Arte opõe
razão e fé
Filmes consagrados como Giordano
Bruno, O ponto de mutação, Contato, O corpo, o
romance de Umberto Eco, também adaptado para o cinema, O
nome da Rosa, a famosa peça teatral Galileu Galilei
de Bertolt Brecht e o inesquecível Os irmãos
Karamazov de Dostoievski, são exemplos de
produções no campo do cinema e literatura que abordam a
relação entre ciência e religião. Embora
muitas transformações tenham acontecido nessa
relação no decorrer da história, “em geral, quando
a arte trata desta temática ainda abriga uma dicotomia
simplória entre razão e fé, ou entre razão
e irracionalismo”, analisa o historiador Carlos André
Macêdo Cavalcanti, da Universidade Federal da Paraíba.
Essa abordagem, que opõe as duas instituições,
resulta no estabelecimento de hierarquias de poder, reforçando
uma pretensa superioridade e vitória da razão sobre a
fé. Assim, ela dificulta qualquer possibilidade de
diálogo entre ciência e religião.
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Leonardo da Vinci, entre
a arte, a ciência e a religião
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De um lado a
ciência, que emprega a razão e lida com o mundo objetivo,
do outro a religião como aquela que lida com o mundo espiritual
e emprega a fé. Nem sempre foi assim. A separação
e incompatibilidade entre ciência e religião foram
construídas no decorrer dos tempos e o principal motor dessa
história foi a disputa pelo saber e pelo poder. Houve um momento
em que não havia as distinções atuais das formas
de conhecimento, lembra o professor de filosofia Norberto Mazai.
Grandes nomes das artes como Michelangelo, da Vinci, Bernini e Rafael,
foram também grandes nomes na esfera da ciência e da
religião, uma vez que estas andavam juntas no Renascimento. “As
artes eram geradas de forma a expressar os dogmas religiosos e, ao
mesmo tempo, estavam impregnadas de ciência que se infiltrava na
religião, mesmo sem que esta percebesse”, diz.
Cavalcanti identifica
três momentos marcantes na relação entre as duas
instituições: a separação entre fé e
regulação religiosa da vida no ocidente medieval;
seguido, logo após, pela fase em que o medo e a
desconfiança mútuas levaram aos julgamentos
inquisitoriais e ao contra-ataque iluminista, que pretendia consolidar
o domínio da ciência; e, por fim, experimentamos uma
reaproximação lenta e gradual entre fé e
ciência. Em sua análise, embora a arte tenha acompanhado
esse processo, sendo, inclusive, parte dele, há um
predomínio de imagens que estabelecem uma dicotomia entre
ciência e religião, especialmente nas
produções artísticas que ganharam maior
visibilidade.
A cruz e o
astrolábio
No filme e no romance
O nome da Rosa, Willian de Baskervile (interpretado por Sean
Connery) é o representante da ciência. É um monge
franciscano, ex-inquisidor, que chega a um mosteiro beneditino
construído no século XIII nas profundezas das montanhas
na Itália, para investigar as misteriosas mortes que afligem uma
comunidade religiosa.
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Cena do filme O nome da Rosa
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Carrega consigo
instrumentos como o astrolábio e o quadrante, utilizados pelos
mouros e desconhecidos da maioria dos cristãos, que indicam os
modernos (para a época) métodos da ciência que
pretende usar em suas investigações. À luz da
razão, Willian usa métodos de pesquisa sofisticados para
reunir as provas necessárias e chegar à verdade. Serve-se
de pegadas, indícios, testemunhas, levanta hipóteses,
testa, busca pistas que não são visíveis à
maioria dos mortais; como as frases no pergaminho, apagadas com suco de
limão, que se revelam aos olhos do investigador na chama de uma
vela.
No lado oposto
estão monges que alimentam a idéia de que uma
força sobrenatural, demoníaca, tomou conta do lugar,
relacionando as mortes com a profecia do Apocalipse. Durante uma
conversa, Willian rebate as suspeitas de ação
demoníaca dizendo: “A única prova que vejo do
demônio é o desejo de todos em vê-lo atuar”. O
nome da Rosa coloca como centro de sua trama a ciência como
o caminho que conduz à verdade e ao saber, e a religião
como o caminho da irracionalidade e do obscurantismo.
No mosteiro beneditino, a
biblioteca representa a fonte de saber que, para os monges, precisa ser
protegida. Nas palavras de Willian: “Ninguém deveria ser
proibido de consultar estes livros. Os livros contêm uma
sabedoria diferente da nossa. Idéias que nos fariam pôr em
dúvida a infalibilidade da palavra de Deus. A dúvida
é inimiga da fé”. Em outra cena Willian ironiza “Se eu
tivesse resposta para tudo ensinaria teologia em Paris”, denotando a
forte influência das idéias iluministas na
criação de seu personagem. Descartes, precursor do
Iluminismo e considerado o pai do racionalismo, defendia a
dúvida racional como o caminho para se alcançar a
compreensão do mundo e mesmo de Deus. Em uma de suas obras mais
famosas, O discurso do método, recomenda que, para se
chegar à verdade, se duvide de tudo, mesmo das coisas
aparentemente verdadeiras.
No artigo “O nome da
Rosa: a personagem Guilherme Baskerville” (Guilherme é a
versão portuguesa para o nome Willian), João Carlos
Antunes, Sandra Matos Soares e Vitor Augusto Santos, do Instituto
Superior Politécnico de Viseu, em Portugal, mostram como o filme
e o livro criam a imagem de que para os religiosos o acesso ao saber
deve passar pela morte. O saber é representado pela biblioteca
do mosteiro, cujo acesso é feito por entre os túmulos dos
mortos ou por um túnel repleto de caveiras e ossadas que passa
por baixo do cemitério. A idéia é reforçada
quando Willian revela o resultado de sua investigação: as
mortes estão relacionadas com o livro desaparecido de
Aristóteles, que aborda o riso como instrumento da verdade, e
que teve suas páginas envenenadas por um dos monges que odiava a
comédia e via no riso uma possibilidade de dúvida sobre
Deus. O final do filme mescla cenas das fogueiras santas, da revolta de
populares contra os inquisidores que recusaram as
soluções para o caso apontadas por Willian e do
incêndio da biblioteca, provocado pelo monge que impedia o acesso
ao livro do riso.
Dicotomia: forma
de compreender do mundo
Etienne Samain,
antropólogo e pesquisador da área de cinema da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), lembra que a
oposição entre fé e razão, religião
e ciência, alma e corpo, é um velho problema da
humanidade. “Esse dualismo não corresponde à realidade.
É uma forma que temos encontrado de colocar ordem no mundo. Mas
deveríamos aprender que toda oposição é,
antes de tudo, um sistema de relações que temos que
descobrir em filmes como O nome da Rosa, Giordano Bruno e Galileu. Essa
separação gera uma total impossibilidade de
diálogo entre ciência e religião”.
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Giordano Bruno se
opõe à Igreja
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Em Giordano Bruno, que se
passa no século XVI em Veneza, o italiano Giuliano Montaldo
opõe de forma irreconciliável ciência e
religião, sendo esta considerada um entrave irracional ao
desenvolvimento científico. Giordano é um
filósofo, ex-sacerdote, que é torturado e condenado pela
Santa Inquisição Romana pelas idéias
científicas divulgadas em seus livros e discursos. Ao defender,
por exemplo, o modelo heliocêntrico, Giordano rejeita os dogmas
fundamentais da Igreja Católica. “O Cosmo... é eterno,
infinito. A Terra é um dos mundos, e nós, que estamos
sobre ele, giramos ao redor do Sol sem perceber. Os astros estão
ligados às pequenas coisas da Terra. A Lua às
marés, à menstruação das mulheres, o sol
dá vida às plantas, a nós seres humanos...”.
Nas próprias
palavras do filósofo surge a ameaça que constitui esse
conhecimento para a Igreja: “Uma nova concepção do Cosmos
tem que corresponder a uma nova concepção de homem”. A
essa fala segue uma cena em que se ouve o discurso inflamado de
Giordano. entre gritos e aplausos de estudantes de uma universidade:
“Se isto é verdade, e é verdade, Deus não
está no alto, fora do mundo, mas em cada partícula de
matéria, inerte ou viva. Deus é a própria
matéria. Queremos livre a filosofia, queremos livre a pesquisa
científica. Queremos autonomia do pensamento e da ciência
de qualquer autoridade... Enxotemos das universidades os pedantes e os
carolas. Só assim pode nascer um novo homem”.
Montaldo, o diretor,
sofreu fortes influências do clima político da
época e seus filmes integram uma corrente da época de sua
produção, o neorealismo italiano, que se volta para as
problemáticas sociais e defende os ideais de liberdade. Em Giordano Bruno, a ciência
é o grande veículo para a liberdade humana. O
clímax do filme é o julgamento de Giordano, quando um dos
inquisidores pergunta-lhe: “E a verdade católica?”, a qual
responde Giordano ironicamente com outra pergunta: “Existem duas
verdades: uma católica e outra filosófica?”. A autoridade
vaticana responde de forma incisiva: “A verdade é uma só:
a revelada por Deus e custodiada pela Santa Madre Igreja”.
Na peça do poeta e
dramaturgo alemão Brecht, o cientista italiano Galileu Galilei
não foi queimado na fogueira como Giordano, mas induzido a
negar, durante a inquisição, a reafirmação
da teoria de Copérnico de que a Terra gira em torno do Sol. Teve
sua liberdade cerceada e foi obrigado a abrir mão de seus
princípios.
Em Os irmãos
Karamazov, o autor russo Dostoievski também promove um
confronto entre ciência e religião com os irmãos
Ivan, o intelectual ateu, e Alieksiei, o seminarista, conferindo uma
força poderosa ao ateísmo, que é representado pela
ciência e pela burguesia. O capítulo O grande
inquisidor é dedicado a esse confronto e coloca em
pólos opostos a felicidade espiritual e a terrena.
Cavalcanti vê, nesses filmes
e obras literárias, as inquisições e os atos inquisitoriais,
católicos ou protestantes, na base de uma relação que
se estabelece entre ciência e religião. Para ele, “esse
debate já foi minimizado e a cultura ocidental sentiu as repercussões
diretas dessa censura até meados do século XX. Algumas permanências
daquela mentalidade ainda poderão aparecer no discurso religioso e
nos atos do novo Papa católico Bento XVI. Entretanto, o poder de dominar
o mundo com as 'fogueiras da fé' já não é plausível.
Católicos e protestantes, com algumas exceções, admitem
a ciência”. Ele ainda ressalta que “muitos cientistas é
que não admitem a interlocução com outros saberes. É
preciso lembrar que esses mundos não nasceram separados”. Etienne
Samain, por sua vez, acha que “a principal contribuição
do cinema e da literatura na abordagem dessa temática é denunciar
essa falsa dicotomização entre espírito e matéria,
corte e ruptura que, infelizmente, carregamos desde os tempos de Descartes”.
(SD)