Uma reforma silenciosa e irreversível
Em meio a tantas reformas legais e administrativas
discutidas em todo o país, há uma que passa quase despercebida pelos
que não estão na mesa de debates: é a reforma no sistema de atendimento
psiquiátrico brasileiro. Apesar de lenta, ela tem avançado, e interessa
diretamente aos brasileiros que buscam auxílio na rede pública de
saúde, podendo alterar radicalmente o sistema de atendimento. Há dez
anos, desde quando foi apresentado no Congresso o primeiro projeto
prevendo reforma no sistema de saúde mental do país, parece consenso
que essas mudanças são extremamente necessárias. Depois dessa primeira
proposta, surgiram diversas outras e o próprio Ministério da Saúde
já criou uma comissão com a exclusiva função de discutir a melhor
maneira de realizar as mudanças.
O motivo dessa unanimidade é claro: a legislação
que atualmente vigora no país sobre a questão psiquiátrica data de
1934 e permite atitudes como o seqüestro manicomial de qualquer pessoa
que tenha sido diagnosticada como portadora de transtorno mental,
uma medida cada vez mais condenada nos meios médicos. E não são poucos
os que têm interesse em mudar esse sistema antiquado. Até agosto de
1999, foram internados na rede pública do país para atendimentos psiquiátricos
276 mil pessoas, numa média de 34 mil internações por mês, segundo
o Sistema Único de Saúde.
Ocorre, entretanto, que depois de reconhecida a necessidade
de reformas ninguém consegue efetivamente realizá-las: o projeto de
reforma manicomial, que data de dez anos atrás, de autoria do deputado
federal Paulo
Delgado (PT-MG) está parado no Congresso e, aparentemente, tem
poucas chances de ser aprovado em breve. Além disso, a comissão criada
pelo Ministério da Saúde para avaliar as mudanças não se reúne há
mais de seis meses.
Longe de ser consenso entre as partes interessadas
(doentes mentais e seus familiares, governos e hospitais), o projeto
de Paulo Delgado propõe uma mudança radical no sistema: seriam proibidas
a partir de sua aprovação novas internações em hospitais psiquiátricos
e toda rede de hospitais do tipo seria extinta em cinco anos (20%
ao ano). Além disso, o projeto propõe tratamentos alternativos e a
interferência de uma autoridade judiciária que decida ou não pela
internação caso isso seja solicitado pelo paciente. Embora tenha sido
aprovado na Câmara dos Deputados, o projeto foi muito alterado no
Senado, que apresentou um substitutivo mais comedido, que também está
parado nos trâmites internos da casa. Nele, condiciona-se a ação do
Ministério Público a um pedido ou denúncia da família, o que contraria
os movimentos antimanicomiais, que defendem que pessoas internadas
involuntariamente tenham o direito de nomear um advogado e de solicitar
uma junta de julgamento para que ela apure a necessidade de sua internação,
a exemplo das recomendações que a Organização
Mundial de Saúde fez para os sistemas de atendimento psiquiátrico.
"O projeto-de-lei do Paulo Delgado pode não ser aprovado,
mas já é o responsável por algumas mudanças muito importantes", diz
Sylvio Pellicano, superintendente da Federação das Santas Casas e
Hospitais Filantrópicos do Estado de São Paulo e membro da comissão
formada pelo Ministério da Saúde para a reforma psiquiátrica. Entre
as mudanças importantes que ele destaca estão as alterações ocorridas
nos últimos anos nas legislações de diversos estados e municípios
que beneficiam os doentes psiquiátricos (Rio Grande do Sul, Paraná,
Minas Gerais, Distrito Federal, Pernambuco, Ceará, Ribeirão Preto/SP
e Rio Grande/RS).
Através delas, boa parte dos serviços
tem passado para as mãos dos municípios...