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A
identidade indígena e o Projeto Vídeo nas Aldeias
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Reproduzir a imagem, espelhar, revelar, meditar e repercutir são alguns dos significados de refletir, do latim reflectere; palavra que no Projeto Vídeo nas Aldeias remete a toda a sua amplitude de significados. Diante da concretização de sua própria imagem, não mais através do histórico objeto de escambo, o espelho, mas do vídeo, comunidades indígenas passaram a "refletir" sobre si e sobre o outro caracterizando o dinâmico processo de (re)construção de sua identidade. O vídeo como recurso para que estas comunidades vivenciassem a alteridade, fortalecendo sua autonomia e saindo do isolamento é o eixo central do projeto que surgiu em 1987 e foi concebido como um programa de intervenção direta pelo atual coordenador do projeto, o fotógrafo e videomaker Vincent Carelli. Inicialmente foram estabelecidas algumas parcerias com membros do CTI (Centro de Trabalho Indigenista), especialmente com as antropólogas Virgínia Valadão e Dominique Gallois, além de muitos outros profissionais. Atualmente, Vídeo nas Aldeias é parte de uma ONG independente que leva o mesmo nome do projeto e tem a co-direção da editora e diretora de documentários Mari Correa. O site da ONG, em fase final de montagem, deverá ser publicado a partir de dezembro no endereço http://www.videonasaldeias.org.br Evidenciando a identidade como um processo dinâmico, a memória adquire uma nova dimensão quando torna possível o confronto de imagens do presente com a lembrança de suas práticas.As comunidades indígenas, filmadas falando sua língua materna, assistem as próprias imagens e a de outros grupos de índios, rompendo com um certo isolamento existente entre os grupos, e deles com relação à sociedade em geral. Neste processo, reconhecem igualdade e diferenças: aqueles que falam a mesma língua, que também sofreram invasão de suas terras, ou que perderam parentes, vítimas de doenças provenientes do contato com o não índio; formando estrategicamente uma auto imagem e construindo novas formas de representação. O Projeto produziu uma série de 35 documentários, com versões em cinco línguas, divididos em três diferentes linhas: vídeo processo, que trata o encontro de vários povos com sua imagem e a reflexão dos índios acerca de sua auto - representação; vídeo denúncia, sobre conflitos emblemáticos da atual situação dos índios no Brasil; vídeos institucionais e projetos alternativos de desenvolvimento, propostos por algumas comunidades, ilustrando formas de controle sobre as relações de contato e os processos de transformação pelos quais vem passando. Atualmente, o projeto está numa nova fase representada por realizações indígenas. "Nesta linha está direcionada toda a ênfase atual do projeto que, em última instância, é a razão de ser de Vídeo nas Aldeias", diz Vincent Carelli. Entre os documentários realizados nesta nova fase destacam-se: uma série de dez vídeos educativos intitulada Índios no Brasil, elaborados para a TV Escola do MEC, o curta-metragem Índio na tevê, realizado para a exposição dos 50 anos da TV brasileira, dirigidos por Carelli, e ainda uma série de novos filmes realizados pelos índios, entre os quais, o mais recente, é do realizador indígena Divino Tserewahú, da etnia Xavante, intitulado Wai'á rini. Entre as importantes contribuições trazidas por estas imagens está o afastamento da idéia de equipamentos eletrônicos, TVs e câmeras de vídeo, como símbolos de degradação da cultura indígena e de perda da identidade. O confronto com a própria imagem torna possível a decisão do próprio grupo de selecionar elementos culturais externos e internos que devem ou não ser mantidos. O documentário Vídeo nas Aldeias revela, por exemplo, os índios resgatando, perante as câmeras, a furação dos lábios que não era feita há vinte anos e, em outra ocasião, o não reconhecimento pelos índios, de sua própria imagem, quando assistiram cenas de um ritual no qual não estavam, segundo eles, devidamente trajados e ornamentados. Um elemento diferenciador destes documentários é que não existem comentários externos, apenas as falas dos índios estão representadas. Para a antropóloga Dominique Gallois, a mídia difunde, freqüentemente em forma de denúncia, as perdas sofridas por esta comunidade, com um certo fascínio pelos saberes tradicionais e saudosismo diante do desaparecimento destas técnicas ancestrais. Desta forma a situação indígena é abordada parcialmente, desconsiderando as novas demandas específicas destas comunidades. "Nossa sociedade se move, se expande, enquanto a deles tem que permanecer fixa, imutável, para atender a necessidade que nós temos de uma saudade da tradição. Em contraposição a esse desejo, eles mostraram que tradições são sistemas intelectuais dinâmicos e capazes de mudar. Infelizmente, o que a mídia veicula habitualmente não são esses processos riquíssimos de reflexão dos índios sobre a mudança. Seus dinamismos culturais continuam sendo desconhecidos, na medida em que suas vozes continuam sendo caladas, cobertas pelas vozes dos que se julgam especialistas" - afirmaram Dominique e Vincent em artigo para a Revista de Antropologia, Artes e Humanidades. Revela-se aqui um contraponto à visão comum da mídia sobre os índios, calcada muitas vezes numa visão reducionista. Assim, em cerca de 15 aldeias, de diferentes partes do país, foram implantados centros de produção e videotecas que dão suporte para cursos e palestras para a formação de documentaristas indígenas. O Programa de Índio, realizado em parceria com a TV da Universidade Federal do Mato Grosso, surgiu desta experiência e veiculou quatro programas que atingiram rede nacional através da TVE do Rio de Janeiro. A comunidade indígena participou de todo o processo de produção e apresentação do programa. Desde 1996, quando foi encerrada a experiência do Programa de Índio, foi possível a percepção de que havia pela frente todo um processo de formação a ser percorrido, para que os índios estivessem preparados para ocupar algum espaço na mídia. Por outro lado, notou-se também uma importância maior em trabalhar a linguagem, elaborada e profunda do documentário do que a superficialidade da reportagem televisiva. O horizonte atual do projeto é formar uma primeira geração de documentaristas indígenas. Estes serão a semente de outras vocações, até ocupar um espaço próprio na televisão pública brasileira. A partir de 1997 o projeto começou a investir de modo mais organizado e sistemático na capacitação dos índios, através de oficinas de realização nas aldeias e de oficinas de edição na sede em São Paulo. O projeto passou a se concentrar em três pólos: o Baixo Xingu, com os grupos Suyá e Ikpeng; no Acre com os Ashaninka, Kaxinawá e Manchineri, e no Mato Grosso com as Aldeias Xavante de Pimentel Barbosa e Sangradouro."Nesta linha de produção, voltada para a formação de Realizadores Indígenas, somos nós que colaboramos com os vídeos deles. Algo fundamental que representa um salto qualitativo na realização dos objetivos do projeto. Os cinegrafistas indígenas abandonam a simples descrição visual, no estilo da home video, direcionado apenas para o público de sua própria aldeia. Eles se tornam realizadores, apropriando-se da linguagem cinematográfica e articulando a sintaxe da imagem. Em suma, fazem filmes sobre sua realidade, não somente para seus semelhantes, mas também para um público aberto, desconhecedor da sua especificidade", diz Vincent. Privilegiando a auto-gestão dos projetos, que surgem a partir das demandas da comunidade, Vídeo nas Aldeias acaba por fortalecer as comunidades locais que passam a gerenciar suas necessidades, os projetos e seus recursos, desenvolvendo uma autonomia em relação ao estado e às agências assistenciais. Como autores e executores dos vídeos, os índios decidem o que deve ser objeto e objetivo das filmagens, apresentando assim uma imagem de si mais adequada aos seus interesses e estabelecendo uma nova interação com a sociedade. "Com o nosso distanciamento e a nossa curiosidade, ajudamos os alunos a se distanciarem o necessário para produzirem um olhar sobre si próprios, além de transmitirmos as técnicas de registro e edição. A nossa interferência, enquanto professores que acompanham todo este processo, ainda é importante. São realizações gestadas em oficinas e, portanto, frutos de uma parceria de alunos e professores. Quanto mais experiência acumulam, mais autoconfiança adquirem e esse processo de aprendizagem culmina na formação de um grupo de realizadores autônomos e multiplicadores desse conhecimento. O projeto se assume cada vez mais como uma escola de cinema para os índios. Os quatro documentários assim produzidos nos últimos três anos, já se constituem num conjunto de filmes muito originais, uma auto-etnografia indígena cheia de vida e de graça.", conclui Vincent Carelli. |
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Atualizado em 10/11/2000 |
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