Energia
limpa é o novo desafio para a ciência
Ulisses Capozoli
Desde
que o Prêmio Nobel sueco Svant Arrhenius tocou o problema
pela primeira vez, até que um climatologista norte-americano
confirmasse experimentalmente suas previsões, passaram-se
exatos 112 anos. Foi em 1863 que Arrhenius escreveu sobre o risco
de o clima da Terra ser alterado pelas crescentes emissões
de dióxido de carbono liberadas pela atividade industrial.
O artigo
de Wallace Broecker, do Observatório Geológico Lamont-Doherty,
nos Estados Unidos, apareceu em 1975, numa edição
da revista Science, órgão da Associação
Americana para o Avanço da Ciência, a AAAS.
Broecker,
provavelmente sem conhecer o texto de Arrhenius, retomou as idéias
do sueco para explicar o registro de uma lenta subida observada
nas médias das temperaturas globais. Ele descobriu o que
foi popularizado como efeito-estufa, aquecimento da Terra pelo aprisionamento
da energia solar que, com menor teor atmosférico de gás
carbônico, era devolvida ao espaço em maior escala.
As
temperaturas médias da Terra nunca foram as mesmas. Variações
na radiação solar, eventual travessia de nuvens de
poeira interestelar, uma perturbação no movimento
de translação e mesmo atividade vulcânica têm
sido apontados como as principais razões destas alterações.
O ciclo atual de aquecimento, no entanto, na avaliação
majoritária e crescente da comunidade científica internacional,
é indiretamente produzido pelo homem. Mais espeficamente,
pelas fontes de energia utilizadas pelo homem.
Desde
que usou o fogo pela primeira vez, a humanidade começou,
ainda que numa escala insignificante, a mudar a composição
da atmosfera e, assim, dar sua própria contribuição
para a variação climática, especialmente pela
elevação da temperatura global média.
As
mudanças significativas chegaram com a Revolução
Industrial. Quando as máquinas a vapor começaram a
se espalhar pelo mundo, por volta de 1750, a madeira era responsável
por 90% da energia disponível no mundo. Os dados são
de pesquisadores do Goddard Institute for Space Studies, nos Estados
Unidos.
Por
volta de 1890 o carvão mineral já superava a lenha
e seu predomínio chegou até os anos 60. Isso significa
que o carvão foi a fonte energética mais duradoura
do controvertido século 20. A partir dos anos 60, começou
o reinado do petróleo e esse predomínio estendeu-se
até 1999. No penúltimo ano do século passado,
o combustível líquido foi superado pelo gás
e essa forma de energia deve estender-se por um longo tempo, ainda
que sujeita a muitas transformações.
Do
ponto de vista prático, a maior eficiência de cada
um destes combustíveis, incluindo suas disponibilidades e
especialmente facilidades de transporte, contribuiram para essas
mudanças. Quanto ao impacto ambiental, como considera Seth
Dunn, num trabalho (Descarbonizing the Energy Economy) publicado
no State of the World -2001, do Worldwatch Institute, o relevante
é a redução na emissão de dióxido
de carbono por unidade de energia.
O carvão
libera duas moléculas de carbono para cada uma de hidrogênio
por unidade de energia, enquanto na lenha, essa relação
é de dez moléculas de gás carbônico por
uma de hidrogênio. Essa mudança, caracteriza Dunn,
foi a primeira onda da descarbonização da energia,
embora o impacto ambiental não fosse a preocupação
intencional na substituição.
Com
uma única molécula de carbono para duas de hidrogênio,
o óleo combustível deflagrou a segunda onda de descarbonização.
Mais eficiente, o gás natural desprende apenas uma molécula
de carbono para cada quatro moléculas de hidrogênio.
Essa fonte crescente de energia caracteriza a terceira e talvez
última fase da descarbonização. Antes da difusão
do hidrogênio, quando, finalmente, ninguém mais terá
peso na consciência por queimar combustível num final
de semana pelo simples prazer de pegar uma estrada e fazer deslocar
continuamente a linha do horizonte.
Entre
1950 e 1999, a tonelagem de liberação de gás
carbônico produzida por milhão de dólares de
crescimento econômico em todo o mundo teve uma redução
de 39%, caindo de 250 para 150 toneladas. Essa queda foi acentuada
na década passada, quando a redução aproximou-se
da taxa de 2% ao ano. É um comportamento promissor, mas nem
por isso livre de problemas, como revelam dados do painel das Nações
Unidas sobre mudanças climáticas, reunindo uma equipe
internacional de mais de 2 mil pesquisadores.
O problema,
neste caso, é que o ciclo global do carbono é um dos
processos mais complexos e por isso mesmo menos satisfatoriamente
conhecidos pela ciência. Dados do painel sobre mudanças
climáticas da ONU avaliam em 42 trilhões de toneladas
o volume de gás carbônico confinado na biosfera, uma
faixa de espaço que conecta a atmosfera e os oceanos. Os
mecanismos que transferem porções do gás de
uma a outra região da biosfera são ainda pouco conhecidos,
ainda que tenha havido avanços nos últimos anos.
Investigações
de bolhas de ar aprisionadas nas calotas polares do Ártico
e da Antártida sugerem que aproximadamente 270 bilhões
de toneladas de gás carbônico foram liberadas na atmosfera
desde o início da Revolução Industrial pela
queima de combustíveis fósseis. Os dados atuais são
de um despejo anual de outros 6,3 bilhões de toneladas, volume
só superado pela água, enquanto recursos manipulados
pela humanidade. Os dados são de pesquisadores do Oak Ridge
National Laboratory, nos Estados Unidos.
As
amostras de gelo polar, especialmente as colhidas na base russa
de Vostok, na Antártida, revelam que a quantidade de gás
carbônico na atmosfera, medida em partes por milhão
(ppm) é a maior dos últimos 420 mil anos. A base de
Vostok, onde fica o Pólo da Inacessibilidade, na Antártida,
é a região mais fria da Terra registrando temperaturas
próximas de 90 graus Celsius negativos no início dos
anos 1980. Em 1999, a concentração deste principal
gás do efeito-estufa na atmosfera chegou a 368,4 ppm, contra
280 ppm em 1750. O crescimento foi de 32%, com quase a metade deste
volume, 17%, concentrado apenas a partir de 1958.
Levantamentos
feitos pelo mesmo Goddard Institute of Space Studies, um dos centros
da pesquisa da agência espacial norte-americana (Nasa), avaliaram
a subida na temperatura global média de 0,6 grau Calsius
desde 1866. Este dado tem sido o ponto de partida para todas as
análises de climatologistas que atribuem o aquecimento à
atividade humana e não a processos naturais como a atividade
vulcânica que também libera gás carbônico,
além de material finamente particulado, os aerossóis
que, temporariamente, reduzem a temperatura atmosférica.
A ação dos aerossóis é comparada a uma
miríade de pequenos espelhos que refletem para o espaço
parte da radiação que chega do Sol.
Dados
relativos aos anos 90, obtidos por pesquisadores da University of
Massachusetts, sugerem fortemente que este período foi o
mais quente dos últimos 1000 anos, com o ano de 1998 batendo
o recorde de calor.
Como
o aquecimento tem se mostrado menor que o previsto pelas modelagens
físico-matemáticas, a principal ferramenta de trabalho
dos climatologistas, a dedução natural é que
parte dos estoques de gás carbônico foi absorvido pelos
oceanos. Com isso, os especialistas pensam que está sendo
montada uma bomba de calor que, mesmo que as emissões fossem
paralisadas agora, o que é impossível de ocorrer,
faria com que a atmosfera ainda sofresse aquecimento pelos próximos
dez anos.
O aquecimento
da atmosfera e do corpo inteiro da Terra por liberações
constantes de gás carbônico é considerado o
pior desastre ambiental da história da civilização.
Comparado ao efeito-estufa, o desaparecimento do Mar de Aral pelo
desvio das águas de dois rios que o alimentavam, é
um desastre menor, pois é um acontecimento localizado, se
é possível dizer que ocorrências desta escala
possam ter efeitos localizados, do ponto de vista ambiental.
É neste contexto que deve ser observada a crise de energia
elétrica no Brasil. Por dispor de hidrelétricas e
não de termoelétricas, alimentadas por combustíveis
fósseis, o Brasil tem emissões comparativamente reduzidas
de gás carbônico.
Um
dos maiores focos de emissão de gás carbônico
no Brasil são as queimadas registradas especialmente na Amazônia
para a formação de pastagens. A pecuária é
uma forma tradicional de posse de terras no Brasil e mesmo a pressão
ambiental que elas provocam, com o inconveniente adicional de perda
de biodiversidade, ainda não foram suficientes para alterar
essa prática arcaica, tanto do ponto de vista ambiental quanto
social.
A necessidade
de construir termoelétricas, movidas a gás, deve aumentar
as emissões de gás carbônico pelo Brasil, advertiu
o físico e especialista em energia Luiz Pinguilli Rosa, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), num encontro no final
de junho para debater esta crise.
Ao
liberar mais gás carbônico o Brasil estaria em contradição
com o Protocolo de Kyoto, acordo que assinou e defende nos foros
internacionais para a diminuição global dessas emissões.
Mais que isso, estaria na contra-mão de uma mudança
de rumos observada em países até recentemente grandes
e, aparentemente, despreocupados emissores deste gás, caso
da China. O consumo de carvão na China (24%), que divide
com os Estados Unidos (26%) a metade do consumo mundial dessa fonte
de energia, caiu 4% ao longo da década passada, com 25% desta
redução concentrada entre 1997 e 1999. Essa alteração
ocorreu pela desativação de indústrias obsoletas
e aumentos no consumo de gás.
Os
Estados Unidos, que se negam a assinar o Protocolo de Kyoto e com
isso têm merecido uma condenação internacional,
ao contrário da China, aumentaram em 11% seu consumo de carvão,
especialmente de qualidade inferior, de acordo com estimativas do
Worldwatch Institute.
Por
tudo isso, antes que chegue a prometida Idade do Hidrogênio,
as temperaturas na Terra devem subir. O aquecimento global não
significa que todas as partes do planeta ficarão mais quentes.
Ao contrário. Algumas podem até esfriar pela alteração
de correntes marinhas e regimes de ventos.
Os
cenários para esses eventos não são nada tranquilizadores:
tendência a elevar o estresse hídrico que já
é crítico em muitas partes, perdas de florestas por
queimadas, destruição de florestas nas bordas do Círculo
Polar Ártico que tende a se aquecer, perdas na agricultura,
por mudanças de temperaturas e regime de chuvas, perda de
biodiversidade com espécies animais, muitas delas endêmicas,
incapazes de readaptações num período de tempo
tão curto, subida dos níveis oceânicos tanto
pelo derretimento de gelo das calotas polares quanto dos cumes montanhosos
e elasticidade térmica das águas oceânicas,
tempestades violentas e destruidoras especialmente nos países
subdesenvolvidos, onde as populações vivem em áreas
degradadas, ou sensíveis a fenômenos naturais como
chuvas intensas.
O espalhamento
de doenças como malária e cólera são
outras das conseqüências de mudanças climáticas
produzidas por fontes de energia que liberam gás carbônico.
Pesquisadores norugueses estimam que, por volta de 2050, durante
a vida de boa parte da população que já vive
no planeta, os verões no Ártico, mais quentes que
os da Antártida pela concentração próxima
de terras, estarão livres de gelo
.
A Era do Hidrogênio como fonte energética livre de
emissões de gás carbônico se anuncia sob a forma
de células de combustível. A Daimler-Chrysler pretende
colocar um ônibus no mercado europeu, já no ano que
vem, movido por essa fonte de combustível que libera água
em vez de gás carbônico. Embora o vapor d'água
também pertença do clube do efeito-estufa, os problemas,
neste caso, são comparativamente inofensivos. Em 2004 esta
empresa pretende colocar 100 mil automóveis com essa propulsão
no mercado. Toyota e Honda também trabalham nessa direção.
Por
enquanto, o hidrogênio é mais utilizado como propulsor
de foguetes para atividades espaciais. É da exploração
espacial que as células de combustível estão
migrando para as atividades rotineiras na superfície da Terra.
Essa não é a primeira nem deverá ser a última
das transferências de conquistas do espaço para a Terra.
Os exemplos, neste caso, vão do marca-passo cardíaco
e uma infinidade de exames médicos à previsão
do tempo, pesquisas ambientais e rotas de navegação
para aviões e navios. Deveriam fazer com que muitas pessoas,
que desprezam as atividades espaciais, reavaliassem seus pontos
de vista e abrissem suas mentes para os presentes que o futuro promete.
Mas essa é uma alteração lenta que esbarra
em obstáculos até de origem religiosa.
Enquanto
o hidrogênio se insinua no cotidiano dos 6 bilhões
de moradores da Terra, fontes de energia alternativas como a solar,
eólica e das marés, especialmente, podem e devem,
contribuir para minimizar as emissões de gás carbônico.
Para isso é preciso desenvolver uma nova mentalidade, envolvendo
especialmente a educação. Neste sentido, a crise energética
no Brasil parece não ter muita contribuição
a dar. Na opinião praticamente unânime dos especialistas,
ela resultou de negligência e incompetência do governo
em adotar uma posição preventiva, o que seria de se
esperar de governos que têm uma visão estratégica
para seus países. Mas nem tudo está perdido. A discussão,
neste sentido, está apenas começando e, exatamente
por se tratar de energia, certamente não poderá terminar
em pizza.
Ulisses Capozoli, jornalista especializado em divulgação
de ciência é historiador da ciência e presidente
da Associação Brasileira de Jornalismo Científico
(ABJC)
|