A indústria de off shore na selva: o caso da Zona Franca de Manaus    
 
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A criação da Zona Franca de Manaus (ZFM) é geralmente enquadrada no conjunto de ações do Estado autoritário, a partir de 1964. No entanto, a Lei n. 3.173, de junho de 1957, que resultara do projeto de um deputado do Amazonas, Francisco Pereira da Silva, ainda não sofrera regulamentação quando os militares assumiram o poder. A Zona Franca de Manaus é reformulada pelo Plano Estratégico de Desenvolvimento como "ponto culminante da Operação Amazônia" . O Estado brasileiro edita o Decreto no 288 de 28/02/67, que, ao lado do Decreto-lei 291, de 28/02/67, define a geopolítica para a interiorização do "capitalismo associado" na Amazônia ocidental (Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima) e na Amazônia oriental (Pará, Amapá, partes do Maranhão, Goiás e Mato Grosso). Esses mecanismos legais criavam incentivos durante um período de trinta anos, até 1997. "A reforma constitucional de 1988, no artigo 40 das Disposições Transitórias, manteve a Zona Franca de Manaus com suas características de livre comércio, exportação e importação e de incentivos fiscais, pelo prazo de 25 anos, ou seja até o ano 2013" (Salazar, 1992, p. 31).

A ZFM, que gerou cerca de cem mil empregos diretos até 1992, hoje enfrenta uma crise de várias proporções; a pior delas, a redução do número de trabalhadores da indústria de 65 para 35 mil e o debate sobre a continuidade de sua institucionalidade como a única política pública para a economia da região financiada pelo Governo Federal. A sua manutenção como pólo de desenvolvimento vem enfrentando inúmeros impasses: desempenho negativo nas exportações em relação ao ano de 1999, guerra fiscal, e mais recentemente, as ameaças produzidas pela Lei de Informática. O que aparentemente pode ser compreendido como uma questão de disputa entre as forças econômicas e políticas da federação, é, na verdade, uma das consequências dos reajustes da economia capitalista na realidade brasileira, que não se esgota nos embates regionais e nacionais.

A criação de zonas francas deve ser pensada como algo concebido na matriz de relações econômicas do quadro mundial - concepção que emerge do fato de todos os povos e lugares serem passíveis dessas conexões. Há conjunturas ilustrativas dos modos pelos quais essas relações foram moldadas. A Grande Depressão, as guerras mundiais, os mecanismos regulatórios dos períodos entre guerras, as entidades e instituições multilaterais do poder pós-guerras podem exemplificar, entre 1870 e 1970, os sentidos que comandaram a desterritorialização técnica e social da produção capitalista, com a globalização de suas relações técnicas, políticas, culturais. Em linhas gerais, todos os períodos citados tiveram nos componentes da economia e da cultura o dinamismo principal de movimentação mundial.

O modelo de zonas francas não nasceu aleatoriamente. É oriundo da ordem internacional imperialista mais desenvolvida, que aqui significa a existência de mecanismos reguladores das relações desiguais entre povos, nações, blocos. Esse modelo deve-se, em grande medida, ao processo de valorização do capital e ao aumento da concorrência internacional. Pode-se afirmar que, em virtude dos próprios acordos organizados na esfera política das relações diplomáticas, as zonas francas, como o termo sugere, são zonas menos sujeitas ao rigor pregado no contexto da Guerra Fria no plano econômico, e mais exemplares no sentido político.

Distinguem-se, ainda, classificações de forma inferiores e superiores de zonas francas. Em resumo, as primeiras têm a sua liberdade restrita a uma área delimitada, mantendo todos os impedimentos pertinentes às normas comerciais para outras áreas. O tipo superior goza de total autonomia "até o nível de renúncia da determinação da sua política econômica nacional" (Nicácio, 1982). O tipo mais simples da integração superior é representado pelos mercados comuns, e o mais complexo, pelas comunidades econômicas.

É evidente que a Zona Franca de Manaus, apesar de ser uma das mais antigas no processo de transformação do imperialismo, não chegou a atingir o grau de independência superior que a colocaria na situação atual de produção e comercialização livre em que se encontram algumas de suas similares em termos de tempo de funcionamento, as quais atuam como verdadeiros "Estados-regiões". O protecionismo sob a forma de nacionalismo pode ter limitado as possibilidades reais de emancipação da Zona Franca de Manaus ao tipo superior.

O que aparentemente é um problema - a cooperação entre o militarismo, a economia mundial e o nacionalismo - faz parte de um momento definido da ordem internacional. Essa concatenação de interesses determina a escolha do lugar de experimentação de uma das primeiras zonas francas do mundo; determina também os modos de compatibilizar a "ordem nacional" com a "ordem mundial"; e, finalmente, determina a contrapartida que os países "periféricos", "dependentes", podem obter por constituírem-se em área de expansão da acumulação capitalista. O que importa é reforçar que a concepção e a decisão de implantação da Zona Franca de Manaus são oriundas de processos e relações mais amplas que efetivam um movimento de descentralização da produção capitalista fora das suas zonas originárias.

Valle (Valle,2000, p.11) caracterizou o perfil predominante das indústrias instaladas na Zona Franca, em geral, como aquelas de processos produtivos fragmentados, baixo nível de exigência de qualificação de mão-de-obra, baixa dependência de insumos de produção locais, baixos investimentos fixos e fortemente dependente de partes, peças e componentes do mercado internacional e conseqüentemente, de tecnologia e marcas de fabricantes mundiais. O debate contemporâneo sobre a Zona Franca mobiliza todos os argumentos disponíveis até então produzidos para explicação de sua dinâmica e significado.

De maneira geral, as condições requeridas para a instalação de zonas francas em países periféricos estavam diretamente relacionadas à possibilidade de maior lucratividade advindas da capacidade de intervenção do Estado na criação da infra-estrutura necessária aos grandes investimentos e no estabelecimento de incentivos e subsídios fiscais; ao controle, pelo Estado, das condições sociais e jurídico-políticas da força de trabalho (restrição dos direitos políticos e sociais) e à disponibilidade de força de trabalho local abundante e barata (Valle,2000).

Nos anos noventa os Estados do Sul, Sudeste e Nordeste entraram em franca competição pela instalação de empresas multinacionais de montagem, de ponta e até de industria têxtil nas suas jurisdições locais. Tais atitudes, denominadas de guerra fiscal, incidem sobre a capacidade de os estados competirem em torno da cessão de maiores incentivos à fixação de empresas em sua área de jurisdição. Em São Paulo, Emerson Kapaz, empresário e ex- secretário estadual de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico, é favorável ao uso de incentivos fiscais como atrativo de negócios; o pólo paulista de informática recebe incentivos públicos. A tática, no entanto, tem mudado desde as contendas da reforma constitucional; grupo de empresários e técnicos têm procurado abandonar o conceito de guerra fiscal e partir para a demonstração da conjugação de fatores que podem e devem atrair qualquer investimento: infra-estrutura de estrada, portos, aeroportos, comunicações, universidades, centros profissionalizantes e oferta de mão-de-obra.

O desmonte da Zona Franca, à rigor, foi antecipado pelo governo Collor. O impacto do "fim" da ZFM tem sido objeto de polêmica. Benchimol, qualifica essas investidas em torno da Zona Franca como uma nova "geopolítica preconcebida" para a região regredir ao nível de uma "africanização ecológica" com a finalidade de regressão da fronteira humana, o que é bastante controverso. "Africanização econômica" associada a "balcanização ecológica" produzem a regressão da fronteira humana na Amazônia com possibilidades de criação de condições de desagregação e perda da identidade brasileira (Benchimol, 1992, p. 155). Em resumo, demonstra como o desmonte da Zona Franca de Manaus concorre, também, para o desmonte das instituições do Estado, na medida em que as opções de trabalho e os empregos diminuem, os investimentos públicos sucateiam-se, a decadência do serviço público manifesta-se, assim como a falência das empresas aumenta. Opinião semelhante foi manifestada por Roberto Macedo (1997) em artigo sobre os trinta anos de Zona Franca de Manaus : "entre outros pontos positivos o pólo industrial de Manaus gerou produção de empregos e arrecadação de impostos que permitiram a expansão do setor público na região. Nem tudo é isento e o Estado do Amazonas é o terceiro em arrecadação de ICMs per capita do país, e, sozinho, arrecada mais que o conjunto dos Estados do Maranhão, Rio Grande do Norte e Alagoas. Aliás, nem o Estado nem a Prefeitura de Manaus sobreviveriam na ausência de arrecadação que vem das indústrias da região. Quem quer acabar com a ZFM deve pensar em termos de economia política, que felizmente está de novo em moda nas escolas de economia, para relembrar que os enfoques apenas econômicos são ingênuos e nem sempre os mais relevantes, particularmente quando distorcidos".

O debate provoca especulações de novas alternativas econômicas de integração regional. Os caminhos apontam em direção oposta à dos interesses centrais. Procuram, na saída para o Pacífico e para o Caribe, via Venezuela, outras rotas que possibilitem manter a base de modernização criada pela "zona econômica livre". A preservação da floresta está na pauta de negociação para a "preservação" da Zona Franca. Ao contrário do resto da Amazônia legal, o estado do Amazonas tem um desmatamento insignificante para a área: cerca de 2%, apenas. "Com empréstimos externos, produtos verdes na Zona Franca e exploração racional da floresta, a Amazônia está ancorada no terceiro milênio com a perspectiva de transformar uma população ribeirinha em cidadãos do mundo" (cf. Isto É, 27/03/96). Deste modo, no mínimo, vislumbra-se um não-limite, passo fundamental para uma reterritorialização descontínua, sem interferências da centralidade brasileira.

Marilene Corrêa da Silva - Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Professora do Departamento de Ciências Sociais e Professora e Pesquisadora do Mestrado Natureza e Cultura na Amazônia do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade do Amazonas.

   
           
     

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Atualizado em 10/11/2000

   
     

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