Ciência e
religião; discursos nem sempre conflitantes
Ouvir de um
cientista o comentário "se Deus quiser eu vou descobrir a
cura para o câncer", pode soar estranho quando se pensa em
ciência e religião em lados opostos, sendo a primeira
baseada em fatos, constatações,
comprovações, enquanto a segunda se pauta fortemente por
dogmas, que não podem ser explicados, mas devem ser aceitos por
aqueles que têm fé. Mas, para especialistas da área
da lingüística, um discurso que mescle ciência e
religião não é obrigatoriamente conflituoso. A
análise de discurso, uma das linhas de pesquisa da
lingüística, mostra que os enunciados de um discurso
não devem ser interpretados de forma tão simplista.
A sociedade
moderna é marcada pela forte presença da ciência e
da tecnologia, mas a grande maioria dos povos mantém sua
religiosidade. Nada mais natural então, que o discurso, assim como a ideologia por ele expressa,
seja permeado por esses conflitos. "O funcionamento da linguagem
não está reportado estritamente ao indivíduo. No
discurso de cada pessoa estão presentes outros dizeres com o
qual o dizer delas se relaciona", explica Eduardo Guimarães,
lingüista e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp).
Para o
lingüista, o discurso científico e o religioso não
são necessariamente conflitantes. A busca da "verdade" e o
caráter persuasivo de ambos, mesmo voltados para
dimensões diferentes como o inexplicável da
espiritualidade e a racionalidade da ciência, não os torna
necessariamente contraditórios. "O cruzamento entre
ciência e religião é histórico e
ideológico, e a ideologia não é regida pela
não contradição. Nesse sentido não cabe
perguntar se é ou não contraditório, simplesmente
os discursos científico e religioso podem estar juntos e
significar, por isso, de forma diferente", analisou Guimarães.
Além
disso, para a análise de discurso, as palavras são
constantemente re-significadas pelo contexto histórico e social
e só funcionam dentro de uma língua porque se distanciam
de seu significado original. "Não há ninguém em
nossa sociedade, que tem forte formação católica
que não diga: 'ai meu Deus', 'Deus me livre' ou 'se Deus
quiser'. Isso não significa, necessariamente, que a pessoa seja
religiosa. É mais uma expressão da língua
portuguesa que foi produzida a partir de condições
enunciativas da fé, mas que adquiriu outra
significação", complementa Guimarães. Frases como
essas seriam um indicativo do nosso passado de formação
religiosa dominante que influenciou a formação de uma
subjetividade religiosa.
Existem
também ambientes sociais em que a presença do discurso
científico e religioso possui demarcações bem mais
rígidas. Em uma igreja, por exemplo, o discurso dos sacerdotes e
fiéis seria predominantemente religioso, já em uma
universidade seria marcadamente científico. No entanto, mesmo
nesses ambientes existem intercâmbios constantes entres esses
dois dizeres. A pesquisa Estratégias de
apropriação do discurso científico por alunos
protestantes de um curso de licenciatura em ciências
biológicas, desenvolvida pela bióloga Claudia
Sepulveda, pesquisadora da Universidade Estadual de Feira de Santana
(UEFS), mostrou justamente como ocorrem esses intercâmbios. A
maioria dos alunos entrevistados apresentou um discurso que fazia uma
síntese entre os modelos explicativos da ciência e a
visão de mundo teísta. "Essa síntese tem sido o
caminho mais confortável para esses alunos apropriarem-se do
discurso da ciência sem abrir mão de suas
concepções teístas acerca da relação
entre Deus e Natureza. Proporcionando, pelo menos para eles, uma
convivência estável e confortável entre o
conhecimento religioso e o científico", explica a bióloga
.
O trecho retirado da entrevista
com um dos alunos que participaram da pesquisa ilustra como é feita
essa síntese para formação de um discurso unificado:
“Por exemplo, eu estava
na aula, uma matéria de filosofia. O professor estava tentando explicar
as versões dos gregos para a origem da vida (...) quando ele falou
que o homem tem dezesseis aminoácidos como a natureza, aí eu
disse: Na Bíblia está escrito que o homem veio do pó
e da terra. Deus fez o homem do barro. Então, justificaria porque ele
tem esses aminoácidos. Se o barro tem, claro que o homem vai ter”.
Os
entrevistados, no entanto, nem sempre utilizam esse discurso
científico-religioso. Há circunstâncias em que a
integridade e autenticidade dos discursos científico e religioso
acabam sendo conservadas. Para Sepúlveda, os próprios
alunos reconhecem que a mescla entre ciência e religião
constituiria um discurso de fórum íntimo. "Geralmente,
eles não falam dessa forma nas suas atividades de pesquisa ou na
sala de aula quando estão na condição de
professores", apontou a pesquisadora.
Para
Guimarães, esse tipo de discurso mostra como as pessoas,
expostas fortemente ao discurso religioso e fiéis à
própria fé, resolvem por si o que seria uma
contradição entre religião e ciência. "O que
ocorre é uma reinterpretação das metáforas
da Bíblia a partir do que a ciência vai revelando. Assim,
suas palavras vão permanecer eternamente verdadeiras, sem entrar
em conflito com as novas condições expressas pela
ciência". Segundo o lingüista, isso faz parte do mecanismo
de interpretação da língua. "As
interpretações, portanto, vão sendo refeitas em
condições históricas novas. Não existe
contradição aí porque se atribui à
Bíblia um sentido novo: o barro é a metáfora do
inorgânico", argumentou o pesquisador.
(MT)