Mulher ou sociedade: quem
decide sobre o aborto ?
Os balanços sobre
o pontificado de João Paulo II que ocuparam recentemente a
mídia e as expectativas em torno do papado de Bento XVI mostram
que é nas questões ligadas à sexualidade e
à ciência que a Igreja Católica, no mundo
contemporâneo, tem revelado o seu perfil mais conservador. No
Brasil, nos debates sobre a Lei de Biossegurança, sancionada no
dia 24 de março, as bancadas católica e evangélica
tentaram barrar a aprovação da lei por discordarem da
utilização de células-tronco embrionárias
de seres humanos. Suas alegações baseavam-se na
inviolabilidade do direito à vida do embrião, que deveria
ser considerado como pessoa desde o momento da
fecundação. Ainda em tramitação no Supremo
Tribunal Federal, a liberação da
interrupção da gravidez nos casos de feto sem
cérebro - a chamada anencefalia - tem encontrado
resistências em argumentos semelhantes. E, assim como no caso das
células-tronco embrionárias, a discussão vem
mobilizando argumentos religiosos e científicos sobre o estatuto
da vida e o debate sobre a descriminalização do aborto no
país está ganhando novos contornos.
Em carta
endereçada ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana,
a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) -
representante dos interesses do episcopado brasileiro - se posiciona
contrariamente à liberação do aborto nos casos de
anencefalia do feto utilizando como um dos argumentos o fato de que o
Estado brasileiro deve reconhecer a posição da Igreja
como expressão da vontade dos seus cidadãos, na medida em
que a maioria deles seriam católicos: "No Brasil, o cristianismo
se confunde com a nossa história. Daí que os valores
cristãos fazem parte da formação cultural de nossa
sociedade. Um Estado laico respeita os valores religiosos de uma
sociedade e os considera na formulação de suas
decisões. Os poderes e as instituições do Estado
decidem em nome e para o povo, daí que não pode desprezar
ou ignorar esses valores em suas decisões. Um Estado laico
não supõe indiferença ante a religiosidade dos
cidadãos".
Mas estariam de fato todos os brasileiros
de acordo com a posição da Igreja Católica de condenação
absoluta ao aborto, em quaisquer circunstâncias? Embora a cientista
política Kátia Nishimura tenha constatado, numa pesquisa que
partiu dos dados do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb) 2002, uma
posição de tendência conservadora em relação
à descriminalização do aborto no Brasil, pode-se dizer
que os brasileiros estão divididos sobre o assunto.
Em artigo publicado na revista Opinião Pública do Centro de Estudos
de Opinião Pública (Cesop), a pesquisadora constatou uma posição
predominante em relação ao aborto: para 51% dos entrevistados,
a interrupção da gravidez deve ser permitida somente em situações
particulares, como no caso de uma gravidez provocada por estupro. Mesmo assim,
a alternativa de que o aborto deveria ser proibido em qualquer situação
foi apontada por parte significativa dos entrevistados (37,4%) e apenas 11,5%
concordam que o aborto deva ser permitido em qualquer situação.
Em relação às religiões, a opinião de que
ele deve ser permitido somente em uma situação específica
é compartilhada pela maioria dos entrevistados: católicos (50,
8%), evangélicos pentecostais (47,1%) e não-pentecostais (58,3%),
religiões afro-brasileiras (no caso da umbanda, por exemplo, 66,7%)
e também os que declararam não ter religião (59%). Já
para os adeptos de religiões como os mórmons, os adventistas
e testemunhas de Jeová, o aborto deve ser proibido em qualquer situação
(65,4%).
Novas premissas
no debate
Em países de forte
tradição católica, como é o caso do Brasil,
as posições que caracterizam o debate sobre o aborto
oscilam entre o direito à vida do feto e o direito à
autonomia reprodutiva da mulher para deliberar sobre o seu
próprio corpo. E, no caso da legislação brasileira
sobre o aborto - o Código Penal de 1940, que o tipifica como
crime contra a vida e contra a pessoa, excluídos os casos de
gravidez resultante de estupro ou que ofereça sérios
riscos para a saúde da mulher - a autonomia de decisão da
mulher tende a ficar em segundo plano em relação ao
status jurídico do feto, considerado pessoa a ser protegida pelo
Estado.
Essa
definição do status jurídico do feto, presente no
Código Penal, está orientada por preceitos de cunho
religioso sobre a origem da vida, mais especificamente os da Igreja
Católica: "O pressuposto da santidade da vida do feto é
um ato de fé que se traduz na legislação penal
pela proibição do aborto mesmo em estágios
precoces de gestação. A teoria da potencialidade [da
vida], ao sustentar que entre um embrião humano e um adulto
há somente um lapso de tempo, suporta a
criminalização do aborto como um ato delitivo contra a
pessoa", afirma a antropóloga Débora Diniz do Instituto
de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), do Distrito
Federal.
Débora Diniz tem
sido uma protagonista importante no debate recente a respeito da
revisão da legislação sobre o aborto no Brasil:
ela foi uma das responsáveis pela elaboração da
petição apresentada pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) junto ao Supremo
Tribunal Federal (STF) requisitando a liberação da
interrupção da gravidez nos casos de anencefalia do feto.
Para tanto, a CNTS utilizou um instrumento jurídico novo: a
Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF), que permite que uma ação seja apresentada
diretamente ao STF, sem recorrer a instâncias jurídicas
intermediárias. A argumentação utilizada na ADPF
é a de que a interrupção da gravidez nos casos de
anencefalia não se enquadra na tipificação penal
do crime de aborto e, sendo assim, impedi-la seria uma
infração dos princípios constitucionais: exigir de
uma mulher a gestação de um feto considerado clinicamente
morto seria um ato de tortura e violação do direito
à saúde, à liberdade e à dignidade.
Segundo os dados da
Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil
é o quarto país do mundo em partos de anencéfalos,
estando atrás do México, Chile e Paraguai. Em julho de
2004, uma liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio de Mello
liberou a interrupção da gravidez nesses casos. Essa
liminar vigorou durante quatro meses, durante os quais 58 mulheres
foram beneficiadas pela resolução. Em outubro desse mesmo
ano, a liminar foi suspensa devido a um pedido feito pelo
procurador-geral da República, Cláudio Fonteles e por
pressão, contrária à resolução, por
parte da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). No
último dia 27 de abril, o STF rejeitou esse pedido de
suspensão. O processo continuará em julgamento e
está prevista a realização de audiências
públicas sobre o assunto.
Esse recente processo
jurídico que exige o reconhecimento do direito da mulher de
interromper a gravidez nos casos de feto com anencefalia representa uma
mudança de perspectiva importante no debate público sobre
a descriminalização do aborto no Brasil. Embora a Igreja
Católica esteja intervindo no debate, as discussões no
âmbito do STF estão sendo feitas a partir de premissas
jurídicas e científicas.
A posição
da Igreja Católica sobre o aborto em casos de anencefalia
insiste em contrapôr os direitos do feto aos direitos da mulher
"a carta da CNBB, citada anteriormente, traz uma
"indagação indispensável" a ser feita, segundo a
entidade, no debate sobre a interrupção da gravidez nos
casos de anencefalia: "o direito da mulher grávida ao bem-estar
é mais importante que o direito do feto anencefálico
à sua frágil vida?"
Segundo Débora
Diniz, esse "dilema paralizante entre o princípio da vida do
feto versus a autonomia reprodutiva da mulher" que sempre caracterizou
as discussões sobre o aborto no Brasil, está sendo
superado em nome de uma discussão mais laica, baseada em
argumentos científicos: "A argumentação da ADPF
prescindiu de um acordo moral sobre o status do feto para a defesa da
moralidade da interrupção da gestação em
casos de anencefalia. Ou seja, foi possível avançar no
debate sobre a moralidade do aborto a partir de outras premissas, sem
que antes houvesse um acordo sobre o status moral do feto. E para essa
mudança de perspectiva, as características
clínicas da anencefalia foram decisivas", explica Débora
Diniz em artigo publicado nos Cadernos de
Saúde Pública da Fundação
Oswaldo Cruz.
A anencefalia é
uma má-formação caracterizada pela ausência
de desenvolvimento de uma parte do cérebro - o encéfalo -
que torna a vida do feto inviável, seja no útero ou
imediatamente após o parto. A inevitabilidade da morte do feto,
segundo Débora Diniz, foi o que sustentou a tese sobre a
interrupção da gravidez nos casos de anencefalia,
já que, assim, ela não poderia ser enquadrada nos casos
de criminalização do aborto previstos no Código
Penal e que se baseiam na idéia de crime contra a vida e contra
uma pessoa em potência.
A
argumentação da ADPF, baseada na literatura médica
internacional na qual existe um consenso sobre a inviabilidade fetal
nos casos de anencefalia, conseguiu, assim, contornar a
controvérsia moral que caracteriza a definição
penal do aborto como um crime contra a pessoa. Houve, portanto, um
deslocamento no debate no qual se deixou de discutir o que determina a
origem da vida humana para se tratar das definições
médicas e jurídicas sobre a morte. Na medida em que um
feto anencefálico não possui atividade cerebral devido
à ausência do encéfalo, foi possível
estabelecer uma analogia entre o quadro clínico do
anencéfalo com a de uma pessoa em estado de morte cerebral, que
deve ser considerada como morta de acordo com o Conselho Federal de
Medicina.
Segundo a Febrasgo,
estima-se que, desde 1989 pelo menos 3 mil processos autorizaram
mulheres a interromper a gestação em casos de
má-formação do feto. A maioria dessas mulheres
eram pobres e usuárias do Sistema Único de Saúde
(SUS), o que exigia a autorização judicial para a
realização do procedimento médico. Débora
Diniz lembra que somente com a popularização da ecografia
na rede pública - exame médico que permite o
diagnóstico da anencefalia do feto - em meados dos anos 1990,
é que a discussão sobre a interrupção da
gravidez nesses casos deixou de ser travada entre as quatro paredes dos
consultórios médicos privados para se tornar um debate
público.
O feminismo, a
Igreja Católica e a reprodução
O enfoque sobre a
saúde e o conceito de saúde reprodutiva marcaram a
configuração do movimento feminista internacional a
partir do final da década de 1960. A máxima defendida
pelo movimento de defesa dos direitos das mulheres era "nosso corpo nos
pertence". Associado à noção liberal
clássica do indivíduo como portador de direitos, o
feminismo reivindicava, portanto, o direito da mulher de dispor sobre o
seu próprio corpo e, sendo assim, questões ligadas
à maternidade e à sexualidade da mulher que até
então pertenciam ao domínio privado foram trazidas para o
debate público: as feministas passaram a reivindicar a
maternidade como escolha e a vivência da sexualidade separada da
reprodução. Essas reivindicações resultaram
nas lutas pelo direito à contracepção e ao aborto
que marcaram a atuação do movimento feminista em
países desenvolvidos como os Estados Unidos e a França.
No Brasil e na
América Latina como um todo, o acesso aos métodos
contraceptivos e a legalização do aborto - juntamente com
a prevenção e o tratamento das doenças sexualmente
transmissíveis, novas tecnologias reprodutivas tais como a
fertilização in vitro, gravidez na adolescência, e
outras questões ligadas à reprodução -
constituem os chamados direitos reprodutivos das mulheres e são
as bandeiras contemporâneas principais do movimento feminista
nesses países.
Na medida em que essas
reivindicações estão ligadas à
questão da reprodução, setores mais conservadores
da Igreja Católica têm se posicionado contra elas, uma vez
que a doutrina da Igreja proíbe as relações
sexuais sem finalidade procriatória. A Igreja Católica
entra, assim, em choque com as premissas históricas do feminismo
citadas acima: a livre escolha da maternidade e a possibilidade da
mulher viver a sua sexualidade separada da reprodução.
Existiria, nesse caso, uma contradição
incontornável entre o feminismo e a Igreja?
Para Regina Soares
Jurckewicz, doutoranda em ciências da religião pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP) e integrante da organização
não-governamental Católicas pelo Direito de Decidir (CDD)
é possível conciliar feminismo e catolicismo, na medida
em que as questões ligadas à sexualidade não
seriam dogmas da Igreja Católica, ou seja, questões de
fé sobre as quais não caberia questionamento. "Ao
contrário do que comumente se pensa, as questões de moral
sexual não são questões dogmáticas e sim
disciplinares, e não tiveram tratamento igual durante os dois
mil anos de vida da Igreja Católica. Podemos observar no
pensamento da própria Igreja como tem sido, historicamente, o
tratamento dado para temas polêmicos como o aborto. Na verdade, a
Igreja Católica condena o aborto em quaisquer
circunstâncias há questão de pouco mais de cem
anos. Antes disso, havia divergências", afirma.
Segundo Regina, a
condenação absoluta ao aborto acontece, no interior da
Igreja Católica em 1860, o que evidenciaria o fato de que ela
foi historicamente construída, não sendo, portanto,
inerente ao pensamento católico. A associação
entre a fecundação e a origem da vida "que faz com que o
embrião, na ótica católica, já deva ser
considerado como pessoa "também teria sido questionada na
história da Igreja. "Qual é o problema para a Igreja? A
idéia de que, com o aborto está-se matando uma alma. Mas
a teologia, em determinado contexto, define que o momento de
incorporação dessa alma acontece quarenta dias depois da
concepção, no caso dos homens, e oitenta dias depois no
caso das mulheres. Esse é o pensamento de São
Tomás de Aquino (1225-1274) que prevaleceu como hegemônico
durante muito tempo. Historicamente, portanto, nunca houve
condenação absoluta ao aborto no interior da Igreja para
permitir que ela se tornasse um dogma católico, já que,
para tanto, deve haver um consenso absoluto", completa a doutoranda.
(CC)