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Cientistas e religiosos

Carlos Ziller Camenietzki

Considerar que o exercício da atividade científica é coisa dissociada da vida religiosa já se transformou num lugar-comum. Difícil imaginar um padre num laboratório ou num observatório astronômico realizando experiências tal e qual qualquer outro homem de ciência. No mais das vezes, quando tomamos contato com um desses religiosos, e reconhecemos sua condição, não deixamos de nos surpreender. Mesmo que uma reflexão mais detida deixe claro que não há incompatibilidade entre ser padre e ser cientista, para a imensa maioria de nós, não é imediato acomodar-se à idéia de que uma mesma pessoa possa estar na condição de padre e de cientista. Afinal, um padre preocupa-se com problemas de ordem moral, com a salvação das almas, com as tensões da vida quotidiana; e o cientista busca conhecer o mundo natural. Atividades diferentes, e apenas isso, quando reunidas numa só pessoa costumam gerar estranhamento.

Mas quando se trata de ciência e de religião o estranhamento liga-se a problemas que vêm de longa data. Acostumamo-nos a pensar que a ciência moderna de Darwin, de Newton, de Galileu e de Copérnico constituiu-se em frontal combate com as estruturas eclesiásticas, com os religiosos, e isso basta para aprofundar essa sensação de estranhamento quando nos deparamos com um padre astrônomo ou biólogo. E, de certo modo, isso não é de todo equivocado. Porém, esse conflito entre ciência e religião certamente não teve e não tem duração indefinida no tempo, nem mesmo uma extensão que abarque toda a pauta científica. Trata-se, sobretudo, de contrastes pontuais e característicos da época contemporânea, de meados do século XVIII até os nossos dias – data, portanto, de uns duzentos e cinqüenta ou de trezentos anos. Antes disso, a coisa era muito diferente.

Se tomarmos o período final da Idade Média e os primeiros duzentos anos da Idade Moderna – grosso modo os anos 1400-1700 – e se tomarmos apenas os astrônomos e os matemáticos, constataremos facilmente que boa parte dos praticantes dessas disciplinas eram religiosos. Para citar apenas alguns nomes relativamente conhecidos e importantes, Nicolau Copérnico – autor da principal teoria heliocêntrica do século XVI – e Cristóvão Clavius – autor da reforma do calendário de 1582 – eram religiosos e não constituíam caso excepcional. No século XVII, a mais conhecida e difundida carta da Lua, com a denominação dos acidentes selenográficos (vales e montanhas do satélite) foi autoria dos jesuítas de Bolonha que atribuíram nomes de matemáticos da Companhia de Jesus a diversas crateras e “mares”. Certamente uma homenagem merecida, tendo em vista a quantidade de seus confrades dedicados à investigação dos céus.

Entre as ordens religiosas da época moderna, aquelas onde mais encontramos destacados estudiosos da astronomia são os jesuítas e os oratorianos. Os primeiros com acentuado empenho na disciplina entre os séculos XVI e XVIII, os segundos a partir do final do século XVII. Para esses homens, o estudo dos céus era bem mais do que uma forma de ocupar o tempo ocioso entre uma oração e um outro serviço religioso que suas obrigações sacerdotais lhes impunha.

A poderosa Companhia de Jesus, desde sua fundação em 1541, adotou como um de seus princípios de ação a disputa intelectual contra os protestantes e contra os “desvios” religiosos. Com isso, os jesuítas se deram a pesada tarefa da missionação, da formação cultural e da educação daquela parcela da juventude com possibilidades de enfrentar os debates mais intensos. Os padres da Companhia aprofundavam seus estudos filosóficos com o explícito intuito de consolidar seus conhecimentos a fim de estarem capacitados, o melhor possível, para o enfrentamento com os filósofos e com os teólogos que buscavam inovações radicais, e indesejadas, na filosofia e na teologia do tempo. É claro que esse objetivo associava-se diretamente aos intentos comuns aos estudiosos da filosofia – a busca da verdade, a interpretação consistente da sociedade em que viviam etc.

No que diz respeito aos trabalhos astronômicos, diversos jesuítas esmeraram-se no estudo dos movimentos planetários e das melhores hipóteses para interpretá-los. Formaram diversas gerações de matemáticos nas suas escolas e contribuíram sensivelmente para a organização da disciplina. No conjunto das atividades da Ordem, os trabalhos em matemática também contribuíram para o esforço de implantação do cristianismo no Oriente. Na passagem do século XVI ao XVII, depois dos trabalhos do jesuíta missionário Matteo Ricci, numerosos matemáticos foram enviados para a China a fim de atuar no Observatório astronômico que os membros da Companhia de Jesus construíram em Pequim. É importante registrar que a astronomia praticada por esses missionários não era a simples repetição de teorias antigas e reavivadas. Os jesuítas matemáticos da China traduziram trechos da obra de Galileu para o chinês e faziam seus cálculos segundo as teorias de Tycho Brahe.

De um modo geral, pode-se dizer que a Companhia adotou quase que unanimemente o sistema do mundo proposto por Tycho. Tratava-se de um modelo astronômico confortável para os cálculos e para as observações. Ele mantinha a Terra no centro do mundo e fazia girar ao seu redor apenas a Lua, o Sol e as estrelas fixas. Os demais planetas girariam por si mesmos ao redor do Sol sem a necessidade de esferas cristalinas que os carregassem. Este sistema foi também adotado pela maior parte dos astrônomos do século XVII.

Não se tratou, para a Companhia de Jesus, de estudar a astronomia com a intenção de impedir seu desenvolvimento; ao contrário, esses religiosos participaram intensamente das principais transformações que a disciplina passou entre os séculos XVI e XVII. Em Lisboa, o Colégio de Santo Antão oferecia um famoso curso de astronomia destinado à formação de pilotos e de cosmógrafos. Ali lecionaram mestres de matemática de diversas partes do mundo, discutindo a atualidade da disciplina e procurando difundir os novos conhecimentos astronômicos.

Mesmo nas regiões mais afastadas dos grandes centros de reflexão, os jesuítas buscaram estudar os céus e registrar suas observações. Em Salvador, por exemplo, a capital da América Portuguesa, eles se esforçaram por manter uma biblioteca atualizada em obras de matemática e alguns de seus membros praticaram a astronomia escrevendo livros e discutindo os resultados de suas observações com astrônomos do Velho Mundo. O mais antigo destes estudiosos foi o padre Valentin Stansel (1621-1705) que fez publicar na Europa suas observações de cometas. Um desses textos, relativo ao cometa de 1669, foi publicado no periódico científico da Royal Society de Londres, o Philosophical trasactions e acabou servindo a Isaac Newton, que o cita na parte final de seu famoso tratado Princípios matemáticos da filosofia natural. Além de seus textos sobre estes fenômenos episódicos, Stansel publicou em 1685 um diálogo latino bastante interessante: Uranófilo, o peregrino celeste em que combina habilmente a exposição de seus conhecimentos astronômicos e a ficção. O padre Valentin não discute velhas e obsoletas teorias dos céus; ele não defende Ptolomeu e o geocentrismo. Suas proposições acompanham aproximadamente o sistema de Tycho e procuram incorporar as mais recentes descobertas da astronomia. Note-se que esse padre veio ao Brasil como missionário e matemático já formado, com mais de quarenta anos de idade.

Por outro lado, pouco antes da expulsão dos jesuítas, o padre José Monteiro da Rocha observou a primeira passagem prevista do cometa de Halley em 1759. Naquela época o astrônomo contava cerca de 25 anos e, ao contrário do anterior, sempre estudara no Colégio dos Jesuítas de Salvador. Na ocasião, José Monteiro escreveu um livro, o Sistema físico-matemático dos cometas em que defende as teorias de Isaac Newton sobre os movimentos dos corpos celestes. Trata-se de obra de caráter newtoniano!

Certamente não se trata aqui de sustentar que os padres jesuítas fazem parte daqueles astrônomos que mais contribuíram para o desenvolvimento da ciência. Mas, atualmente, já é bastante reconhecido que eles se esforçaram na pesquisa e no ensino científico. Tratava-se, para a Companhia, de um problema vinculado não somente ao interesse de fundo religioso em “conhecer a obra de Deus”; mas sobretudo de um problema prático ligado à política missionária do Oriente e de um problema dependente de sua opção primitiva pela excelência do trabalho intelectual.

Com isso, constatamos que a prática científica não se apresenta como algo estranho aos religiosos, nem mesmo em época de profundas transformações na ciência. E registre-se que tomamos como exemplo apenas católicos. Se incluirmos nesta análise religiosos protestantes, os exemplos se alongarão por bem mais do que faz sentido no presente texto. Então, resta responder qual a origem do estranhamento ao se ter notícia de um padre atuando num laboratório? A resposta se encontra mais em nós que nos religiosos; pois nos acostumamos a imaginar uma incompatibilidade que nem sempre, e nem em todos os temas, tem razão de ser. Tomamos a parte pelo todo...

Carlos Ziller Camenietzki é professor adjunto do Departamento de História – UFRJ.

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Atualizado em 10/05/2005

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