Geografia do país
da infância
Carlos
Vogt
A infância
é um país que não existe, de onde fomos exilados e para
onde todos queremos voltar.
É
mais ou menos isso o que escreve Cesare Pavese (1908-1950) sobre essa utopia
regressiva, como são todas as utopias, situada entre a realidade cronológica
de nossa existência e a fantasia cíclica de nosso imaginário
e de nossas recordações.
Nesse sentido,
penso que os países, e, mais que os países, as nações,
que são feitas das pessoas, da educação e da cultura
que nelas e com elas vivem e convivem, de sua humanidade e de seu humanitarismo,
enfim, penso, pois, que esses territórios de vida material e espiritual
têm também infância e desejos de retorno.
Na infância
do Brasil há um traço persistente de nossa identidade cultural
e um chamamento constante ao seu uso e menção para a individuação
do caráter nacional.
Trata-se
do famoso jeitinho brasileiro já tão escondido e tão
cantado em prosa e verso e hoje, ao menos em parte das elites tecno-progressistas
que por aqui gorgeiam como lá, um tanto malvisto e excerado em textos
assépticos de puro “globalês”, ainda que escritos
em português e, no mais das vezes, em porto-inglês.
Esse traço
liga-se a um outro, também de forte presença na expressão
da matriz genética de nosso modo de ser: a cordialidade. Apontada por
Sérgio Buarque de Holanda no seu papel distintivo do ser brasileiro,
a cordialidade passou também, com os anos, por um processo de desconstrução
qualificada, ou de desqualificação construtiva de tal maneira
que hoje, mesmo entre intelectuais e estudiosos da brasilidade, o homem cordial
anda desprestigiado e sem jeito.
A
esses dois traços soma-se um terceiro - o da malandragem - e com os
três pode-se dizer que se obtém uma célula do embrião
da infância de nossa identidade, às vezes confundida com a identificação
de nossa infantilidade.
O jeitinho
está ligado à nossa proverbial criatividade e à busca
de soluções rápidas de problemas de várias ordens.
Contrapõe a eficácia do atalho e do desvio à morosidade
do estabelecido e do burocrático. É no limite, um expediente
ingênuo para resolver uma complicação problemática.
Ao menos na infância da persona social que ele ajuda a configurar.
Durante muito
tempo, esse traço teve, pois, um sinal positivo de distinção.
Correspondia, àquele outro predicado de nossa identidade, já
referido acima, o da malandragem.
Assim como
a malandragem, até certo ponto romântica e estruturada na tensão
da dialética da ordem e da desordem, como mostra Antonio Cândido
na análise seminal de Memórias de um sargento de milícias,
de Manoel Antonio de Almeida, evoluiu para o banditismo na nova ordem global,
o jeitinho, também por injunções econômico-político-sociais,
evoluem para o “por fora”, para a corrupção.
Ambos os
traços perderam a aura. Mantiveram ou mesmo aumentaram sua eficácia
mas já sem o apelo ético da convivenciabilidade social dos atores
nos jogos de antagonismos que eles põem em funcionamento.
Desfez-se
também a regra constitutiva desses jogos de convivência: a cordialidade
que remetia à caracterização de comportamentos emocionais,
impulsivos, para o bem e para o mal, passou a ser entendida como marca de
pieguismo e característica, agora, de comportamentos só emocionados.
Desse modo,
a paixão, presente na cordialidade ancestral, ou na infância
de nossa ancestralidade cultural, cede lugar ao sentimentalismo vulgar da
bondade boba e retórica, cuja facilidade expõe o seu formalismo
e a frieza das relações que estabelece. Penso também
que o ideário da auto-ajuda tem a ver com essa transformação
da paixão da cordialidade na cordialidade desapaixonada e complacente
da esperteza como expediente de exacerbação da competitividade
individualista em suas características mais locais, dentro do processo
de globalização.
Como nesse
sentido metafórico a infância é utópica, acredito
também que é preciso recuperar o ponto de ruptura desses valores
e redirecionar esses predicados para a sua positividade, importância
e distinção na identidade e na cultura brasileiras: visitar
a infância da terra não como turista da simples curiosidade,
mas como viajante de si mesmo no estranhamento constante da descoberta do
outro.