Acesso
e gerenciamento dos serviços de saúde: o dilema do
SUS na nova década1
Pedro
Luiz Barros Silva
A ausência
de mecanismos eficazes de regulação e ordenamento
da oferta buscando viabilizar o acesso e a melhor utilização
dos serviços do SUS por parte dos usuários, no nível
macro e micro organizacional, contribui de forma decisiva para a
persistência de problemas relacionados à baixa eficácia
do sistema de saúde brasileiro. Para tanto e com base em
alguns dos principais trabalhos e pesquisas existentes, a nível
internacional e nacional, será feita uma síntese das
reformas introduzidas no setor saúde no que se refere à
cobertura, financiamento, resolutividade e eqüidade na utilização
dos serviços, AVALIANDO-AS na perspectiva do acesso do usuário
ao sistema.
Buscar-se-á
examinar quais as potencialidades da atual estratégia de
implementação do SUS para contribuir no aperfeiçoamento
do sistema de saúde dos brasileiros viabilizando os princípios
básicos de universalidade, igualdade e integralidade. Procurar-se-á,
levando em conta as avaliações das experiências
internacionais, indicar uma agenda de pontos críticos que
deveriam ser considerados no aperfeiçoamento do SUS, em direção
da maior eficiência, eficácia e eqüidade na utilização
dos serviços disponibilizados à população
através das ações estatais no setor.
1.
A experiência internacional de reforma do setor saúde:
lições a considerar no caso brasileiro
A reforma do setor saúde esteve muito em moda, no plano internacional2,
na década dos 90. A partir de distintos pontos de partida,
consolidou-se um conjunto de pressões sobre os governos nacionais
no sentido de alterar o perfil das políticas públicas
setoriais. Entre essas pressões, é possível
destacar:
· Aumento do nível real de gasto setorial,
com forte aumento do gasto público, exigindo formas mais
eficazes de controle governamental;
· Convicção entre os gestores públicos
e privados de que o tipo de gasto realizado não otimizava
o uso dos recursos existentes e disponíveis para o setor;
· Possibilidade de expansão do volume de gasto
setorial real era muito limitada face tanto às pressões
e dificuldades decorrentes dos distintos ajustes nas economias nacionais,
quanto ao volume já expressivo do gasto setorial enquanto
participação do PIB;
· Aumento expressivo da complexidade das condições
de oferta e demanda dos serviços;
· Problemas, mais ou menos agudos, no que se refere
às condições de eqüidade no acesso aos
serviços por parte dos usuários, especialmente os
de menor renda, dependendo da situação nacional em
exame;
· Problemas generalizados no que se refere às
condições de escolha dos pacientes determinada pela
característica comum dos provedores de serviço em
se mostrarem pouco sensíveis aos direitos dos pacientes enquanto
usuários e consumidores de serviços.
Na
base desses fatos comuns aos países ocidentais, tanto na
Europa Ocidental quanto nas Américas, evidenciam-se três
questões de ordem estrutural, presentes com distinta intensidade
em cada situação nacional.
A primeira
delas envolve as mudanças demográficas, especialmente
aquelas decorrentes do envelhecimento da população
e do declínio imediato ou futuro da população
economicamente ativa, o que determinaria um aumento da demanda por
serviços de maior complexidade e custo e tenderia a tornar
cada vez mais problemática a capacidade de resposta dos serviços
(Eurostat, 2000). Note-se que mesmo em países onde essa transição
não impõe um perfil "envelhecido" da população
de forma imediata, o simples fato de passar a existir uma população
que tende a ser predominantemente adulta pode e vem atuando na mesma
direção. Isso ocorre porque também os cuidados
médicos tendem a ser mais onerosos quando um grupo populacional
adulto está submetido a condições de trabalho
e obtenção de rendimentos cada vez mais depauperadoras
de suas condições físicas e mentais: transformações
das condições de trabalho que tendem a tornar-se qualitativamente
piores dada a maior flexibilidade e instabilidade dos postos oferecidos;
aumento de desemprego aberto etc.. Esse é, sem dúvida,
o caso de vários países latinoamericanos, com destaque
para o Brasil.
A segunda
decorre das dificuldades de equacionamento do financiamento e gasto
públicos nos quadros de ajustes financeiros macroeconômicos
que vêm determinando o corte e a redução da
capacidade de intervenção estatal, sem que se tenha
delineado com clareza novas e consolidadas formas, comprovadamente
eficazes e efetivas, de parceria entre o setor público e
o privado e entre os níveis nacionais e subnacionais de governo
(no caso de unidades federativas) e entre o nível central,
regional e local de governo (no caso de estados unitários).
Essa questão torna-se mais grave nas situações
nacionais localizadas na periferia do sistema financeiro e econômico-produtivo,
submetidas a um passado inflacionário desastroso e que, a
despeito de terem obtido condições de estabilidade
da moeda, o fizeram através de estratégias macroeconômicas
antagônicas à viabilização de etapas
posteriores de desenvolvimento econômico sustentado, dificultando
as condições de ajuste do setor público e com
custos sociais elevados.
A terceira
questão decorre das significativas alterações
nas tecnologias disponíveis na área de cuidados médicos
(processos, equipamentos e fármacos), alterando o perfil
de provisão dos serviços (oferta) com impactos fortes
no sentido de criação de novas demandas e novas necessidades
de financiamento. Nesse sentido, as expectativas dos usuários
crescem, convergindo para a exigência de novos padrões
de atendimento. De forma diferenciada para cada situação
nacional, essas novas exigências parecem refletir um mix envolvendo
simultaneamente a oferta de novos serviços, possibilidades
de ampliação de acesso a serviços até
então disponíveis para segmentos diferenciados economicamente
e maiores níveis de informação e educação
de parcelas da população usuária e que passam
a exigir tratamentos mais complexos e sofisticados.
Todo
esse contexto, aqui delineado de forma bastante genérica,
aponta para uma tendência convergente de orientação
nas modificações das políticas públicas
e privadas para o setor. De um lado, países que centravam,
de forma quase exclusiva, a organização de serviços
nas regras de mercado passam a utilizar instrumentos de planejamento
e de regulação, mais visíveis até então,
nas práticas administrativas do setor público. De
outro lado, países com forte tradição de organização
estatal dos serviços - ênfase em mecanismos de planejamento,
avaliação e controle centralizados - passam a utilizar
cada vez mais os instrumentos administrativos e gerenciais que permitem
a introdução de formas administradas de competição
no interior do sistema de atenção à saúde
e mecanismos de regulação que diminuem as formas diretas
de intervenção do setor público na operação
dos serviços.
Com
base na literatura disponível para um conjunto significativo
de países europeus e americanos, é possível
identificar duas importantes lições para o caso brasileiro:
· Em primeiro lugar, não existe ainda uma tendência
consolidada de financiamento e gestão dos sistemas de saúde
que permita demonstrar a superioridade de modelos centrados exclusivamente
nas regras de mercado ou ao contrário na intervenção
estatal plena. Esse ponto, aparentemente óbvio, deixa de
ser ao final dos anos 90 uma questão ideológica: a
evidência empírica mostra que ainda se busca intensamente
novos instrumentos de política que superem a dicotomia Estado
x Mercado e consigam integrar as capacidades públicas (estatais
e não estatais) e privadas de forma sinérgica, o que
ainda não foi obtido com pleno sucesso por nenhuma experiência
nacional.
· Em segundo lugar, que o "coração
das reformas" está ligado, no plano geral, à
modificações, tanto no nível macro quanto no
nível micro, das forma de financiamento dos sistemas e das
suas formas de organização, gestão e regulação,
o que inclui modificações importantes em certos pressupostos
do modelo assistencial adotado. A maior probabilidade de sucesso
na empreitada está ligado tanto à escolha das modificações
em cada campo - financiamento e gestão - quanto nas possibilidades
de combinar sinergicamente seus resultados criando bases políticas,
institucionais e societais de sustentabilidade das transformações
introduzidas.
1.1.
Características comuns dos processos de reforma nos países
europeus e norteamericanos
A partir da segunda metade dos anos 80, combinaram-se e foram
estimuladas políticas diferenciadas de intervenção
procurando alterar condições de operação
dos sistemas nacionais, no plano macro e micro organizacionais.
No
que diz respeito ao macro funcionamento dos sistemas de saúde,
foram adotadas predominantemente fórmulas para obter a contenção
de custos e para definir uma política de transferências
do nível central de governo para instâncias descentralizadas
ou sub-nacionais, conforme cada caso, que favorecesse tal processo.
Esse tipo de decisão decorre do exame do funcionamento e
desempenho das três formas básicas para a qual convergem
os distintos mecanismos de financiamento dos sistemas de atenção
à saúde: financiamento público baseado em impostos;
financiamento público baseado em contribuições
compulsórias da previdência social; finalmente o financiamento
privado baseado em seguros específicos para a atenção
à saúde (Maxwell, 1988). Nesse sentido, a experiência
internacional tem demonstrado maiores deficiências no desempenho
dos sistemas de financiamento de bases voluntárias controlado
por regras tipicamente de mercado (incerteza e risco desse tipo
de seguro; existência de "risco moral" afetando
tanto o comportamento de usuários e provedores de serviço
- sobreutilização associada ao uso inapropriado de
equipamentos e terapias; incentivos à seleção
adversa de pacientes; maiores dificuldades para obter coberturas
universalizadas e acesso equânime; altos custos administrativos).
De outro lado, sistemas financiados por impostos ou por contribuições
compulsórias, embora relativamente exitosos no processo de
contenção de custos - através da utilização
de orçamentos globais com base prospectiva para hospitais;
controles centrais para a construção e aquisição
de instalações e equipamentos respectivamente; limitações
nas remunerações das equipes médicas e sua
padronização; tabelas padronizadas de remuneração
de procedimentos; restrições no processo de formação
de profissionais etc. - enfrentaram problemas no campo da qualidade
dos serviços, na produtividade obtida e na excessiva burocratização
e centralização de procedimentos e controles acarretando
custos administrativos também bastante elevados.
Esse
processo de "aprendizado institucional" dos diferentes
sistemas determinou uma alteração estrutural de modelos
privatizados e públicos (esses últimos também
conhecidos como modelos integrados de financiamento e provisão
de serviços) para modelos contratuais integrados, a partir
de bases de mercado - caso americano - ou bases públicas,
como no caso europeu de forma geral.
Com
isso, alteram-se de forma ainda mais significativa as condições
micro organizacionais de funcionamento dos sistemas de atenção
onde se procurou combinar:
· Iniciativas para aumento da eficiência e melhora
da resolutividade da rede de serviços, através da
separação de provedores e financiadores como mecanismo
de introdução de competição administrada
(ou quase mercados) no interior desse novo modelo contratual;
· Reforço e melhoria das condições
internas de gestão das unidades prestadoras de serviço
em todos os níveis de atendimento buscando-se minimizar variações
de desempenho e introduzir uma nova cultura organizacional onde
se ampliasse o poder de escolha dos pacientes; se melhorasse as
condições de acesso; se reduzisse os tempos de espera
nas listas de cuidados eletivos; se aumentasse a qualidade da prestação
de serviços.
As
modificações de nível e macro e micro quando
combinadas envolveram:
a.
intenso investimento e melhoria dos sistemas de informação
voltados à decisão gerencial, possibilitando um fluxo
ágil e efetivo de dados acerca das principais transações
realizadas pelo sistema e por suas unidades;
b. programas de capacitação em gestão
para médicos, enfermeiros e outros profissionais da equipe
de saúde;
c. aumento dos graus de responsabilização e
autonomia decisória dos gestores do sistema nos níveis
regionais e periféricos, nas unidades prestadoras de todos
os tipos e no interior dessas mesmas unidades;
d. terceirização de todas as atividades onde,
comprovadamente, o setor privado possuía maior competência;
e. contratação de gestores profissionais para
atividades de gerenciamento dos sistemas ou de suas unidades hospitalares,
ambulatoriais ou de atenção primária;
f. adoção de "pacotes" de incentivos,
incluindo incentivos salariais, visando a obtenção
de resultados mais eficazes e efetivos, seja no plano macro seja
no plano micro organizacional;
g. utilização de mecanismos e incentivos orçamentários
e financeiros como meio de aumentar o desempenho dos sistemas e
adequar a oferta dos serviços às necessidades da população-alvo.
2.
Dilemas e perpectivas do SUS
No Brasil, a despeito da complexidade dos problemas de ordenamento
e acesso - tal como demonstrado em vários trabalhos indicados
na bibliografia e neste próprio artigo, em sua versão
integral - é possível identificar elementos propulsores
à implementação de alterações
na estratégia de intervenção governamental
nas três esferas de governo, para superar os obstáculos
para o efetivo controle da oferta de serviços visando melhorar
o acesso dos usuários, especialmente os de mais baixa renda.
Entre outros cabe lembrar:
·
o perfil do processo de descentralização, em curso,
é favorável em grande parte de seus aspectos;
· existem recursos para investimento, que se utilizados
como vetores de reorientação da oferta via REFORSUS,
auxiliaram na obtenção de maior eficácia da
rede de serviços;
· formas de organização da Administração
Pública brasileira, principalmente pós Plano Diretor
da Reforma Administrativa e no âmbito de um novo governo com
perfil desenvolvimentista, podem garantir a flexibilidade e autonomia
necessárias para o funcionamento das redes prestadoras de
serviço, permitindo maior controle da oferta;
· o formato dos mecanismos de financiamento setorial
pode tornar-se pró-ativo, por exemplo através da adoção
de vinculações institucionais associadas ao estabelecimento
de pisos básicos em todos os níveis de atendimento,
auxiliando uma sistemática de contratualização
que efetivamente seja aderente às necessidades e prioridades
diferenciadas de atendimento hierarquizadas via ações
de planejamento, avaliação e controle;
· reestruturação, em curso, da Atenção
Primária abre boas possibilidades para o estabelecimento
de uma porta de entrada mais resolutiva e eficaz;
· já existem várias inovações
organizacionais e gerenciais em andamento e coerentes com uma mecânica
de contratualização que vise aumentar os níveis
de acesso, cobertura e ordenamento das ações e serviços,
além de alternativas de planejamento da oferta baseados em
novos e mais efetivos critérios de microregionalização.
Pedro
Luiz Barros Silva é professor do Instituto de Economia (IE)
e Coordenador do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas
(NEPP) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). São
Paulo, Brasil.
Notas
1.
Artigo cuja íntegra será publicado no próximo número da revista
São Paulo em Perspectiva da Fundação SEADE de São Paulo, dedicada
ao tema da Saúde do Trabalhador. [voltar]
2.Para uma competente e sintética revisão das lições
internacionais acerca dos experimentos nacionais de reforma setorial,
em curso desde meados dos anos 80 Vide Ham (19.97). Esta introdução
baseia-se numa livre interpretação de várias idéias contidas nesse
livro. [voltar]
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