O
Repto da Proteção
Carlos Vogt
I
Políticas públicas compensatórias e de
emancipação são necessárias e
indispensáveis em qualquer país, sobretudo naqueles,
como o Brasil, que receberam uma herança poderosa de
problemas sociais resultantes da longuíssima duração
de uma estrutura econômica baseada no trabalho escravo.
Uma
das marcas da sociedade brasileira, decorrente dos tempos
coloniais e, em especial, dessa estrutura econômica
escravista, que se estendeu até fins do século
XIX, é a aversão das classes dominantes ao trabalho
e, mais especificamente, ao trabalho manual. O binômio
escravidão/latifúndio engendrou a predominância
da vida rural, uma "monarquia tutelar", do ponto
de vista político, uma economia, além de escravista,
monocultora e um ethos social fundado na cordialidade.
Raízes
do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado
em 1936, depois de Casa Grande e Senzala (1933) de
Gilberto Freyre, consolida entre nós a abertura do
grande ciclo de busca intelectual das razões e das
causas econômicas, políticas e culturais responsáveis
pelo insucesso do Brasil, se comparado a grandes nações,
como os Estados Unidos. A herança ibérica que
conformou o nosso caráter, contrastando uma ética
da aventura, a "plasticidade social do português"
que permitiu uma interação intensa entre o colonizador
e o colonizado, são aspectos fundamentais da cultura
brasileira e do sentimento poderoso de insatisfação
que germina no país em relação aos destinos
da República. Levam, em conseqüência, a
todo um esforço de compreensão histórico-social
das raízes de um malogro, que se contrapõe à
ilusão de modernidade e de contemporaneidade internacional
que se segue à Abolição da Escravatura
em 1888 e à Proclamação da República,
no ano seguinte.
Abre-se,
assim, na história do país, um ciclo de estudos
voltado para a nossa formação, incluindo aí
aqueles traços próprios da formação
cultural portuguesa e que permanecem essenciais para a interpretação
da formação da cultura brasileira.
São
inúmeras as obras que incluem em seu próprio
título o termo formação e todas
elas, até hoje, de leitura indispensável para
o estudo e o entendimento da história e da sociedade
brasileiras. Em ordem cronológica: Casa Grande &
Senzala: formação da família patriarcal
brasileira (1933), de Gilberto Freyre; Formação
do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr.;
Formação histórica de São Paulo
(de comunidade a metrópole) (1954), de Richard Morse;
Formação da literatura brasileira (1957),
de Antônio Cândido; Formação
econômica do Brasil (1958), de Celso Furtado; Os
donos do poder: formação do patriarcado nacional
(1959), de Raimundo Faoro; Formação histórica
do Brasil (1962), de Nelson Wernek Sodré; Formação
política do Brasil (1967), de Paula Beiguelman;
A formação do federalismo no Brasil (1961),
de Oliveira Torres.
Sob
diferentes pontos de vista, este esforço intelectual
de "ajustes de contas" com o passado, em muitos
casos, resultou positivo; em muitos outros, no caso da realidade
social do país, acabou sendo atropelado pela dinâmica
do crescimento da população e pelo processo
de pauperização crescente que com ela cresceu
e se multiplicou.
O
Brasil, desde a Abolição da Escravatura e a
Proclamação da República, passou por
diferentes representações no cenário
das relações internacionais: aspirou integrar
o conceito das nações, foi país de terceiro
mundo, subdesenvolvido, país em desenvolvimento e,
hoje, está entre os chamados de economia emergente,
havendo mesmo aqueles mais otimistas que já o inserem,
um degrau acima, na classe dos assim denominados prospectivos,
seja lá o que for o que isso realmente signifique.
II
Machado
de Assis, em seus romances e em suas crônicas traz várias
situações em que se representam as relações
sociais entre brancos senhores e negros escravos, ou libertos,
que dão fina medida da qualidade e do peso dos problemas
que essa sociedade escravocrata legaria para as gerações
futuras do Brasil. O Brasil de consciência infeliz,
melodramaticamente, penalizado, mas incapaz, na prática,
de superar efetivamente as distâncias sociais geradas
pela proximidade emocional e tutelar do patriarcalismo familiar
que marcou e ainda marca boa parte da cultura de nossas relações
individuais e institucionais.
Assim, em Helena, de 1876, cuja protagonista principal, de
mesmo nome, recebe, como filha natural, uma herança
do Conselheiro Vale, seu pai, com a condição
de ir viver na casa onde vivem seus outros dois filhos, Úrsula
e Estácio, lê-se no capítulo IV:
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|
"Pouco
havia ganho no espírito de D. Úrsula; mas a repulsa
desta já não era tão viva como nos primeiros
dias. Estácio cedeu de todo, e era fácil; seu
coração tendia para ela, mais que nenhum outro.
Não cedeu, porém, sem alguma hesitação
e dúvida. A flexibilidade do espírito da irmã
afigurou-se-lhe a princípio mais calculada que espontânea.
Mas foi impressão que passou. Dos próprios escravos
não obteve Helena desde logo a simpatia e boa vontade;
esses pautavam os sentimentos pelos de D. Úrsula. Servos
de uma família, viam com desafeto e ciúme a parenta
nova, ali trazida por um ato de generosidade. Mas também
a estes venceu o tempo. Um só de tantos pareceu vê-la
desde o princípio com olhos amigos; era um rapaz de 16
anos, chamado Vicente, cria da casa e particularmente estimado
do conselheiro. Talvez esta última circunstância
o ligou desde logo à filha do seu senhor. Despida de
interesse, porque a esperança da liberdade, se a podia
haver era precária e remota, a afeição
de Vicente não era menos viva e sincera; faltando-lhe
os gozos próprios do afeto, - a familiaridade e o contacto,
- condenado a viver da contemplação e da memória,
a não beijar sequer a mão que o abençoava,
limitado e distanciado pelos costumes, pelo respeito e pelos
instintos, Vicente foi, não obstante, um fiel servidor
de Helena, seu advogado convicto nos julgamentos da senzala." |
Em
Iaiá Garcia, de 1878, logo no Capítulo
I, o escravo liberto Raimundo nos é apresentado como
fazendo parte da família do viúvo Luís
Garcia, integrado afetivamente nas relações
com a sinhá moça Lina, a Iaiá Garcia
do título do romance, e atuando, nas palavras do narrador
"como um espírito externo de seu senhor; pensava
por este e refletia-lhe o pensamento interior, em todas as
suas ações, não menos silenciosas que
pontuais."
Luís
Garcia, por temperamento e escolha era calado, sério,
reflexivo e ponderado; Raimundo, por caráter, era bom
e dedicado e, por condições, servil e prestativo,
tendo como que interiorizado o seu papel numa relação
de mando sem necessidade de que o outro, senhor, vivesse a
enunciá-la no dia-a-dia de sua convivência:
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"Luís
Garcia não dava ordem nenhuma; tinha tudo à hora
e no lugar competente. Raimundo, posto fosse o único
servidor da casa, sobrava-lhe tempo, à tarde, para conversar
com o antigo senhor, no jardinete, enquanto a noite vinha caindo."
|
Já
em Memórias póstumas de Brás Cubas,
de 1880, a visão de além túmulo que tem
de si mesmo o narrador é mais crua e mais direta quando
contemplada à luz de seus relacionamentos, ainda criança,
com os escravos da casa, de um modo geral, e com o moleque
Prudêncio, em particular:
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"Por
exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque
me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e,
não contente com o malefício, deitei um punhado
de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui
dizer à minha mãe que a escrava é que estragara
o doce "por pirraça"; e eu tinha seis anos.
Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos
os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel
nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso,
com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas
a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo,
- mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um -"ai,
nhonhô!" - ao que eu retorquia: - "Cala a boca,
besta!"" |
Em
Dom Casmurro, de 1899, o narrador-personagem Bentinho numa
das visitas do amigo Escobar à sua casa em Mata-Cavalos,
o mesmo amigo suspeito da traição histórica,
que nunca se desvendou, com a meiga e prática Capitu,
mostra-se de corpo inteiro com a roupagem da autoridade indiferente
ou da indiferença autoritária que também
constituiu o rol de predicados das relações
entre senhores e escravos no Brasil do século XIX.
Além disso, mostra, na mesma cena, a propósito
do binômio roça/cidade, tema da conversação
entre os dois, a ideologia de fundo que subjaz à oposição
trabalho/riqueza, em que um é visto como coisa de negros
e escravos e o outro de brancos senhores.
Quer
dizer, o trabalho é vergonha e o ócio é
nobreza, embora o desfrute do segundo não seja possível,
para os brancos, sem a rude e triste aspereza das condições
em que se faz o primeiro.
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|
"[...]
E não contávamos voltar à roça?
- Não, agora não voltamos mais. Olhe, aquele preto
que ali vai passando, é de lá. Tomás!
- Nhonhô!
Estávamos na horta da minha casa, e o preto andava em
serviço; chegou-se a nós e esperou.
- É casado, disse eu para Escobar. Maria onde está?
- Está socando milho, sim, senhor.
- Você ainda se lembra da roça, Tomás?
- Alembra, sim, senhor.
- Bem, vá-se embora.
Mostrei outro, mais outro, e ainda outro, este Pedro, aquele
José, aquele outro Damião...
- Todas as letras do alfabeto, interrompeu Escobar.
Com efeito, eram diferentes letras, e só então
reparei nisto; apontei ainda outros escravos, alguns com os
mesmos nomes, distinguindo-se por um apelido, ou da pessoa,
como João Fulo, Maria Gorda, ou de nação
como Pedro Benguela, Antônio Moçambique...
- E estão todos aqui em casa? perguntou ele.
- Não, alguns andam ganhando na rua, outros estão
alugados.
Não era possível ter todos em casa. Nem são
todos os da roça; a maior parte ficou lá." |
No
livro de crônicas Bons dias, duas delas, ambas
de 1888, uma do dia 19 de maio e outra do dia 26 de junho,
registraram, com a fina ironia que é própria
do autor e com o cinismo oportunista característico
de muitos de seus personagens, duas situações
reveladoras do ethos dos senhores no day after
do ato legal da abolição.
Na
primeira, do dia 19 de maio, seis depois da promulgação
pela princesa Isabel da Lei Áurea, o cronista nela
representado, apresenta-se como um profeta post factum
e vangloria-se, para efeito de suas aspirações
políticas, de ter-se antecipado ao 13 de maio alforriando
"um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos mais
ou menos."
De
maneira sinceramente hipócrita relata ainda, explicando
seu gesto pela causa final de seus interesses pessoais e estes,
pelas razões eficientes da classe social a que pertence:
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"O
meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular
que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes
da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia
da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda
a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo
aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposição)
é então professor de filosofia no Rio das Cobras;
que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos,
não são os que obedecem à lei, mas os que
se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre,
antes que os poderes públicos, sempre retardatários,
trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na
terra, para satisfação do céu." |
Na
outra, a do dia 26 de junho transcorridos mais de um mês
da abolição, o nosso cronista fictício
arquiteta agora maneiras de tirar proveito econômico
e não apenas político da nova situação.
Como
um Tchitchikof dos trópicos trata de comprar, tal qual
no romance de Gogol, Almas mortas, no caso, escravos
libertos, com documentos datados de antes do 13 de maio e,
assim, poder "vendê-los" ao poder público
para recuperação das "perdas" sofridas
com a abolição.
|
|
"Suponha
o leitor que possuía duzentos escravos no dia 12 de maio,
e que os perdeu com a lei de 13 de maio. Chegava eu ao seu estabelecimento,
e perguntava-lhe:
- Os seus libertos ficaram todos?
- Metade só; ficaram cem. Os outros cem dispersaram-se;
consta-me que andam por Santo Antônio de Pádua.
- Quer o senhor vender-mos?
Espanto do leitor; eu, explicando:
- Vender-mos todos, tanto os que ficaram, como os que fugiram.
O leitor assombrado:
- Mas, senhor, que interesse pode ter o senhor...
- Não lhe importe isso. Vende-mos?
- Libertos não se vendem.
- É verdade, mas a escritura de venda terá a data
de 29 de abril; nesse caso, não foi o senhor que perdeu
os escravos, fui eu. Os preços marcados na escritura
serão os da tabela da lei de 1885; mas eu realmente não
dou mais de dez mil-réis por cada um." |
III
Tomando como referência o quadro que esses excertos
desenham não é excessivo pensar que há
mais acertos do que erros, no que diz respeito à população
negra brasileira, em medidas como as que contemplam cotas
nas universidades ou ressarcimentos, por perdas históricas,
para comunidades remanescentes de quilombos.
Durante alguns anos, desenvolvi, juntamente com Peter Fry
e com Robert Slenes, um trabalho de pesquisa com a comunidade
negra do Cafundó, no município de Salto de Pirapora,
na região de Sorocaba.
Publicamos,
em 1996, um livro Cafundó - a África no Brasil
(Cia. das Letras, editora da Unicamp, São Paulo/Campinas)
com os resultados dessa pesquisa, focando a análise
e a interpretação das questões sociais,
culturais e políticas da comunidade no uso ritual,
mas cotidiano, da "língua africana", a cupópia,
característica das relações entre os
seus membros e destes com a sociedade envolvente.
Participei
do esforço de várias entidades, também
da Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo
e do ITESP - Instituto de Terras do Estado de São Paulo
- no sentido de oferecer laudos técnicos que permitissem
reconhecer no Cafundó uma comunidade legítima
e legalmente remanescente de antigos quilombos, tomando-se
para o termo, como escreveu Joel Rufino dos Santos, da Fundação
Cultural Palmares, "uma definição larga
e elementar: [...] aglomerados rurais de produtores livres,
com maioria de negros, instalados há cem anos ou mais,
por ocupação espontânea ou doação
senhorial."
O
Cafundó cabe inteiramente no conceito de quilombo,
assim estendido.
Não
sei se cabe, contudo, na letra da lei que se idealiza mas
não se conforma com a legitimidade de uma aspiração
histórica a que é mais do que urgente fazer
justiça.
Como
o Cafundó de Salto de Pirapora há outros tantos,
negros e brancos, não só nas profundezas do
Brasil profundo mas aí mesmo nas franjas horizontais
e verticais das grandes cidades.
Políticas
públicas de proteção social são
cada vez mais imprescindíveis às ações
dos governos em seus diferentes níveis para que o Estado
não perca de vista a responsabilidade cívica
e a obrigação ética de formar cidadãos
capazes de produzir e reproduzir eles próprios, no
domínio de suas relações individuais,
pessoais e sociais, a presença e a força dessa
responsabilidade.
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