Amazônia - da Pangéia à Biologia Molecular
   
 
Poema

Da pangéia à biologia molecular
Adalberto Luís Val

A biodiversidade e o novo milênio
Vera de Almeida e Val
Contrastes e confrontos
Ulisses Capozoli
As línguas indígenas na Amazônia
Panorama das línguas indígenas
Ayron Rodrigues
Lucy Seki e o indigenismo
As várias faces da Amazônia
Louis Forline
Euclides da Cunha
Isabel Guillen
Yanomami
Saúde dos Índios
Amazônia e o clima mundial
Manejo florestal
Niro Higuchi
Impactos ambientais
Cooperação internacional
Energia e desenvolvimento
Ozorio Fonseca
Interesse internacional
Programas científicos e sociais
Internacionalização à vista?
Indústria de off shore na selva
Marilene Corrêa da Silva
Peixes ornamentais

Produtos da Biodiversidade
Lauro Barata
Missão de pesquisas folclóricas

Radiodifusão para indígenas
Mamirauá
Vídeo nas aldeias
A música dos Urubu-Kaapor
 
"A bacia amazônica é uma dessas grandezas tão grandiosas que ultrapassam as percepções do homem". Mário de Andrade, 1927

 

 

 

Uma massa continental única, a chamada Pangéia, enfeixava os atuais continentes sul americano e africano, no período paleozóico. Água salgada fluía pela região da Amazônia e alcançava, possivelmente, o Peru e a Bolívia. O final deste período geológico marca a incorporação definitiva ao continente das bacias Amazônica, do Acre e do Maranhão. Ao final do período geológico seguinte, com início no Cretáceo e com auge no Cenozóico, a Amazônia experimentou a mais estupenda transformação: a Gonduana quebrou-se no hemisfério Sul formando o que hoje conhecemos como América do Sul e África. No mesmo período, ao final do Mioceno, deu-se o levantamento dos Andes, cessando a drenagem orientada para o Oceano Pacífico e, aos poucos, as águas da Bacia Amazônica passaram a fluir para o Atlântico.

Neste momento, passa a desenhar-se o mapa da região tal como conhecemos hoje. Mais tarde, a diminuição do nível do mar durante o período glacial e os conseqüentes processos de erosão e sedimentação com formação de grande lagos, dão o retoque à superfície, com formações espetaculares como a de Alter-do-Chão. O aumento do nível do mar que ocorreu em seguida, represou os rios da Amazônia e uma grande quantidade de sedimentos depositou-se às margens dos rios de água branca e formou as "várzeas", enquanto os rios de água preta se tornaram mais profundos. Desenharam-se, assim, as condições básicas para a radiação evolutiva dos animais e das plantas. O resultado podemos apreciar hoje, sobrevoando, navegando e andando na região amazônica, a maior região de florestas tropicais do mundo.

A região tem 7,5 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 4,8 milhões (cerca de 65%) estão localizados no território brasileiro, sendo que 3,87 milhões de quilômetros quadrados compõem a Região Norte do Brasil. O tamanho da Amazônia brasileira se torna evidente quando o comparamos ao tamanho do território de outros países. Sua área corresponde a 23 países juntos (vide figura). A floresta amazônica cobre cerca de 80% da região. A área de captação hidrográfica da bacia se estende desde 79oW (rio Chamaya, Peru) a 46oW (rio Palma, Brasil), de 5oN (rio Cotingo, Brasil) a 17oS (alto Araguaia, Brasil). Isto faz da Amazônia o maior e mais tropical dos ecossistemas, comparável em tamanho apenas aos ecossistemas tropicais africanos. A Amazônia brasileira tem mais de 11.000 quilômetros de fronteira com os outros países amazônicos: Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia.

A Amazônia, um mar de florestas num oceano de água doce, como bem notou Avé-Lallemant em seu livro Rio Amazonas, já em 1859, não é uma região homogênea como pode parecer do alto, durante o sobrevôo. A região é um caos de ilhas, um mosaico fluido de pequenos igarapés, rios colossais, pequenos lagos que brincam de esconde-esconde, lagos maiores que resistem ao desaparecimento na seca, águas de todas as cores, árvores de todos tamanhos, peixes de todas as formas, e um mundo sem fim oculto aos nossos olhos. Parece monótona a região para os menos atentos, mas não: ela é dinâmica - não apresenta nenhum dia igual ao outro. O sobe e desce das águas, o silêncio ensurdecedor que em algumas áreas recria sons esquecidos, o cair das árvores, o pôr-do-sol, o vento, a friagem, a chuva, a ilha que se move, as migrações dos homens e dos bichos, o abraço-da-morte, o peixe que "anda" de um lago para outro, o peixe que morre afogado!, o tubarão que confunde o tipo de água, mas não sua imensidão, criam, a cada dia, um desenho novo para esse Eldorado que urge conhecer e está a demandar todo o cuidado da ciência.

Nas suas cores primárias, as águas da Amazônia apresentam-se brancas, pretas e claras. Ao se encontrarem, resistem a se misturar, estranham-se, acentuam suas diferenças. O espetáculo é inesquecível. Ao misturarem-se lentamente, surgem cores secundárias. Muitas delas. A natureza trabalha as cores em matizes determinados pelo volume de água de cada tipo primário. O dégradé acompanha-se de um gradiente das qualidades químicas e físicas. Assim: temperatura, densidade da água, pH, produtos em suspensão, bióxido de carbono, oxigênio dissolvido, todos esses elementos vão variando no tempo e no espaço, de maneira delicada, sensível. Uma série de adaptações incríveis ocorre nos organismos viventes nessas águas e possibilita que passem quase ilesos por tamanha variação regional e temporal. Que significam essas adaptações do ponto de vista biológico, do ponto de vista evolutivo, do ponto de vista econômico?

Considere-se que as adaptações ocorrem em todos os planos da organização biológica. São adaptações comportamentais, fisiológicas, bioquímicas e genéticas. As primeiras adaptações, vale dizer, as adaptações comportamentais, ocorrem no nível do indivíduo, ao passo que aquelas ditas genéticas ocorrem no nível da população. Aquelas são rápidas, estas requerem gerações. São elas que têm tornado possível nossa vida na Terra. Estamos falando da vida do homem, da vida dos bichos, da vida das plantas. Mais do que a existência dela em cada canto, em cada ecossistema, as adaptações têm proporcionado a explosão da vida. Cada população isolada, adapta-se ao seu lugar. Reproduz-se. Diferencia-se dos semelhantes de outros recantos. Assemelha-se mais e mais com os de seu espaço. Nasce uma nova espécie. Diversifica-se a vida. Com uma variabilidade espacial e temporal sem paralelo, a Amazônia abriga uma fauna e uma flora que não podemos quantificar. A isso chamamos de biodiversidade. Mas quantas são as espécies animais e vegetais? Quantas são as variedades de cada espécie? Difícil mesmo estimar, quanto mais quantizar. Podem ser mais de 200 espécies de árvores num único hectare, mais espécies de peixes em apenas um rio ou igarapé do que todas as espécies que ocorrem em bacias hidrográficas inteiras de países temperados e sub-tropicais. Quanto aos insetos, nem estimar! Cada um desses organismos carrega as informações que aperfeiçoou durante o processo evolutivo. Informações para viver, para sobreviver. Qual seria o valor econômico dessa realidade para o homem moderno?

As características geográficas e biológicas da Amazônia sempre a tornaram inatingível para o modelo nacional de desenvolvimento. Estudá-la sempre fora dispendioso demais. Investir nos seus segredos sem conhecê-la continua sendo arriscado. Foi relegada por décadas aos aventureiros, exploradores e conquistadores e ficou exposta ao extrativismo predatório por muito tempo. Na década de 50, finalmente, duas iniciativas do governo brasileiro são postas em prática na busca da defesa de tão valioso patrimônio nacional - a criação da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) e a criação do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Aquela com objetivo de reativar a economia regional e esta, uma clara resposta do governo Vargas à idéia da UNESCO de instalar em Manaus o Instituto Internacional de Estudos da Hiléia Amazônica (IIHA). O decreto de criação do INPA em de 29 de outubro de 1952, revela a questão da segurança nacional ao estabelecer como finalidade do INPA "O estudo científico do meio físico e das condições de vida da região, tendo em vista o bem estar humano e os reclamos da cultura, da economia e da segurança nacional." Em 1960, a SPVEA é remodelada e passa a chamar-se SUDAM - Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia. A preocupação de integrar a região ao resto do país resultou na construção de rodovias e usinas hidrelétricas. Algumas iniciativas ou parte delas, a selva desfez, o mato destruiu. Resposta da natureza. O modelo energético, equivocado, deixa mais de 9 milhões de cidadãos sem energia em pleno século XXI. Falta a luz, falta a comunicação, falta ação coordenada. Acumulam-se as tentativas de encontrar uma saída para a integração da região. Pensa-se, concebe-se e instala-se a Cidade Científica de Humboldt, o sonho de transformar a floresta em Eldorado auto-sustentável. Esta tentativa, outro equívoco pois vale-se de soluções importadas, não desenvolvidas na Amazônia para a Amazônia. A natureza de novo põe à mostra o que a torna forte, sua pujança. Na década de 60, mais dois projetos: a Universidade Federal do Amazonas e a SUFRAMA (Superintendência da Zona Franca de Manaus). Para aquela os recursos têm sido insuficientes. Esta, valendo-se da importação de tecnologia poderia ajudar a superar o atraso da região em relação aos estados do Sul e aos países desenvolvidos. Discute-se hoje, 30 anos após, a validade do modelo.

Para a Ciência e Tecnologia, o preço dos trágicos equívocos que se acumulam é alto. São pouco mais de 500 doutores trabalhando nas diferentes instituições da região. O baixo investimento na pesquisa levou a um distanciamento entre a comunidade científica local e o poder público. Pouco mais de dois por cento dos recursos federais para C&T são aplicados em toda a Amazônia legal. O modelo concentrador de investimento em C&T promove ainda mais o atraso da Amazônia. O interesse internacional sobre a região cresce. Não há pessoal qualificado para contrapor-se a essa pressão. Leis e portarias para limitar o trânsito de material biológico são editadas perante o risco iminente. Busca-se isolar ainda mais a região como se uma cerca pudesse impedir a troca de conhecimento e o fluxo de material. Mais desacertos, pois a única saída é a qualificação de gente da gente para recuperar o tempo perdido. Não se trata de pôr fé cega na ciência, mas de julgá-la o único caminho que pode ser trilhado com segurança.

Na década de 90, o mundo desperta para o ambientalismo. A Amazônia é o foco, e é transformada em "totem". A responsabilidade por ela é propalada como sendo de todos os amazônidas e de cada cidadão do mundo. As pressões externas crescem para evitar a progressão do desmatamento. O mundo sabe que cada hectare de floresta destruída corresponde à destruição de uma parte da história evolutiva de um grupo de plantas e animais que pode ser de grande relevância para o futuro da própria humanidade. A comunidade científica, entretanto, tem consciência da questão muito antes desse "grito de socorro" do mundo. Há uma mistura de interesse científico e econômico, difícil de separar. A fronteira do conhecimento está, sem dúvida, na interação que os organismos tropicais mantêm com seus delicados ambientes. Na Amazônia, principalmente. Por isso, muitos projetos científicos, acordos de cooperação e expedições científicas são, então, implementados: Projeto Max-Planck, Smithsonian, JICA, Alpha-Helix, CIDA/Canadá, Finlândia, Orstom, entre outros tantos. Melhor quando se dão entre nós, dentro de nossas instituições, num trabalho de interesse comum, possibilitando-se avaliação de resultados. A falta de contrapartida nacional, entretanto, aproxima perigosamente nossa comunidade do interesse externo. O abandono da qualificação de pessoal e da geração de tecnologia, com a conseqüente falta de consolidação de laboratórios, aparecem de forma substantiva. Universidades e Institutos de Pesquisa não estão aptos a atender, na velocidade exigida, as necessidades e as demandas atuais, por parte da sociedade, de ciência e tecnologia. Necessidades de nossa gente particularmente mas também da sociedade globalizada, internacional. É preciso, urgente, qualificar e fixar cientistas na Amazônia. Na Amazônia toda. É preciso estimular a interação nacional, reduzir as distâncias internas. Trata-se mesmo de buscar uma maior reciprocidade interna.

A necessidade de qualificar e fixar pessoal na Amazônia leva à concepção do Projeto Norte de Pós-Graduação. Uma iniciativa arrojada que associa todas as Instituições de Ensino Superior da Amazônia em torno da causa. São muitas as reuniões. Delas participam de forma ativa as agências de fomento do governo. A CAPES e o CNPq abraçam, então, o projeto. Contam-se os sucessos. E os insucessos. A falta de recursos financeiros vem a ser a maior pedra no caminho do projeto. Formou-se mais e melhor, mas perdeu-se mais gente qualificada para os grandes centros. Estabelecer grupos de pesquisa em regiões onde prevalece o abismo demográfico é difícil. A Ciência é uma atividade social, com função social. É necessário dialogar, confrontar idéias. Discutir. Conceber novas propostas. Definir caminhos. Na Amazônia, faltam os pares. Eles estão longe. Além mar.

Ainda nesta década, o grupo dos sete países desenvolvidos, reconhecendo a importância mundial da Amazônia, ajudou a desenhar o Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais e o suporta financeiramente. O núcleo do Programa é a preservação ambiental e o uso sustentado do meio ambiente. Buscou-se a recuperação física das duas principais instituições de pesquisa da Amazônia: o INPA e o MPEG (Museu Paraense Emílio Goeldi). Projetos de pesquisa começam a ser implementados. Falta, ainda, gente qualificada. Faltam cientistas. Faltam pesquisadores. Faltam professores. Outros programas são reativados ou concebidos. O velho Programa do Trópico Úmido (PTU) ganha a responsabilidade de trabalhar o uso econômico da biodiversidade e lidar com a questão das energias alternativas. Surge o PROBEM (Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade Amazônica). O projeto GENAMAZ da SUDAM define nove macro-setores primários: Bio-agro-industrial; Florestal madeireiro; Pesqueiro; Saúde Tropical; Mínero-metalurgia; Energia; Social; Transporte; Eletro-eletrônica. Estes programas todos reconhecem que não temos a tecnologia que precisamos mas que precisamos de ciência e tecnologia para ocupar a Amazônia.

A Amazônia é uma realidade única. Tem sua gente. Tem sua cultura. Tem seus interesses. Também dá sua contribuição ao desenvolvimento nacional. Aprendeu da Pangéia à Biologia Molecular que não há fórmulas importadas capazes de minimizar suas carências. Não há como construir uma cerca ao seu derredor. Aprendeu que pode e vai encontrando seus próprios caminhos, respeitando a vida, parte da biodiversidade, do que vai escondido em cada relação da gente, dos bichos e do mato com um meio ambiente sem fronteiras, que se define na própria indefinibilidade, que se torna conhecido na mesma medida do seu desconhecimento, que se mede na sua própria imensurabilidade.

Adalberto Luís Val - pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA).

   
           
     

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Atualizado em 10/11/2000

   
     

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