Califórnia
vive crise energética
A
crise energética brasileira não é privilégio
de países subdesenvolvidos. O estado norte-americano da Califórnia
responde sozinho por mais de 2 vezes o PIB (produto interno bruto)
do Brasil inteiro - o que resulta em um PIB per capita de mais de
8,5 vezes o do brasileiro médio. A despeito disso, esse estado
está passando por uma crise de escassez energética
sem precedentes em sua história. Em janeiro deste ano, as
autoridades do setor elétrico decretaram o estado de emergência
de nível 3 (o nível mais elevado), o que significa
que o governo pode autorizar cortes no fornecimento de energia.
Chegaram a ocorrer algumas interrupções revezadas
de fornecimento. Várias indústrias de alta tecnologia
já manifestaram sua indisposição em estabelecer
novas instalações no Vale do Silício - o coração
da "Nova Economia" norte-americana.
Uma
das causas para essa situação é a estagnação,
que já dura vários anos, da expansão do setor
elétrico californiano, somada ao extraordinário crescimento
econômico que o estado atravessa, aumentando a demanda per
capita de energia. As opiniões divergem sobre as razões
para essa estagnação: apontam-se problemas como os
regulamentos para construção de usinas (incluindo
restrições ambientais) e a suspensão da construção
de usinas nucleares há 20 anos. O economista Paul Krugmann
aponta ainda falta de motivação das empresas para
construírem mais unidades, por já possuírem
uma parcela considerável da capacidade geradora californiana.
A
causa principal, entretanto, é mais unânime: o modo
como foi planejada a desregulamentação do setor elétrico
do estado, ocorrida a partir de 1996.
O
problema é que a desregulamentação não
foi total, mas diferenciada para as geradoras e as distribuidoras
de energia: os preços que as geradoras cobram das distribuidoras
foram liberados e sujeitos às flutuações do
mercado, mas a taxa que as distribuidoras cobram aos consumidores
continuou sendo fixada pelo governo.
Além
disso, as distribuidoras deveriam comprar toda a energia no mercado
de curto prazo, ou seja, de pronta entrega (ou mercado atacadista).
No Brasil, ao contrário, quase toda a energia é comprada
em um mercado de longo prazo, onde e energia é entregue apenas
numa data posterior à sua compra. As empresas brasileiras
costumam apelar para o mercado de pronta entrega em casos emergenciais,
para obter energia imediatamente. A diferença é que
o mercado atacadista está sujeito às variações
de curto prazo do mercado e o preço da energia neste mercado
pode ser várias vezes maior do que no de longo prazo.
Foi
o que aconteceu quando, diante da escassez energética causada
pela falta de crescimento do setor elétrico, as empresas
distribuidoras tiveram que comprar energia de fornecedores em estados
vizinhos, a preços de mercado muito mais caros, para conseguir
manter o fornecimento. Até isso acontecer, as duas maiores
distribuidoras da Califórnia puderam acumular juntas um lucro
de 20 bilhões de dólares. Porém, assim que
tiveram que comprar energia de outros estados, em seis meses cresceu
um rombo de 12 bilhões de dólares (veja também
artigo de Gilberto Jannuzzi na coluna Energia, Meio Ambiente e Cidadania).
Endividando-se,
as distribuidoras perderam o crédito junto às geradoras,
passando assim a não poder fornecer energia suficiente aos
consumidores. Daí a crise de escassez e os apagões.
Procura
sem oferta
Segundo
Luiz David Travesso, presidente da Eletropaulo e da AES Brasil (Audio
Engeneering Society), no Brasil, cerca de 3% da energia é
comprada das distribuidoras no mercado de curto prazo, o MAE - ou
Mercado Atacadista de Energia, instituído em 1998. Já
na Califórnia, depois de 1996, 100% da energia comprada pelas
distribuidoras passou a ser negociada nesse mercado atacadista.
O jornalista Gregory Palast, em artigo [http://www.ilumina.org.br/palastii.html]
publicado em português no site da ONG Ilumina, diz que há
ainda leilões diários feitos pelas geradoras para
fixar os preços da energia, o que lhes permite manipulá-los.
Segundo o governador da Califórnia, Gray Davis, os preços
pagos pelas distribuidoras são muitas vezes mais de 700%
superiores aos do ano passado.
O
problema transformou-se nesse fulminante círculo vicioso
em parte porque a lei da oferta e da procura, o principal mecanismo
que rege o funcionamento de mercados livres, não funciona
nesse sistema. Em condições ideais, se o aumento do
preço da energia (ou seja, diminuição da oferta)
fosse repassado às tarifas pagas pelos consumidores, estes
tenderiam a gastar menos energia (diminuição da procura).
Em teoria, a dinâmica do mercado livre (aumento da oferta
levando a aumento da procura; aumento da procura levando a diminuição
da oferta) tenderia a levar o sistema a um equilíbrio.
Porém,
como o aumento do preço da energia não é repassado
aos consumidores, não se tem um mercado livre. Com a tarifa
fixa, os consumidores não "percebem" a escassez
de energia através do aumento dos preços e, à
diminuição da oferta (aumento de preços), não
corresponde uma diminuição da procura por parte da
população. A tensão gerada por essa distorção
terminou por recair sobre as distribuidoras, que pagam cada vez
mais caro pela energia e vendem-na a preço constante, tendo
prejuízos crescentes.
A
Califórnia não é o único estado a ter
instituído a desregulamentação. A medida foi
imitada por outros 23 estados norte-americanos, logo após
a Califórnia, segundo diferentes modelos de desregulamentação.
Vários deles sentem efeitos negativos menos graves das medidas,
como Texas e Wisconsin. Em outros, a modalidade escolhida para a
regulamentação parece ter dado certo, como na Pensilvânia.
Tampouco
os Estados Unidos são o único país a sofrer
com a nova política do setor energético. Um sistema
semelhante foi implantado no Reino Unido durante o governo de Margareth
Thatcher. Segundo Gregory Palast, após a implantação
do sistema os preços aos consumidores ficaram mais altos
e houve blecautes.
O
fenômeno que está ocorrendo na Califórnia possui
várias diferenças em relação à
crise energética brasileira. Primeiro, na Califórnia
houve um extraordinário crescimento econômico nos últimos
anos, o que não aconteceu no Brasil, em que houve desaceleração
na economia . Além disso, as empresas do setor elétrico
norte-americano já estão privatizadas há muitos
anos, enquanto no Brasil a desestatização do setor
começou há menos de 10 anos. Porém, a diferença
principal é que, no caso brasileiro, a causa mais importante
da crise está no descompasso entre o crescimento do país
e o número de usinas instaladas. Ainda que esse problema
também exista na Califórnia, a origem da crise naquele
estado está mais ligada ao modo como foi feita a desregulamentação
parcial do setor, com 100% das distribuidoras comprando energia
no mercado de curto prazo. No Brasil, ao contrário, o mercado
de longo prazo ainda é a regra de quase a totalidade das
transações no setor energético. O que não
significa que a crise brasileira não possa se agravar até
o estágio da crise californiana, ou mais além.
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