórias
da razão, da ciência, da técnica nos trouxeram um tanto
de “emancipação”. Mas já não estamos
tão confiantes de que os processos desencadeados a partir delas nos
encaminhem sem ambigüidades a um futuro desejável ou tenham apagado
os rastros desse regime do entre-a-vida-e-a-morte de que as religiões
são especialistas a várias vozes.
Joanildo
A. Burity é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e
professor das pós-graduações em sociologia e ciência
política da Universidade Federal de Pernambuco.