O
uso inadequado de medicamentos entre idosos
Suely
Rozenfeld
O
Consumo
O uso de medicamentos entre os indivíduos acima de 65 anos
é fator de preocupação, dada a possível
ocorrência de reações adversas num organismo
mais frágil. Dois aspectos podem agravar o problema: a
qualidade da regulamentação sanitária e da
assistência médico-farmacêutica.
Os
órgãos de regulamentação - no Brasil
denominados vigilância sanitária - autorizam o registro
de produtos farmacêuticos insuficientemente testados, sem
comprovação satisfatória de eficácia
e de segurança, sem monitoração pós-comercialização,
e com efeitos semelhantes aos de outros, já registrados.
Como resultado, o perfil dos produtos oferecidos ao consumidor
retrata as motivações econômicas dos fabricantes,
e não as necessidades dos usuários.
Quanto
à qualidade da assistência médica, suas distorções
são conhecidas por todos: rede privada voltada para o lucro
e rede pública tornada inoperante pelo processo de privatização
do Estado. Resultado: baixas cobertura e resolutividade, principalmente
para aqueles que contam apenas com o SUS. A qualidade da assistência
farmacêutica e da prescrição é igualmente
inadequada: difusão insuficiente de informação
científica, farmácias comerciais praticantes vorazes
da empurroterapia, desarticulação entre os profissionais
de saúde - médicos, farmacêuticos, dentistas.
Além disso, há uso vicário dos produtos farmacêuticos;
eles são empregados como sucedâneos de um estilo
de vida saudável, e tomados mais pelos seus valores simbólicos
do que por suas propriedades terapêuticas.
Face
às distorções na produção,
na regulamentação, na prescrição e
no uso de medicamentos, não é de estranhar que quase
¼ dos idosos receba no mínimo um fármaco
impróprio (Gurwitz, 1994)!
Cerca
de 90% dos idosos consomem pelo menos um medicamento, e 1/3 deles
cinco ou mais, simultaneamente (Stuck et al., 1994.; Polloow et
al., 1994). Seu uso irracional se traduz em consumo excessivo
de produto supérfluos, ou não indicados, e subutilização
de outros, essenciais para o controle das doenças. A média
de produtos usados por pessoa oscila entre 2 e 5 (Chrischilles
et al.; Laukkanen, 1992.; Anderson & Kerluke, 1996). São
preditores do uso a idade avançada (Baedel, 2000), o sexo
feminino, as piores condições de saúde e
a depressão (Chrischilles,1990; Chrischilles, 1992). Entre
as classes terapêuticas mais consumidas estão os
produtos os cardiovasculares, os anti-reumáticos, e os
analgésicos.
Alguns
estudos nacionais confirmam, em linhas gerais, os números
dos estudos feitos em outros países quanto ao número
médio de produtos consumidos (Barros, 1983; Miralles, 1992);
confirmam também o aumento do uso com a idade (Haak, 1989;
Franco,1986/87), no sexo feminino (Veras, 1994:119), com o aumento
da renda familiar, e com o número de sintomas (Miralles,
1992). As classes terapêuticas mais usadas pelos idosos
são as do sistema cardiovascular, os antireumáticos,
e os analgésicos e antipiréticos (Miralles, 1992).
Os psicotrópicos , produtos que atuam sobre o sistema nervoso
central, em geral ansiolíticos e sedativos (Tancredi, 1979)
são muito utilizados, sobretudo entre os viúvos
ou separados (Wortman, 1994).
Potencial
para efeitos adversos
Há diversos indicadores úteis para avaliar o potencial
danoso dos medicamentos usados numa população, entre
os quais a proporção de multiusuários; de
usuários de produtos inadequados, que interagem entre si,
ou de produtos redundantes (com a mesma finalidade terapêutica).
Numa
população razoavelmente sadia, a proporção
de usuários de múltiplos medicamentos - acima de
5 produtos, por pessoa, em média - é um indicador
de baixa qualidade da prescrição, embora usar muitos
medicamentos não seja, sempre, conseqüência
de prescrição inapropriada. É comum os idosos
apresentarem múltiplas patologias e serem, portanto, candidatos
ao "multiuso". Mas há, quase sempre, um conjunto
de medidas não farmacológicas, dietéticas,
higiênicas, e de hábitos mais saudáveis, capazes
de evitar as doenças ou diminuir as conseqüências
negativas das existentes. Infelizmente, as substâncias químicas
têm sido seus sucedâneos, nem sempre mais eficazes.
Entre as conseqüências negativas da polifarmacoterapia
estão as interações (medicamento-medicamento,
ou medicamento-alimento); o descumprimento das prescrições
de produtos essenciais para o controle das doenças; e os
gastos excedentes com os de uso supérfluo.
Nem
todos os fármacos usados pelos adultos são indicados
para os que têm acima de 65 anos de idade. Há vinte
deles, potencialmente, contra-indicados para os idosos, entre
os quais os benzodiazepínicos e os hipoglicemiantes orais
de meia-vida longa; os barbituratos de curta duração;
os antidepressivos com forte ação anti-colinérgica;
os analgésicos opióides, como o propoxifeno; associação
em doses fixas de antidepressivos e antipsicóticos; a indometacina;
alguns relaxantes musculares como a orfenadrina e o carisoprodol
(Gurwitz, 1994). A proporção de usuários
de fármacos inadequados é um importante indicador
de qualidade da assistência. Entre os idosos norte-americanos
moradores em instituições, mais que 20% recebem
uma prescrição irracional de proproxifeno, benzodiazepínico
de ação prolongada, dipiridamol ou amitriptilina.
Essa proporção aumenta com o tempo de permanência
na instituição e com o número de fármacos
prescritos (Spore et al, 1997).
Entre
os idosos não internados em instituições
o quadro é similar. Quase ¼ dos norte-americanos
com 65 anos de idade, ou mais, não asilados, recebem pelo
menos um fármaco contraindicado (Willcox et al, 1994).
Na Califórnia/EUA, 14% dos idosos usam medicamentos impróprios,
sendo os mais comuns os benzodiazepínicos de ação
prolongada, a amitriptilina e a clorpropamida. Os sintomas depressivos
aumentam a probabilidade de usar medicação inadequada
(Stuck et al., 1994).
O
caráter lucrativo dos serviços e das instituições
privadas a abrigar os idosos, a abordagem ideológica da
equipe de enfermagem (holística, ou não) e a interação
dos médicos com a indústria farmacêutica,
são elementos que afetam o resultado do uso dos tratamentos
farmacológicos. Um estudo realizado em 33 clínicas
geriátricas suecas, mostrou que o treinamento precário
da equipe de enfermagem, resultou na falta de adesão aos
critérios técnicos de uso adequado de psicotrópicos.
Isso resultou no seguinte quadro: 367 residentes receberam prescrição
de antidepressivos sem registro de diagnóstico de depressão,
e 26 sem precrição de antidepressivos apresentaram
diagnóstico de distúbios depressivos (Schimidt et
al, 1998).
Na
Catalunia (Espanha), um inquérito comunitário estimou
uma proporção de uso significantemente maior de
"reativadores cerebrais" (produtos sem valor terapêutico
demonstrado) entre os acima de 65 anos de idade, comparados aos
com menos de 65 anos (Mas, 1983).
Um
outro estudo estimou em 20% a proporção de regimens
terapêuticos (fármaco/dose/freqüência)
com um evento de "mal uso". Entre os eventos identificados,
54,4% foram dosagem, indicação ou nível de
uso impróprios; 36,8% interações e 8,8% uso
redundante de produtos da mesma classe terapêutica. A aspirina
e o diazepam foram as substâncias mais freqüentemente
mal usadas (Bernstein, 1989).
No
Brasil, foi possível descrever o uso inadequado de medicamentos
pelas participantes de um centro de convivência para idosos,
situado no Rio de Janeiro (Unati/Uerj). Entre as 634 entrevistadas,
38% usaram 5 ou mais produtos; 16% eram susceptíveis de
apresentar interações, e 14% de sinergismo por uso
de 2 ou mais fármacos com a mesma função.
Dezessete por centro dos produtos consumidos eram contra-indicados
para os idosos, apesar de quase 90% do total terem sido prescritos
por médicos (Mosegui et al, 1999). Na mesma amostra, a
freqüência de uso diário de benzodiazepínicos
por 12 meses ou mais - prática condenável - foi
7,4% (Huf et al, 2000).
Atualmente, o uso de medicamentos pelos idosos tem gerado preocupação
quanto aos gastos excessivos e aos possíveis efeitos, benéficos
ou indesejáveis. O aprimoramento da farmacoterapia depende,
entre outras medidas, da atuação no campo da prescrição.
Frente
ao paciente idoso, deve-se idoso: estimular o emprego de medidas
não farmacológicas; acompanhar, com revisão
periódica, o conjunto dos medicamentos, e dos possíveis
efeitos adversos dos mesmos; preferir monodrogas (um produto,
uma substância), em detrimento das associações
em doses fixas; preferir fármacos de eficácia comprovada
através de evidências científicas; suspender
o uso, sempre que possível; verificar a compreensão
da prescrição, e das orientações farmacológicas,
ou não farmacológicas; simplificar os esquemas de
administração; prestar atenção aos
preços dos remédios prescritos.
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