Ciência e
religião
Geraldo José de
Paiva
Ao acompanhar o noticiário
relativo à eleição do papa, deparei-me com várias
matérias que reuniam ciência e religião, quase sempre
em oposição. Como em geral são matérias escritas
por jornalistas sem especialização em um ou outro dos assuntos
e, menos raro do que desejável, em nenhum deles, a informação
que acaba sendo passada é repleta de confusão. Felizmente, a
quantidade de notícias acaba não surtindo nenhum efeito apreciável
no âmbito da cognição. No âmbito da afetividade,
porém, as matérias consolidam a disposição negativa
de muitos leitores em relação à religião.
Não é
possível falar de ciência e religião em abstrato.
Há muitas ciências e muitas religiões que
mantêm relações diversas entre si. E essas
relações variam com o tempo, imbricadas que estão
na cultura e nas subculturas de épocas e lugares. Atualmente,
por exemplo, há ramos do budismo que não têm
dificuldade em pautar-se pela ciência e, pela voz do Dalai-Lama,
afirmam que abandonarão o conceito de reencarnação
se a ciência provar sua inexistência. O espiritismo
kardecista, semelhantemente, se interessa por confirmar reciprocamente
religião e ciência. O islamismo chega a afirmar que as
descobertas da ciência se encontram no Alcorão. No
âmbito do cristianismo, particularmente nos Estados Unidos,
assiste-se a múltiplos esforços de convergência
entre religião e ciência, mais da parte de teólogos
que de cientistas.
Feita a ressalva de que
não existe ciência nem religião em abstrato, e
restringindo-nos à ciência contemporânea, de matriz
ocidental, e ao cristianismo, penso que há dois ou três
níveis de discussão. Ciência e religião
podem ser consideradas do ponto de vista da epistemologia, enquanto
modos de acesso ao conhecimento. Acredito que será importante
determinar o respectivo objeto de conhecimento, o fundamento da
aceitação ou rejeição desse objeto, as
condições cognitivas e afetivas de acesso ao objeto, a
coerência das construções relativas ao objeto.
Julgo que a diferença básica entre ciência e
religião reside no respectivo objeto: uma realidade não
empírica de caráter intersubjetivo ou uma realidade
empírica de caráter objetivo. Esse primeiro nível
de discussão poderia desdobrar-se em dois, de natureza realmente
distinta: o da relação entre ciência e
religião e o da relação entre ciência e
teologia. Teologia não é religião, e
religião não é teologia, embora tenham a ver uma
com a outra. No extremo, seria possível um teólogo sem
religião, na conhecida atitude filosófica do als ob.
De fato, a teologia não é teologal, no sentido de
alcançar o próprio Deus. A comparação entre
ciência e religião me parece mais natural nesse segundo
nível de discussão, a saber entre duas ciências, a
ciência empírica e a ciência de Deus. Como ambas
são ciências, compartilham das mesmas
suposições e exigências epistemológicas e
constroem-se historicamente. Essa construção
histórica, aliás, é que permite encontros e
desencontros que, no longo prazo, podem se revelar relevantes ou
superficiais. A título de curiosidade, registro a
existência de um periódico editado desde 1988 em Kampen,
Holanda, intitulado Journal of Empirical Theology. Aceito o
segundo nível de discussão, haveria um terceiro, que
é o da pessoa concreta envolvida na pesquisa científica e
na adesão/não adesão religiosa. Esse é um
nível de talvez maior complexidade, porque abrange a pessoa
inteira e não só a atividade mental da
conceituação, da proposição, do
raciocínio. No restante do artigo pretendo elaborar alguns
aspectos de cada um desses níveis de discussão.
Penso que relacionar
religião cristã e ciência ocidental como acessos
específicos às realidades empírica e não
empírica ou meta-empírica é, rigorosamente
falando, um beco sem saída, no qual não se devia entrar.
Como não há comunidade de objeto, encontra-se a aporia
bem estabelecida desde Kant. Note-se, aliás, que o melhor
entendimento das provas escolásticas da existência de
Deus, compendiadas nas cinco vias de Santo Tomás de Aquino,
é o de que são provas de conveniência, e não
de demonstração, o que nos levará ao terceiro
nível da discussão. Na melhor das hipóteses, que
ainda não seria uma hipótese boa, a discussão se
desenrolaria, não entre ciência e religião, mas
entre ciência e filosofia. Uma ilustração desse
esforço encontra-se na fervorosa contenda acerca do purpose,
ou finalidade do mundo. Penso que a única maneira de se manter
em nível epistemológico comparável seria retornar
ao postulado de uma estrutura a priori de apreensão do
divino ou do numinoso, proposta por Otto, com raízes em
Schleiermacher e tão influente em Mircea Eliade. Infelizmente,
esse postulado se revelou inoperante, pois que resultava de todo um
envolvimento anterior de Otto com o cristianismo. Talvez o sagrado, de
Eliade, fosse um objeto mais apropriado à
comparação epistemológica, mas para seu
reconhecimento bastam as estruturas de apreensão de uso comum. A
analogia que me ocorre, nesse nível de discussão,
é com a arte. Digo analogia, pois a comparação
falha no essencial. Frente à arte e à religião,
Freud em determinado momento estacou no escrutínio da
psicanálise: essa não tinha recurso para entender o
processo criativo do artista e a grandiosidade da religião.
Talvez, assim como somos estruturados para apreender os
estímulos por via dos estereótipos, isto é, por
limitações cognitivas inerentes a nossa
posição na escala evolutiva, estejamos também
destinados a nos acercar da arte, da religião e da ciência
por vias paralelas.
O segundo nível de
discussão põe em pé de igualdade a ciência e
a teologia. Reconhecemos nesse nível muitas semelhanças:
preferência por modelos, prevalência de métodos,
substituição de interesses, filiações
intelectuais, disputa por recursos financeiros e, para não fugir
do jargão, mudança de paradigmas ao longo do tempo. Creio
que, nesse nível, ciência e teologia estão
próximas. Se há interesse em aprofundar objetos
específicos de que se ocupam uma e outra, por exemplo o
início da vida humana, essencial para se julgar a liceidade das
pesquisas com células-tronco, a teologia fará bem em
inteirar-se do estado da arte das ciências da vida e essas do
estado da arte da teologia. É óbvio que tal
intercâmbio só terá sentido numa cultura ou
sociedade em que ciência e religião são
parâmetros do pensamento e da ação. É esse o
caso brasileiro. Em minha experiência de ensino de psicologia da
religião para alunos de graduação e de
pós-graduação de diversas procedências
acadêmicas, tenho observado que um entrave sério para
qualquer diálogo é a desinformação relativa
ao interlocutor. Assim, para retornar ao exemplo da pesquisa com
células-tronco, primeiro há de se remover conceitos e
preconceitos. Os teólogos não podem imaginar que os
cientistas sejam incompetentes para estudar os fenômenos da vida,
ou que sejam movidos pela ambição do poder, ou que sejam
levianos e imprudentes na pesquisa, ou que sejam uma massa compacta
entrincheirada atrás de evidências. Os cientistas tampouco
podem imaginar que os teólogos sejam unânimes ou tenham o
mesmo grau de certeza, ou que qualquer posição
teológica alcance o estatuto de dogma (uma palavra
freqüentemente mal entendida), ou que os teólogos
não conheçam a história de seus próprios
conceitos e teorias, ou que não saibam distinguir entre dogma e
moral ou não procurem informar-se do avanço da
ciência. Ao contrário, no nível da discussão
científica é prudente supor entre os interlocutores
sutileza e sofisticação de conhecimento, além de
boa intenção e de amor à verdade e às
pessoas.
O terceiro nível
de discussão, a saber, o das pessoas concretas, foi, em parte,
objeto de longa pesquisa que empreendi com pesquisadores da
Universidade de São Paulo. Digo em parte, porque não
pesquisei religiosos e teólogos em suas relações
com a ciência. A descrição da pesquisa e de seus
resultados encontram-se em A religião dos cientistas: uma
leitura psicológica (São Paulo: Loyola, 2000). Nesse
estudo interessei-me menos pela dimensão epistemológica
da ciência e da religião e muito mais pelas vicissitudes
pessoais e psicossociais dos cientistas na adesão ou na
rejeição da religião. Entrevistei longamente vinte
e seis pesquisadores com carreira consolidada nas áreas de
física, zoologia e história, homens e mulheres, quase
todos brasileiros, alguns de renome internacional. A entrevista tinha
como eixo a resposta do entrevistado às
interpelações da ciência e da religião nas
esferas do pensamento e da vida. Para contextualizar essa resposta,
solicitei referências ao ambiente familiar e aos anos de
formação acadêmica, à educação
religiosa, a alguma experiência marcante, que aproximou ou
afastou da religião e da ciência, à
posição de professores e colegas frente à
religião, ao impacto dos estudos na formação
religiosa anterior, ao eventual desenvolvimento da uma visão de
vida alternativa à visão religiosa, ao interesse pelo
esoterismo, à necessidade subjetiva de algum tipo de
salvação, à educação religiosa dos
filhos, às reações do ambiente acadêmico ao
fato religioso. Como referência teórica cognitiva vali-me
do modelo lewiniano do espaço de vida, que mostra a
organização psíquica das diversas regiões
da mente, e como instrumento de análise dos conflitos
inconscientes utilizei a psicanálise, na aplicação
que dela faz A.Vergote, de Leuven, à questão do
ateísmo. Os resultados mais salientes da pesquisa são os
que evidenciaram que nenhum dos entrevistados justificou sua
adesão a uma visão religiosa ou sua
rejeição dela com argumentos científicos. Ao
contrário, foram as influências da família, de
colegas, de grupos de amigos ou de profissão e da cultura
circundante que os encaminharam, mesmo no atravessamento de crises
pessoais, seja à aceitação de uma
relação religiosa seja a sua recusa.
Não estou em condição de excluir casos em que as
convicções científicas levem à
rejeição da relação religiosa, pois
encontrei essa justificativa fora do contexto da pesquisa. Entre os
entrevistados, porém, tal não ocorreu. As razões
de aceitação ou recusa da adesão religiosa
não implicam nem a manutenção nem o abandono da
religiosidade: a pesquisa encontrou tanto a manutenção
refletida das referências religiosas anteriores, como a
adesão a novas formas religiosas, inclusive de ordem impessoal e
cósmica, como o abandono de qualquer filiação
religiosa e sua substituição por um sistema de
referência muitas vezes designado como secularizado. A
conexão ou desconexão religiosa, com efeito, embora
contenha elementos da ordem do conhecimento, é um empenho da
pessoa toda. Por vezes, como Freud notou, as matrizes afetivas se
opõem ao próprio conhecimento, tanto no sentido de aderir
ao que o conhecimento questiona, como no sentido de rejeitar o que o
conhecimento propõe. Aliás, no registro do inconsciente,
foram exatamente os conflitos, resolvidos ou não, ligados
à autonomia e à relação com as figuras
parentais que orientaram a manutenção, a
transformação ou o abandono da relação
religiosa primeira. Além das matrizes afetivas, o
estabelecimento social da realidade, único critério em
tema tão pouco empírico como o da relação
religiosa, faz depender dos grupos de referência o comportamento
concreto da aceitação ou da rejeição
religiosa. O que, portanto, concretamente encaminha a decisão
favorável ou desfavorável à religiosidade ou ao
agnosticismo/ateísmo são as prolongadas e
múltiplas vivências do cientista com as diversas
subculturas e com a cultura geral, que lhe fornecem o sentido de suas
opções. O que parece, em abstrato, uma discussão
epistemológica de primeiro e segundo nível é,
muitas vezes, o precipitado das elaborações concretas
desse terceiro nível de entendimento do que seja ciência e
religião. É aqui que eu situaria muitos dos
esforços, a que acima aludi, de fazer convergir (ou divergir)
ciência e religião. Aqui, também, colocaria a
posição avançada por Otto. Em outras palavras,
é o contexto pessoal, grupal e cultural que fornece aos
interessados, de forma pouco reflexa, os pressupostos com os quais
trabalham na formulação e no encaminhamento de muitos
problemas, inclusive o das relações entre ciência e
religião. Porém se dermos crédito a Lacan (Le
triomphe de la religion e Discours aux catholiques, Paris: Seuil,
2005), a cultura portadora da religião parte com grande
vantagem, pois não há como a religião para
conferir sentido, e esse sentido se faz mais imperativo na medida em
que os cientistas, com o avanço da pesquisa, penetram a
opacidade do real e necessitam transformá-lo em
simbólico, isto é, em algo humano.
Geraldo José de Paiva é professor do Instituto de
Psicologia Universidade de São Paulo.