Matematização
da biologia não é novidade da ciência moderna
Quanto
de matemática tem a biologia? Muito e, provavelmente, cada
vez mais. A cada dia, são inventadas novas formas de utilização
de ferramentas da matemática para se tentar compreender fenômenos
biológicos. Porém, esta transdisciplinaridade não
é algo recente quando se trata de biologia e matemática,
que são áreas do conhecimento que sempre se complementaram
para interpretar a natureza.
Basta
olhar para um inseto ou uma planta qualquer. É claro que
não é preciso nenhum conhecimento matemático,
ou mesmo biológico, para se admirar um inseto. Mas, para
conhecê-lo melhor do ponto de vista científico, sim.
O Anthonomus grandis é o nome científico de
uma praga muito conhecida pelos produtores rurais, chamada vulgarmente
de bicudo. Esse nome científico - como qualquer outro - têm
muito mais matemática do que se pode imaginar, e classifica
o bicudo entre centenas de outros animais segundo suas características
morfológicas externas. O nome indica que um animal tem determinado
numero de patas, antenas, asas, que estão mais ou
menos próximas de outras estruturas anatômicas
- e por aí vai a geometrização do bicudo.
Não é por acaso que os taxonomistas - biólogos
que classificam os seres vivos - tem como ferramenta de trabalho
paquímetros, réguas e lupas para observações
milimétricas.
A taxonomia
pode ser considerada um exemplo muito antigo da matematização
da biologia, e teve início com as tentativas de Aristóteles
de organizar os seres vivos sistematicamente. Muito tempo depois,
no século XX, os organismos passaram a ser classificados
não somente através da geometrização
de sua morfologia externa, mas também através da sistemática
molecular "Então, aconteceram coisas interessantíssimas,
e o homem, através da sistemática molecular, viu-se
muito mais próximo dos chimpanzés do que realmente
gostaria de estar, devido às grandes semelhanças moleculares
entre estas duas espécies", ironiza Gastão Galvão
de Carvalho Souza, professor de química da UERJ e doutorando
em história da ciência.
Segundo
Souza, a matematização da biologia é contestada
por vários pensadores contemporâneos, como o biólogo
Ernst Meyer, que afirma que a biologia não pode ser vista
com o olhar determinista da matemática. Por ser uma ciência
histórica, a biologia adquire um caráter contingencial.
Ao se apropriarem do acaso, os fenômenos biológicos
não podem ser previsíveis e testados de forma idêntica
e repetidas vezes. "Não podemos repetir a origem da
vida na Terra, que ocorreu por circunstâncias específicas.
A vida é a apropriação de acasos sujeitos a
fatos acontecidos na história que, se não tivessem
acontecido, o mundo hoje seria completamente outro. Uma vida sujeita
a toda essa aleatoriedade faz com que a matematização
da vida fique restrita ao momento presente - onde todas as extrapolações
são perigosas" afirma Souza.
Utilizando
a matemática para entender o imprevisível
Apesar da imprevisibilidade dos fenômenos biológicos
e o desconhecimento de muitas variáveis envolvidas, na opinião
de Souza, a biologia não deixa de ser uma ciência estatística.
"A biologia é uma ciência estatística,
e a estatística pode ajudar a compreender fenômenos
biológicos. Mas isso é bem diferente de ver a biologia
com o determinismo da matemática".
Para
o biomatemático João Frederico Meyer, da Unicamp,
a matemática pode ser uma ferramenta muito útil para
os estudos em biologia. "A biologia apresenta à matemática
uma série de difíceis desafios, como problemas descontínuos,
instáveis, não-lineares, enfim, inesperados. Neste
contexto, há uma vantagem do uso da modelagem matemática:
alguns fenômenos podem ser quantificados em alguns de seus
muitos aspectos, e estas quantificações às
vezes podem fornecer novas maneiras de 'ver' o problema que se está
tentando compreender".
Além
disso, o pesquisador chama a atenção para a importância
da transdiciplinaridade da ciência moderna, "quando diferentes
olhos vêem diferentemente o mesmo problema". Para ele,
aplicar a matemática para entender fenômenos biológicos
é muito instigante, onde as técnicas e os saberes
da matemática ganham nova importância tanto teórica
quanto instrumental. Ele explica que a biomatemática é
uma área transdisciplinar da matemática aplicada,
onde atuam biólogos e matemáticos conjuntamente.
O determinismo
matemático pode causar uma confusão de idéias
quando se fala em compreensão de fenômenos biológicos,
dando a idéia de que alguns cientistas pretendem, através
da matemática, tornar a biologia uma ciência exata.
Sobre esse ponto, Meyer salienta que a modelagem matemática
de fenômenos biológicos não é capaz de
prever ou fornecer resultados milimétricamente precisos.
"O que a modelagem matemática pode fazer, e o faz bem,
é a avaliação qualitativa, ou seja, direções,
possibilidades, tendências. Especialmente no sentido de se
simularem fenômenos que estabelecem cenários que iriam
resultar de estratégias adotadas - estes cenários
não vão ser exatamente precisos, mas são suficientes
para indicarem possíveis situações a adotar...ou
evitar!"
Para
o biólogo e bioinformata Felipe Rodrigues, pesquisador da
Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, a estatística
é hoje a melhor aproximação que podemos ter
de alguns fenômenos biológicos, justamente pelo fato
de os fenômenos biológicos terem muitas variáveis
ainda desconhecidas ou incontroláveis .
Depois
de Aristóteles, muitos outros cientistas, como Mendel que
elaborou as primeiras matematizações da genética,
mostraram que a matemática sempre foi uma área de
conhecimento útil para a biologia. Na opinião de Meyer,
desde os anos 50 do século XX a interação entre
a matemática e a biologia tem sido intensificada, o que não
significa que a biologia esteja se transformando em uma ciência
exata.
Apesar
da matematização da biologia ser uma tendência
cada vez mais forte, Felipe Rodrigues acha que as ciências
biológicas não correm o risco de se transformarem
em exatas. "Seria tão bom poder dizer com a precisão
de um engenheiro como construir um determinado organismo! Ou predizer,
no instante da concepção, todo o 'destino biológico'
de um ser! Talvez um dia cheguemos lá, mas eu não
acho que esse dia esteja próximo. Haverá, claro, cada
vez mais precisão em nosso poder preditivo. Porém,
o nível de complexidade dos sistemas biológicos vai
manter, ainda por um bom tempo, as ciências biológicas
como algo distinto das exatas".
(JS)
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