As
tecnologias de informação digital e a pós-organicidade
Rosemary
Segurado
O debate
a respeito dos desdobramentos da utilização da bioinformática
pelas ciências da vida, apresenta algumas lacunas o que merece
reflexão de amplos setores da sociedade e não somente
da comunidade científica, mais diretamente envolvida com
esse tipo de discussão.
Num
momento no qual a biotecnologia aparece nos meios de comunicação
como a possibilidade redentora dos problemas de saúde das
populações, torna-se necessário que também
se analise os possíveis impactos na vida para além
dos aspectos biológicos. Trata-se de uma questão de
extrema delicadeza e que envolve questionamentos aos procedimentos
das biociências, considerando que, freqüentemente, a
mídia busca sacralizar a articulação entre
tecnologias da informação e ciências da vida
como se não fossem passíveis de problematizações.
Essa
conduta é facilmente apreensível na divulgação
de informações científicas dessa natureza,
quando se enfatiza apenas os eventuais benefícios da revolução
tecnológica aplicada às pesquisas da medicina e da
biologia, deixando de lado outros aspectos também fundamentais
para a compreensão aprofundada sobre as investigações
que envolvem os seres vivos. Assim, genoma, código genético
e bioinformática são algumas das expressões
incorporadas recentemente ao vocabulário das mídias
e são proferidas como sinônimo de profundas mudanças
nas áreas biomédica e biológica, uma espécie
de certificado de cientificidade, sugerindo precisão, exatidão
e solução para muitos problemas de saúde.
A bioinformática
surgiu no final dos anos 50 com o desenvolvimento de aplicativos
para pesquisas na área médica, tendo sido impulsionada
pela necessidade de se armazenar uma grande quantidade de dados.
No entanto, foi apenas no final dos anos 90, particularmente pela
publicidade em torno do seqüenciamento do genoma humano, que
ela ganhou notoriedade fora dos laboratórios.
As
ciências da informação, hoje, são consideradas
extremamente importantes para o desenvolvimento de pesquisas biológicas
e médicas, pela capacidade de processamento de informações.
Considerada uma das áreas do conhecimento mais promissoras
da atualidade, a bioinformática articula desde conhecimentos
da matemática à biologia e se destaca por agilizar
diversos processos científicos. Nesse sentido, pode ser considerada
como a forma mais intramolecular de se coletar informações
sobre os seres vivos por meio de seu código genético.
Até
aqui ainda é fascinante pensar que uma célula de qualquer
organismo vivo pode ser codificada, decodificada e recodificada
em caracteres, e que possam ser interpretadas e alteradas pelos
cientistas. A exemplo disso, no anúncio do seqüenciamento
parcial do genoma humano, o cientista britânico Francis Collins
declarou: "o homem entrou num lugar no qual só Deus
havia penetrado". Efetivamente, esse processo promove uma ruptura
importante, pois através da biotecnologia a transformação
da natureza humana passa por implicações de alcance
incalculável, considerando que esses procedimentos possibilitam
mudanças na linha evolutiva das espécies.
De maneira geral, o procedimento utilizado pela bioinformática
aplicado à genômica, possibilita a identificação
de possíveis diferenças nas seqüências
genéticas que podem favorecer o desenvolvimento de alguma
doença. As diferenças localizadas em seqüências
genéticas são submetidas às ferrramentas estatísticas,
responsáveis por definir as possibilidades de adoecimento
ou não dos indivíduos. Nesse sentido, os diagnósticos
são probabilísticos e dependem de muitas causas, ou
seja, podem se concretizar ou não, a depender dos hábitos
dos indivíduos.
Todos
os seres vivos se transformam em informações, e aqui
reside um dos aspectos mais complexos desse conhecimento. A fusão
dos fluxos da informática com os fluxos da biologia proporciona
o processamento da informação no âmbito mais
molecular de qualquer espécie. Os organismos, compreendidos
como sistemas de informação, possuem uma espécie
de programação que contém as instruções
sobre seu processo de funcionamento.
Considerando
que a informação, de qualquer natureza, é o
capital mais valioso do capitalismo atual, as informações
extraídas do corpo humano e de outros seres vivos entram
num processo de valorização como qualquer outro tipo
de mercadoria disponível no mercado. A exemplo disso, observa-se
que as empresas de biotecnologia apresentaram expressiva rentabilidade
nas bolsas de valores no final da última década.
Outro
aspecto relevante é o atual sistema de patentes que passa
por um processo de mercantilização da vida jamais
visto em outro momento. Sob a justificativa de viabilizar a pesquisa
científica, nota-se, nos últimos anos, o aumento significativo
de patentes, principalmente nos EUA. O regime de propriedade intelectual
vem se transformando na melhor forma de apropriação
de fragmentos da vida e é através dele que se instaura
o biomercado como responsável pela promoção
da forma mais profunda de desterritorialização, a
desterritorialização molecular.
Ainda
não é possível saber todos os desdobramentos
provocados por essas descobertas. Mas há que se considerar
que ao extrair uma célula de um organismo, ou seja, ao retirá-la
de seu território e lançá-la à processualidade
dos procedimentos da informática, entramos na era da pós-organicidade.
Os organismos se tornam prescindíveis para sua existência,
pois é possível a existência fora dele.
O grande
paradoxo, gerado principalmente pelo sistema de patenteamento da
vida, está em pensar que as informações genéticas
possam adquirir um valor maior fora de seus organismos de origens
devido às inúmeras possibilidades de conhecimento
produzidos a partir delas. A polêmica com as populações
indígenas que tiveram coletadas as amostras de seu sangue
para pesquisas é emblemática desse tipo de relação.
Algumas lideranças indígenas protestam e dizem que
além de terem sido expropriadas de seu patrimônio físico
e cultural, sentem-se ameaças quanto ao seu patrimônio
genético, temerosos quanto à possibilidade de viverem
uma espécie de biocolonização.
Rosemary
Segurado é doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP,
professora da Escola de Sociologia e Política de São
Paulo e pesquisadora do NEAMP(Núcleo de Estudos em Arte,
Mídia e Política da PUC/SP).
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