Bioinformática
na indústria
João
Meidanis
Fala-se
muito bioinformática nos tempos atuais. Esta nova ciência,
filha pródiga de duas das áreas do conhecimento que
mais têm crescido nas últimas décadas, a biologia
molecular e a informática, tem atraído inúmeros
pesquisadores com seus objetos de estudo singulares, entre os quais
figuram as seqüências das moléculas de DNA e de
proteínas que existem nos seres vivos. Mas, para que um ramo
do conhecimento apareça, cresça e se firme na complexa
rede das atividades humanas de uma sociedade, é preciso que
seja importante o suficiente para que pessoas e organizações
se disponham a sustentá-lo, investindo nele seu tempo e dinheiro.
No
caso da bioinformática, uma componente enorme da sua manutenção
é devida às grandes empresas multinacionais farmacêuticas.
Para entender o porquê do interesse dessas empresas na área,
é preciso analisar com detalhe a maneira como funciona uma
grande farmacêutica, isto é, de onde vêm os seus
custos e suas receitas, e em que momentos dos ciclos de vida de
seus produtos estes custos e receitas ocorrem. Uma grande farmacêutica
tem como base de sua receita a venda de remédios específicos,
que não podem ser fabricados por nenhum concorrente devido
às patentes que a empresa detém. A grande farmacêutica
não se preocupa com a otimização do processo
de manufatura do medicamento, pois seu mercado é cativo já
que apenas ela pode produzir o tal remédio. Quando as patentes
expiram, aí a coisa muda de figura: as empresas farmacêuticas
especializadas em genéricos, que primam pela otimização
de sua linha de produção, estão livres para
comercializar um medicamento baseado no mesmo princípio ativo
e, em geral, acabam dominando o mercado do mesmo pois podem oferecê-lo
a um custo menor. Assim, podemos dizer que, a grosso modo, o ciclo
de vida de um produto de uma grande farmacêutica dura enquanto
durarem as patentes que o protegem. A duração de uma
patente varia de país para país. Nos EUA, onde ficam
os quartéis-generais de boa parte das grandes farmacêuticas,
uma patente dura 17 anos.
Apesar
de contar com 17 anos, apenas a parte final deste período
gera receitas para a grande farmacêutica. O desenvolvimento
de uma nova molécula que pode servir de base (princípio
ativo) para um remédio consiste de diversas fases. A maioria
dos remédios funciona interagindo com outra molécula,
chamada de alvo, no organismo do paciente, inibindo ou acelerando
certas reações bioquímicas que terão
como efeito macroscópico final a cura ou atenuação
da doença. As fases para chegar a um novo remédio
consistem em:
- determinação
de um grupo de moléculas que têm grande potencial
de interação com o alvo
- avaliação
inicial do grau de interação com o alvo em ensaios
laboratoriais
- testes
pré-clínicos com animais de laboratório para
testar a eficácia, toxicidade, efeitos colaterais, etc.
das moléculas em condições fisiológicas
- testes
clínicos com seres humanos em condições controladas
para verificar a eficácia, toxicidade, efeitos colaterais
etc. das moléculas no organismo humano
As
fases finais são exigidas para aprovação do
novo remédio junto às agências governamentais
de regulamentação de medicamentos.
O processo
inicia-se com uma grande quantidade de moléculas. A cada
fase, muitas delas são descartadas por não atenderem
às especificações necessárias. Ao final,
apenas algumas moléculas terão restado, das quais
a mais adequada servirá de base para o medicamento. Às
vezes não sobra nenhuma. Em qualquer caso, fica claro que
grande parte dos gastos são empregados em avaliar e testar
substâncias que no final das contas serão descartadas.
Estima-se que 75% do custo de desenvolver um novo remédio
é usado para pagar por todas as potenciais moléculas
descartadas. Se as empresas conseguirem eliminar uma molécula
ruim mais cedo, poderão melhorar significativamente seu retorno
comercial. É aí que a bioinformática se faz
presente. Permitindo a detecção precoce de moléculas
fadadas ao descarte, a bioinformática pode guiar os pesquisadores
na direção das mais promissoras.
Durante
a década de 1990, as grandes farmacêuticas utilizaram-se
da bioinformática com grande sucesso para focar nas melhores
moléculas para um dado alvo. Mais recentemente, um novo fenômeno
vem ocorrendo: parte do processo de desenvolvimento de novos medicamentos
está sendo terceirizado pelas grandes farmacêuticas
para pequenas empresas de biotecnologia especializadas em identificar
boas moléculas. A grande farmacêutica fica, então,
com as fases que envolvem testes clínicos e pré-clínicos,
que são os mais custosos, e que apenas ela tem tamanho e
experiência para realizar. Como é justamente na fase
de seleção das moléculas que entra a bioinformática,
as pequenas empresas de biotecnologia que surgiram precisam desses
serviços, que elas executam internamente ou subcontratam.
Ao
lado dessa aplicação em busca de novos medicamentos,
é claro que a bioinformática tem muitos outros usos,
tanto em ciência básica quanto em ciência aplicada.
Entender os processos vitais a nível molecular é o
grande desafio da biologia moderna, e a bioinformática é
um poderoso instrumento para desbravar esse terreno com rapidez.
No
Brasil, o cenário descrito de busca de novos remédios
ainda não ocorre. As grandes farmacêuticas multinacionais
concentram suas pesquisas em uns poucos laboratórios ao redor
do mundo, pois as instalações são muito caras,
e a escolha da localização geográfica desses
laboratórios recai em países onde haja maior disponibilidade
de mão-de-obra altamente qualificada para o serviços,
fornecedores de insumos etc., o que geralmente coloca esses laboratórios
nos EUA e na Europa. As filiais brasileiras dessas grandes companhias
farmacêuticas não realizam este tipo de pesquisa. Por
outro lado, as empresas farmacêuticas nacionais são
em geral fabricantes de genéricos, isto é, exploram
o mercado das moléculas não protegidas por patentes,
onde aquele que consegue o menor custo de produção
para atingir os padrões de qualidade exigidos por lei é
o que domina o mercado. Este tipo de atividade, embora necessite
de alta tecnologia na linha de produção, não
depende de bioinformática, pois não lida com conhecimentos
moleculares dos processos que ocorrem nos seres vivos.
Contudo,
várias empresas farmacêuticas brasileiras especializadas
em genéricos estão começando a mover-se em
direção à descoberta de novos remédios,
que requer um grande investimento inicial para montar um departamento
de pesquisa de ponta, capaz de atuar nas fases descritas anteriormente.
Esta mudança não acontecerá da noite para o
dia. Será necessária provavelmente uma década
de trabalho persistente e contínuo para vencer todas as dificuldades
em relação à geração de mão-de-obra
qualificada, acesso a insumos e equipamentos, e adaptação
e uso adequados da legislação sobre patentes. Conforme
esse processo for se desenrolando, as necessidades de bioinformática
vão crescer também.
Embora
o setor farmacêutico tenha sido o grande motor do desenvolvimento
da bioinformática e ainda hoje seja o maior consumidor de
bioinformática no mundo, respondendo por mais de 95% dos
recursos aí investidos, o setor da agricultura e pecuária
está ganhando forte impulso como utilizador de técnicas
moleculares, especialmente para melhoramento genético. Nesta
arena o Brasil saiu na frente, pois enquanto os países mais
ricos empregavam a quase totalidade dos seus investimentos no setor
de saúde humana, deixando à margem os desenvolvimentos
na área agrícola, a agência financiadora de
pesquisas Fapesp, numa atitude ousada, resolveu lançar um
Programa Genoma, com o objetivo inicial de desvendar a seqüência
genética de organismos vivos. Ao fazer isso, teve o bom senso
de focar a escolha desses organismos em seres que tenham interesse
para as culturas nas quais o Brasil é líder mundial.
Assim, o primeiro genoma de um fitopatógeno, ou seja, um
organismo que causa doenças em plantas, foi seqüenciado
aqui no Brasil, fato que surpreendeu a comunidade científica
mundial e mereceu destaque na revista Nature, onde foram
publicados os resultados desta pesquisa, em meados de 2000. A partir
desse sucesso inicial, e antes mesmo do término do primeiro
projeto, foram iniciados projetos de genômica para seqüenciamento
e análise de outros genomas relacionados a culturas altamente
importantes para a economia brasileira, como cana-de-açúcar,
eucalipto, além de bactérias que atacam essas culturas,
bem como a cultura da laranja. Paralelamente, foram também
iniciados projetos com foco em saúde humana, como o do genoma
humano do câncer, e de vários parasitas humanos. Recentemente,
foi lançado um projeto genoma para o estudo da espécie
bovina. Criaram-se, também, diversas redes regionais e mesmo
uma nacional, englobando todo o Brasil, para o seqüenciamento
do genoma de uma bactéria amazônica.
A bioinformática
entra também fortemente na análise dos genomas de
plantas e seus parasitas. Embora aqui também haja uma atividade
relacionada à busca de medicamentos de uso agropecuário,
essas pesquisas dependem de testes clínicos em suas fases
finais de desenvolvimento, o que as torna viáveis apenas
a longo prazo. Em contrapartida, o uso da bioinformática
no melhoramento genético é imediato, e pode produzir
resultados em curto e médio prazo. Talvez esses resultados
venham a surtir efeitos concretos na sociedade apenas daqui a uma
década, pois para algumas culturas o desenvolvimento de uma
nova variedade leva todo esse tempo, porém, muito antes disso,
os pesquisadores poderão comprovar os ganhos de eficiência
no processo de melhoramento de forma suficientemente concreta a
ponto de incentivar as indústrias a fazer os investimentos
necessários.
Além
de ajudar na busca de moléculas, a bioinformática
tem um papel muito importante na organização dos dados.
O uso de bancos de dados na era genômica coloca desafios novos.
Um banco de dados para cadastro dos empregados de uma empresa não
precisa de muita coisa além de campos para números
e letras. Em contrapartida, um banco para guardar moléculas
deve ser capaz de armazenar sua estrutura tridimensional e, idealmente,
fornecer primitivas para a manipulação eficiente desses
objetos, incluindo operações complexas como comparação
entre estruturas. Somemos a isso a explosão fenomenal de
geração de dados experimentais do momento para obter
o cenário em que um bioinformata trabalha. O segredo é
conceber esquemas de organização dos dados que exponham
suas características mais importantes, sem "afogar"
o pesquisador numa montanha de informações.
Numa
reportagem deste
número é tratada a questão de software livre
versus software proprietário para bioinformática.
Para uma emprersa que deseja se firmar e acumular valor, o caminho
do software proprietário parece ser o único que permite
manter uma equipe competente e um processo estável de desenvolvimento
e evolução de software de alta qualidade. A história
da bioinformática no mundo é ainda muito breve, e
não se pode tirar conclusões definitivas ainda. Houve
casos de sucesso sazonal, com grandes sistemas que dominaram a cena
durante décadas inteiras, para depois sucumbir à obsolescência
e serem substituídos pela nova geração de concorrentes.
Há softwares pequenos, que detêm nichos específicos
e foram capazes de sustentar suas companhias mantenedoras até
hoje. O mercado de serviços é também considerável
e nem sempre habitado pelas mesmas empresas que desenvolvem software.
O Brasil
representa um grande potencial a ser explorado em termos de bioinformática.
Os projetos genoma brasileiros foram realizados no âmbito
acadêmico, tendo universidades e institutos de pesquisa como
os principais atores. É necessário agora que todo
esse conhecimento passe às indústrias para que a sociedade
como um todo possa aproveitá-lo. Existem desafios a vencer
para que isto ocorra, mas essa situação está
mudando com a criação de empresas de alta tecnologia,
que foram fundadas por pesquisadores envolvidos nos primeiros projetos
genoma, como a Scylla Bioinformática e a Alellyx
Applied Genomics, ambas sediadas em Campinas e contando com
aportes do fundo de capital de risco Votorantim Ventures. Estas
companhias funcionam como indutoras de pesquisa para as empresas
interessadas em explorar os dados genômicos. Enquanto a Scylla
oferece soluções de bioinformática, a Alellyx
se propõe a resolver os problemas biológicos. Assim,
o mercado brasileiro de bioinformática, que segue de perto
o desenvolvimento da biotecnologia e sua transferência para
as empresas, está em expansão.
João
Meidanis é diretor-presidente da Scylla Bioinformática.
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