Jesus:
mitológico ou histórico? Sobretudo, literário
Apesar
de não ter deixado nenhum documento escrito de próprio punho
– assim como Sócrates – Jesus Cristo não tem sua
existência questionada – diferente do que acontece com o filósofo
grego. Trata-se de uma das figuras históricas sobre as quais mais documentos
se tem na literatura – seja ela “oficial” ou de ficção.
Pelo critério da múltipla confirmação, a partir
do relato de sua vida feito por diferentes autores que nunca se viram, ele
de fato existiu. Por um lado, é tido como um revolucionário
histórico assassinado por se auto-proclamar o Rei dos Judeus dentro
dos domínios de um ainda poderoso Império Romano. Por outro,
é um semi-deus mitológico cujas glórias foram cantadas
por legiões de admiradores, tal como o Ulisses das epopéias
gregas. Seja de ficção ou não, literatura sobre ele é
o que não falta.
De
acordo com a historiadora Eliane Moura Silva, da Unicamp, os fatos da vida
de Cristo são relatados de passagem em alguns textos antigos, como
a Vida dos Judeus, de Flávio Josefo, que viveu entre os anos 37 d.C.
e 103 d.C., porém de forma pontual e não muito extensiva. Segundo
ela, há estudos que revelam ser verdadeiras muitas das referências
históricas contidas nos Evangelhos do Novo Testamento, que
tratam da vida de Cristo, mas que também foram escritos posteriormente.
“Trata-se de período conhecido da história do Império
Romano, embora a Judéia [onde Jesus viveu] não fosse a principal
preocupação nem a província romana mais importante na
época”, afirma.
Uma
dessas referências históricas é o reinado de Herodes Antibas,
durante o qual Jesus nasceu. Como esse reinado acabou quatro anos antes do
marco zero do calendário cristão os pesquisadores são
praticamente unânimes em afirmar que o nascimento de Jesus se deu, na
verdade, entre os anos 6 a.C. e 7 a.C.. Outra unanimidade é que nenhum
pesquisador, atualmente, atribui ao Santo Sudário valor histórico
para provar a existência de Jesus. Uma pesquisa iniciada pelo brasileiro
Carlos Chagas Filho, que foi Decano da Pontifícia Academia de Ciências
do Vaticano, datou o tecido tido como Santo Sudário como sendo do século
VII, não podendo ter sido usado para cobrir o rosto de Cristo em sua
crucificação.
Luis
Carlos Susin, da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica
(PUC) do Rio Grande do Sul (RS), também menciona os textos literários
como os principais documentos históricos de que os pesquisadores dispõem
para o estudo do período em que Cristo viveu. Segundo ele, através
do encadeamento de uma literatura secundária – sobre os relatos
bíblicos – e estudos de evolução histórica
das línguas nas quais foram escritos o Antigo Testamento (hebraico)
e o Novo Testamento (grego), é possível ter bases científicas
para os fatos em torno de Jesus narrados na Bíblia.“A
arqueologia ajuda na confirmação e na contextualização,
mas permanece muda, sem documentos literários”, acredita Susin.
Já
Israel Finkelstein, diretor do Instituto de Arqueologia da Universidade de
Tel Aviv, em Israel, diz que sua área de pesquisa é a única
que fornece dados novos em relação ao que já se conhece
sobre os fatos relatados na Bíblia. Uma das recentes descobertas
arqueológicas foram as ruínas de um antigo local de peregrinação
religiosa, cuja datação indicou que ele teria sido construído
por volta do século III d.C. Essas ruínas estavam nas margens
do rio Jordão, onde Jesus teria sido batizado por João Batista,
segundo o relato bíblico. Outros achados arqueológicos são
os restos de um barco e de uma casa que teria sido de um dos discípulos
de Jesus, em Cafarnaum, uma aldeia de pescadores onde ele começou a
pregar.
O
historiador André Chevitarese, do Laboratório de História
Antiga da UFRJ e do Núcleo de Estudos Estratégicos, da Unicamp,
explica que existem dois tipos de pesquisa arqueológica relacionada
a fatos bíblicos. Uma é fundada nas religiões judaico-cristãs,
com viés religioso, tentando provar a veracidade da Bíblia,
e político, tentando provar que as terras da região de Israel
sempre pertenceram aos judeus. A outra vertente parte de relatos como os do
Velho Testamento para procurar, por exemplo, restos arqueológicos
materiais em regiões descritas pelo texto bíblico, sem uma finalidade
prévia de comprovar ou refutar a Bíblia.
“Parece
existir uma contradição entre a narrativa dos Livros dos Reis,
que fala de Salomão, e o que foi encontrado pelos arqueólogos”,
exemplifica Chevitarese. Segundo ele, não havia nenhum vestígio
de construções suntuosas datadas do século X a.C., época
em que teria reinado Salomão. “As grandes construções
que os relatos bíblicos atribuem ao período fazem parte de um
discurso ideológico para valorizar Salomão em relação
a outros reis. Isso significa que devemos ter cautela sobre a literatura da
época”, avalia.
Outro
achado importante, que mobilizou arqueólogos, historiadores, filólogos
e cientistas da religião, foram os pergaminhos encontrados em vasos
de cerâmica nas cavernas de Qumram, próximas ao Mar Morto. Esse
material, que pôde ser visto no Brasil em exposições no
Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, e na Pinacoteca de São
Paulo, inclui pedaços de manuscritos originais de textos do Velho
Testamento – correspondente à Torá judaica –
e textos de reflexão dos essênios, que explicam por que essa
comunidade de judeus foi para o deserto viver segundo suas tradições:
eles haviam brigado com os sacerdotes do Templo de Jerusalém, que segundo
eles, haviam violentado as leis da Torá. Apesar de nada informarem
sobre Jesus ou o cristianismo, esses documentos revelam que um judeu celibatário,
como Cristo, não era tão incomum assim naquele período.
Para
o arqueólogo israelense, os relatos do Antigo Testamento –
que narram desde a criação do homem até a longa travessia
dos judeus pelo deserto antes de sua chegada à terra prometida de Canaã
– são uma mera coleção de mitos e epopéias
literárias criados a partir do século VII a.C. E o teólogo
James Veitch, diretor do Programa de Estudos Religiosos da Victoria University
of Wellington, na Nova Zelândia, diz o mesmo inclusive a respeito dos
Evangelhos do Novo Testamento que, segundo ele, seriam histórias
orais, em sua origem, nas quais as figuras centrais são seres sobre-humanos
ou divinos – como as epopéias gregas que deram origem à
literatura ocidental.
“O
testemunho transmitido por tradição oral nos primeiros séculos
têm um peso decisivo, que não pode ser descartado”, pondera
Susin, da PUC-RS. Mas Veitch, em The birth of Jesus: history or myth,
afirma que Jesus foi basicamente um bom judeu que fez o melhor de si para
apresentar Deus a seus contemporâneos, e teria sido Saulo de Tarso –
que ficou conhecido posteriormente como Paulo – o responsável
pela disseminação do cristianismo e pela divinização
de Jesus. “Foi o grupo que catequizou Paulo que colocou a ressurreição
como elemento central da cristandade de Jesus. E Paulo, um judeu helenizado,
que falava grego e vivia em cidades, soube dialogar com outras culturas não
judaicas, disseminando o cristianismo”, confirma Chevitarese.
A
literatura de ficção, a exemplo de alguns teólogos e
historiadores, também explora um lado mais humano e menos divino de
Jesus. Entre os vários exemplos, estão O evangelho segundo
Jesus Cristo, de José Saramago, e A última tentação
de Cristo, de Nikos Kazantzakis, este último adaptado para o cinema
por Martin Scorsese. Ambos exploram uma relação amorosa que
Cristo teria tido com Maria Madalena e que não aparece nos Evangelhos.
No recente best-seller O código Da Vinci, de Dan Brown, a
protagonista Sophie, neta do diretor do Museu do Louvre, em Paris, descobre
ao final da trama, ser uma descendente direta da linhagem iniciada na relação
entre Jesus e Madalena.
Sobre
essa suposta relação, a historiadora da Unicamp Eliane Moura
Silva observa que há muita coisa escrita no gênero romance. Os
autores vão desde grupos que repensam esta questão como uma
tradição paralela que a Igreja nega ou esconde, para justificar
o celibato dos padres, até grupos feministas que querem rever a questão
do celibato e da ordenação feminina. “Alguns autores,
como Saramago, buscam, nessa relação sensual e amorosa, recuperar
o Cristo humano submetido ao comum que é a marca da vida de homens
e mulheres. Não há muito que comprove nada disso do ponto de
vista de documentação de ‘época’”,
diz.
Para
Susin, pesquisador da PUC-RS, a leitura preconceituosa da história
da cristandade pintando Madalena como uma mulher pecadora não condiz
com os textos dos Evangelhos, nos quais ela aparece como uma discípula
proeminente. “Mas disso passar a ser a relação íntima
de Jesus, é tocar na imaginação, no desejo e na inquietação,
o que é uma sacada de mercado”, diz Susin. “O autor consegue
incluir um elemento deixado à sombra numa cultura patriarcal: a mulher,
a sexualidade no coração da espiritualidade, a relação
de gênero”, completa.
Se
os historiadores e arqueólogos não podem dizer nada a respeito
do grau de intimidade na relação entre Madalena e Jesus, é
possível pelo menos fornecer pistas sobre o homem que ele foi. Chevitarese
menciona escavações arqueológicas que encontraram restos
de um teatro grego datado de 20 d.C. em uma cidade a 6 km de Nazareth, onde
Jesus nasceu, chamada Séforis, na qual ele provavelmente trabalhou
na mesma profissão de seu pai, como carpinteiro. O pesquisador da UFRJ
lembra uma palavra muito usada por Jesus – hipócrita, que em
grego significa “ator de teatro” ou “aquele que usa máscara”
– para levantar a hipótese de que ele não era um matuto,
mas um homem urbano que teve contato com a cultura helênica em Séforis,
próxima à sua cidade natal. Mais um aspecto que, de certa forma,
permite relacioná-lo com o Ulisses das epopéias literárias.
(RC)