A
infância, a pobreza e a experiência urbana
Simone
Miziara
Frangella
É
comum – e necessário – encontrarmos no mundo contemporâneo
discursos e práticas que procuram fazer valer os direitos sobre a infância
promulgados pela Declaração dos Direitos da Criança das
Nações Unidas e, no caso brasileiro, também pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente. Garantir condições para
que as crianças possam acessar direitos básicos como educação,
saúde, lazer, integridade física e psicológica tem sido
a tônica de ação de inúmeros profissionais e comunidades.
Estes enfrentam as enormes dificuldades que essa tarefa acarreta, visto os
incessantes abusos cometidos contra esse grupo etário em muitos lugares
em escala global. A preocupação em tornar efetiva a declaração
de direitos da criança direciona o enfoque na universalidade dessa
categoria social.
No
entanto, para além da constante usurpação desses direitos,
há uma outra dificuldade a ser enfrentada pelos defensores dos direitos
universais, a dizer, a diversidade de construções da infância
nos diferentes contextos sociais. Tal questão é evidente quando
tratamos de crianças de culturas não-ocidentais, por exemplo.
Marcadas por modelos familiares heterogêneos e diferenciados com relação
ao modelo ocidental de infância e família moderna (onde, segundo
Aries, a criança tem um lugar central nessa organização),
a adequação de direitos enfrenta os costumes locais, as tradições
seculares e religiosas de comunidades étnicas, os quais muitas vezes
deslocam as representações sobre a criança para um outro
lugar simbólico e político.
Embora
seja mais evidente enxergar essa dificuldade em sociedades “outras”,
ela está presente também na vida ocidental cotidiana. No esforço
de enfocar os direitos universais, deixamos por vezes escapar as diversas
formas que a infância toma; ou melhor, deixamos de lado respostas variadas
que as crianças encontram para as limitações impostas
em seu contexto social. É sua propriedade de agência que nos
escapa; ao ignorá-la – como acontece muitas vezes – atrapalhamos
possíveis diálogos, enfraquecemos políticas de proteção
e perdemos de vista a construção específica dessa infância.
A tarefa se torna complexa. É necessário prover, a meninos e
meninas, condições nas quais se sintam protegidos e estimulados
em seu potencial. Mas, a fim de que essas medidas – pretendidas universais
- não se tornem uma camisa de força, é preciso também
dirigir o olhar e a compreensão para as diferenças de práticas,
de representações, de uso dos espaços e de discursos
elaboradas em sua experiência cotidiana.
Dentre
essas vivências, destaco o contexto dos meninos e meninas que vivem
nas ruas das cidades. As reflexões subseqüentes são fruto
de um duplo e contínuo processo. Das investigações em
minha pesquisa de mestrado ao uso da mesma na atuação do Projeto
Social Mano a Mano – projeto de arte educação nas ruas
com crianças e adolescentes em situação de rua, criado
em 1997 e presente até o momento na cidade de Campinas – criou-se
um conjunto de percepções sobre esses meninos e meninas. Suas
práticas e sua visão de mundo constroem um lugar social específico
nas ruas, sempre em uma dinâmica itinerante, em movimento, sem pautar
uma identidade fixa, mas trazendo as ruas como um elemento fundamental de
sua sociabilidade.
É
difícil precisar as causas que justificam a ida dos meninos para as
ruas das cidades. Entre os vários dissabores que rodeiam esse grupo
social, há a pobreza econômica que os impele para fora de casa,
os contextos familiares frágeis e os conseqüentes e graves conflitos
entre as gerações que compõem, as desilusões ou
os medos do bairro. No entanto, dentre as crianças que sofrem tais
problemas, apenas uma porcentagem pequena chega às ruas. No histórico
desse pequeno grupo se acrescenta a curiosidade pela circulação
que a rua oferece, as aventuras prometidas pelos amigos, as sensações
de desbravamento e liberdade que, ainda que relativamente ilusórias,
são tomadas como motor para a vida da rua.
De
um lado, as ruas do centro da cidade são consideradas na perspectiva
da política urbana um lugar de passagem. Contrariando essa função,
essas crianças permanecem nelas. Como conseqüência, estão
privados de alguns de seus direitos fundamentais (escola, refeições
regulares, casa, apoio familiar). Estão também física
e psicologicamente vulneráveis a inúmeras formas de exploração
e aliciamento. Diante desse quadro, a política assistencial se esforça
para tirá-los das ruas; essa rede dinâmica cria vários
fluxos de saída, através de direcionamento para instituições
de atendimento ou trabalho com as famílias, e do contato gradual com
o menino. Nesse sentido, trabalham tendo como eixo principal assegurar os
direitos irregulares nessa trajetória infantil. Uma grande dificuldade
da rede são as questões sócio-econômicas e estruturais
que envolvem o universo desses meninos e que escapam às possibilidades
do trabalho assistencial.
Por
outro lado, a rua é, no caso desses meninos e meninas, mais que um
espaço de passagem, de deslocamento de um ponto ao outro. Ela é
o lugar das negociações diárias por comida, por “canto”
para dormir, pelo crack (que se torna um objeto de troca), pelo direito a
suas diversões e, acima de tudo, pelo direito de circular. Na rua eles
estabelecem vários vínculos, muitas vezes ambíguos, com
comerciantes, transeuntes e vizinhança dos pontos onde dormem, policiais
e outros garotos e garotas. Costumam relatar muitas aventuras noturnas feitas
com seus companheiros, traçando diversos pontos da cidade, tornando
esta cada vez mais íntima, dominando suas referências geográficas
e sociais com destreza. Nas ruas eles também absorvem um conhecimento
específico, uma espécie de “saber de rua”, percepções
de corporalidades, gestos, olhares, discursos que não somente os permite
sobreviver ganhando comida e bebida, como os impele a criar perfomances interativas
e, portanto, relações sociais das mais diversas.
Desta maneira, se é na cidade que se perdem e se aprisionam, por outro
lado é nas possibilidades de movimentação nela que meninos
e meninas experienciam um fragmento de suas vidas, nunca totalmente fraturado
de outros espaços pelo qual já circularam, mas certamente um
momento significativo da construção de uma sociabilidade. Nessa
vivência, meninos e meninas alteram suas percepções de
espaço e tempo, obedecendo a si mesmo e a um ciclo contínuo
de deslocamentos pelos espaços urbanos abertos, estabelecendo contínuas
relações de solidariedade e conflito, em uma espécie
de devir quase eternizado, cuja limitação física e simbólica
só é, muitas vezes, percebida quando essas crianças chegam
ao final da adolescência.
No
período em que moram nas ruas, este é o espaço onde vivem
e expressam angústias, medos, revoltas, alegrias e críticas
sobre a realidade econômica, familiar e da rua, que fazem com agudas
observações. Escoam sua impulsividade infantil em experiências
arriscadas, como o uso do crack e da cola; mas são capazes de revelar
aguçada e lucidamente a realidade da rua e seus personagens. Essa expressividade
intensa é visível nos desafios que fazem aos transeuntes, nas
maneiras de se mostrar em semáforos, calçadas, na relação
confusa com os policiais, nos embates ocasionais com os parentes que os procuram,
na relação com os educadores sociais.
O
espaço urbano como espaço público tem sido usado com
cada vez menos freqüência por crianças como um espaço
de sociabilidade; a infância é cada vez mais retraída
para os espaços fechados dos condomínios privados, shopping
centers, parques temáticos, clubes, e suas casas. As crianças
que estão nas ruas tomam esse espaço como o lugar de afirmação
pessoal e grupal. Ainda que, levando em conta sua visão de que estão
ocupando os espaços abertos temporariamente (porque sempre acham que
podem estar fora a qualquer hora). Nas ruas, os meninos desvelam uma vivência
específica enquanto agentes de sua experiência naquele momento
e não apenas vítimas de perverso contexto econômico e
social.
Esse
quadro pode ser perturbador para os agentes sociais ou urbanísticos;
mas é a partir dele que se pode compreender uma possível resposta
da infância pobre às condições urbanas que lhes
são dadas como alternativa. E, é através do entendimento
das interpelações que os meninos fazem em suas ações
cotidianas que se pode chegar às melhores maneiras de dialogar com
os mesmos, de propor possíveis realidades nas quais eles podem compactuar.
O esforço do Projeto Social Mano a Mano vai nesse sentido. Em suas
atividades efetuadas em conjunto com meninos e meninas nas ruas, tenta-se
colher os rastros de suas histórias fragmentadas, desde a saída
de suas casas às suas aventuras cotidianas, e entendê-las à
luz das leituras que esse menino faz do seu universo que é, sobretudo,
urbano.
Trabalhar
com as trajetórias de cada menino ou menina tem sido um esforço
conjunto da rede assistencial em Campinas. Compartilhando informações
sobre determinada criança, pode-se entender a dimensão espacial,
psicológica, social de seus deslocamentos e assim tentar ajudar o menino
a repor gradualmente sua trajetória e construir um sentido para sua
realidade itinerante, e propor-lhe uma alternativa mais adequada. Nessa proposta
conjunta, ao Mano a Mano cabe fazer esse trabalho nas ruas. Com isso, primeiro
trabalha-se com o reforço do espaço urbano aberto como um espaço
público e, portanto, sujeito a compartilhamento entre meninos, educadores,
transeuntes. E, em seguida, tenta-se compreender, através dos usos
dos signos e atividades presentes na rua, os significados produzidos por meninos
e meninas, suas formas de agência, a construção de seu
universo.
Penso
que é fundamental e urgente reforçar a garantia dos direitos
universais da infância, a fim de evitarmos as formas escandalosas de
exploração e violência infantil amplamente testemunhadas
em escala global. Porém, perceber quando criança, enquanto sujeito,
responde ao contexto que o oprime nos exime de procurarmos adequar as crianças
aos seus direitos, ao invés de adequar os direitos ao seu universo.
No caso de meninos e meninas que usam as ruas da cidade como seu universo
territorial cotidiano, é necessário considerar as vivências
nesse espaço, ou melhor, esse espaço como um lugar de experiência
e não apenas residual. Desse modo, ao obter uma boa adequação
entre o menino em situação de rua como sujeito de direito e
as possibilidades concretas que ele acesse esses direitos, é necessário,
antes de tudo, entender a medida da rua na vida desses meninos e meninas.
Simone
Miziara Frangella, antropóloga, doutora pelo IFCH-Unicamp.