Haja Energia!:
Carlos Vogt

Termelétricas receberão investimentos

Tecnologia pode melhorar transmissão

Mercado atacadista pode levar à especulação

Califórnia também vive crise energética

Energia limpa é o novo desafio para a ciência:
Ulisses Capozoli

Energia e meio ambiente:
Gilberto Jannuzzi

A solução para a crise energética do país:
José Luz Silveira

Usinas Nucleares, panorama mundial:
Afonso de Aquino e Martha Vieira

Califórnia vive crise energética

A crise energética brasileira não é privilégio de países subdesenvolvidos. O estado norte-americano da Califórnia responde sozinho por mais de 2 vezes o PIB (produto interno bruto) do Brasil inteiro - o que resulta em um PIB per capita de mais de 8,5 vezes o do brasileiro médio. A despeito disso, esse estado está passando por uma crise de escassez energética sem precedentes em sua história. Em janeiro deste ano, as autoridades do setor elétrico decretaram o estado de emergência de nível 3 (o nível mais elevado), o que significa que o governo pode autorizar cortes no fornecimento de energia. Chegaram a ocorrer algumas interrupções revezadas de fornecimento. Várias indústrias de alta tecnologia já manifestaram sua indisposição em estabelecer novas instalações no Vale do Silício - o coração da "Nova Economia" norte-americana.

Uma das causas para essa situação é a estagnação, que já dura vários anos, da expansão do setor elétrico californiano, somada ao extraordinário crescimento econômico que o estado atravessa, aumentando a demanda per capita de energia. As opiniões divergem sobre as razões para essa estagnação: apontam-se problemas como os regulamentos para construção de usinas (incluindo restrições ambientais) e a suspensão da construção de usinas nucleares há 20 anos. O economista Paul Krugmann aponta ainda falta de motivação das empresas para construírem mais unidades, por já possuírem uma parcela considerável da capacidade geradora californiana.

A causa principal, entretanto, é mais unânime: o modo como foi planejada a desregulamentação do setor elétrico do estado, ocorrida a partir de 1996.

O problema é que a desregulamentação não foi total, mas diferenciada para as geradoras e as distribuidoras de energia: os preços que as geradoras cobram das distribuidoras foram liberados e sujeitos às flutuações do mercado, mas a taxa que as distribuidoras cobram aos consumidores continuou sendo fixada pelo governo.

Além disso, as distribuidoras deveriam comprar toda a energia no mercado de curto prazo, ou seja, de pronta entrega (ou mercado atacadista). No Brasil, ao contrário, quase toda a energia é comprada em um mercado de longo prazo, onde e energia é entregue apenas numa data posterior à sua compra. As empresas brasileiras costumam apelar para o mercado de pronta entrega em casos emergenciais, para obter energia imediatamente. A diferença é que o mercado atacadista está sujeito às variações de curto prazo do mercado e o preço da energia neste mercado pode ser várias vezes maior do que no de longo prazo.

Foi o que aconteceu quando, diante da escassez energética causada pela falta de crescimento do setor elétrico, as empresas distribuidoras tiveram que comprar energia de fornecedores em estados vizinhos, a preços de mercado muito mais caros, para conseguir manter o fornecimento. Até isso acontecer, as duas maiores distribuidoras da Califórnia puderam acumular juntas um lucro de 20 bilhões de dólares. Porém, assim que tiveram que comprar energia de outros estados, em seis meses cresceu um rombo de 12 bilhões de dólares (veja também artigo de Gilberto Jannuzzi na coluna Energia, Meio Ambiente e Cidadania).

Endividando-se, as distribuidoras perderam o crédito junto às geradoras, passando assim a não poder fornecer energia suficiente aos consumidores. Daí a crise de escassez e os apagões.

Procura sem oferta

Segundo Luiz David Travesso, presidente da Eletropaulo e da AES Brasil (Audio Engeneering Society), no Brasil, cerca de 3% da energia é comprada das distribuidoras no mercado de curto prazo, o MAE - ou Mercado Atacadista de Energia, instituído em 1998. Já na Califórnia, depois de 1996, 100% da energia comprada pelas distribuidoras passou a ser negociada nesse mercado atacadista. O jornalista Gregory Palast, em artigo [http://www.ilumina.org.br/palastii.html] publicado em português no site da ONG Ilumina, diz que há ainda leilões diários feitos pelas geradoras para fixar os preços da energia, o que lhes permite manipulá-los. Segundo o governador da Califórnia, Gray Davis, os preços pagos pelas distribuidoras são muitas vezes mais de 700% superiores aos do ano passado.

O problema transformou-se nesse fulminante círculo vicioso em parte porque a lei da oferta e da procura, o principal mecanismo que rege o funcionamento de mercados livres, não funciona nesse sistema. Em condições ideais, se o aumento do preço da energia (ou seja, diminuição da oferta) fosse repassado às tarifas pagas pelos consumidores, estes tenderiam a gastar menos energia (diminuição da procura). Em teoria, a dinâmica do mercado livre (aumento da oferta levando a aumento da procura; aumento da procura levando a diminuição da oferta) tenderia a levar o sistema a um equilíbrio.

Porém, como o aumento do preço da energia não é repassado aos consumidores, não se tem um mercado livre. Com a tarifa fixa, os consumidores não "percebem" a escassez de energia através do aumento dos preços e, à diminuição da oferta (aumento de preços), não corresponde uma diminuição da procura por parte da população. A tensão gerada por essa distorção terminou por recair sobre as distribuidoras, que pagam cada vez mais caro pela energia e vendem-na a preço constante, tendo prejuízos crescentes.

A Califórnia não é o único estado a ter instituído a desregulamentação. A medida foi imitada por outros 23 estados norte-americanos, logo após a Califórnia, segundo diferentes modelos de desregulamentação. Vários deles sentem efeitos negativos menos graves das medidas, como Texas e Wisconsin. Em outros, a modalidade escolhida para a regulamentação parece ter dado certo, como na Pensilvânia.

Tampouco os Estados Unidos são o único país a sofrer com a nova política do setor energético. Um sistema semelhante foi implantado no Reino Unido durante o governo de Margareth Thatcher. Segundo Gregory Palast, após a implantação do sistema os preços aos consumidores ficaram mais altos e houve blecautes.

O fenômeno que está ocorrendo na Califórnia possui várias diferenças em relação à crise energética brasileira. Primeiro, na Califórnia houve um extraordinário crescimento econômico nos últimos anos, o que não aconteceu no Brasil, em que houve desaceleração na economia . Além disso, as empresas do setor elétrico norte-americano já estão privatizadas há muitos anos, enquanto no Brasil a desestatização do setor começou há menos de 10 anos. Porém, a diferença principal é que, no caso brasileiro, a causa mais importante da crise está no descompasso entre o crescimento do país e o número de usinas instaladas. Ainda que esse problema também exista na Califórnia, a origem da crise naquele estado está mais ligada ao modo como foi feita a desregulamentação parcial do setor, com 100% das distribuidoras comprando energia no mercado de curto prazo. No Brasil, ao contrário, o mercado de longo prazo ainda é a regra de quase a totalidade das transações no setor energético. O que não significa que a crise brasileira não possa se agravar até o estágio da crise californiana, ou mais além.

 

Atualizado em 10/07/2001

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