Era
uma vez... E ainda é*
Contos de fada – possível resolução para os conflitos
infantis
Andrea
Pires Magnanelli
Ao
entrar em uma sala de aula com crianças de cinco anos, carregando um
livro de contos de fadas, um professor carrega mais que um livro. Mais que
um simples conto. Quando o professor é um bom contador de histórias,
o olhar daquelas crianças fica fixo, mas a mente voa.
Como
esses contos tornaram-se clássicos, se a narrativa acontece em palácios
ou florestas e isso é tão distante da maioria das crianças,
visto que não é comum encontrar palácios na cidade de
São Paulo? E, apesar de existirem poucas florestas na nossa cidade,
os jovens dão um jeito de se embrenhar em matas desconhecidas apesar
do aviso de perigo dos pais.
Os
contos trazem conflitos pertinentes à vivência humana que permeiam
diversas gerações. Eles trabalham com o conteúdo humano,
com aquilo que muitas vezes fica escondido como a rivalidade fraterna, sensações
edípicas, desejar a “morte” do pai do mesmo sexo... Desta
forma, o conto de fada irá mostrar às crianças, de uma
maneira subjetiva e em alguns pontos objetivamente, que a vida trará
algumas dificuldades. A luta e a descoberta não acontecem da noite
para o dia. O herói ou a heroína passam por diversas provas
e essas devem ser realizadas por eles mesmos: “A única forma
de nos tornamos nós mesmos é através de nossas próprias
realizações”. (Bettelheim, 1980:173).
A
sociedade atual, globalizada, está cada vez mais tornando-se individualista
e em busca de uma beleza externa perfeita, enquanto o mágico se esvai
prematuramente.
Todos
os dias há notícias de violência na televisão,
seja filho matando os pais ou pais descontrolados espancando seus filhos.
Há
também muitos programas que expõem a criança a uma sexualidade
precoce. Seja programa infantil, novela ou “reality shows”.
Uma reportagem da revista Educação, mostra-nos que
os partos cresceram em 31% entre meninas de 10 a 14 anos – idade que
a menina não tem maturidade psicológica, principalmente para
criar um filho. As dúvidas e as angústias por que passam, crianças
e jovens, são hoje respondidas de forma erotizada pelos meios de comunicação,
especialmente a televisão. Sem contar o fácil acesso a sites
da internet.
O
resgate da magia da leitura dos contos de fadas não será a solução
dos problemas mundiais, no entanto, como eles atuam também no inconsciente,
podem ajudar muito a criança a eliminar/entender o(s) conflito(s) pelo
qual está passando no momento que entra em contato com a leitura e/ou
a escuta deles.
Existem
diversas interpretações e análises para os contos de
fada. É importante ressaltar que este artigo tem como respaldo a linha
psicanalítica, levando em conta as teorias de Sigmund Freud e Jacques
Lacan. Além disso, a escolha dos contos de fadas para a leitura foi
cuidadosa, no sentido de procurar as traduções mais próximas
das edições originais.
“Não é surpreendente descobrir que a psicanálise
confirma nosso reconhecimento do lugar importante que os contos de fadas populares
alcançaram na vida mental de nossos filhos. Em algumas pessoas, a rememoração
de seus contos de fadas favoritos ocupa o lugar das lembranças de sua
própria infância; elas transformaram esses contos em lembranças
encobridoras”. (Freud, 1913:355).
Os
contos surgem a partir dos mitos e tradições orais, alguns datados
do século II d.C.. Eles sofreram e sofrem modificações
em sua estrutura, não apenas por razões externas, mas também
por razões internas ao do próprio contador. Nas versões
escritas por Perrault, por exemplo, ele acrescenta preceitos morais, já
que esses contos eram usados para a diversão na corte de Versalhes.
Nos
dias atuais, essas alterações também ocorrem acarretando
muitas vezes uma modificação no enredo da história para
parecer menos “chocante” aos olhos da sociedade. Os autores dessas
mudanças acreditam que a perversidade existente nos contos podem influenciar
as crianças de forma a estas tornarem-se “violentas”, no
entanto, parece não querer ver que os conflitos existentes nos contos
são os conflitos internos pelos quais as crianças passam.
As
histórias dos contos de fadas, independente do local de origem, passam-se
em lugar e épocas inexistentes (“país muito longe”,
“numa floresta encantada”, “há muitos e muitos anos”...).
Esta é uma das razões da fácil migração
e entendimento em várias culturas e por várias idades, já
que os contos tratam de conflitos que permeiam toda a base humana universal.
Ou seja, os contos são atemporais, assim como o Id.
Os
principais autores e adaptadores de contos de fada são Charles Perrault
(França), Hans Christian Andersen (Dinamarca) e Jakob e Wilhelm Grimm
(Alemanha) – estes últimos mais conhecidos como “Os irmãos
Grimm”.
Mas,
afinal, qual a relação entre contos de fadas e a subjetividade
infantil? Quais os conteúdos presentes em um conto que possibilitam
a uma criança elaborar seus conflitos? É impossível detalhar
cada trecho e cada passagem de todos os contos, não apenas pelo número
volumoso de contos, mas principalmente porque cada conto tem uma importância
diferente para cada criança em períodos diferentes de sua vida.
Como
se constitui um sujeito? Quais os conflitos que vive? Lacan, apropriando-se
de Freud, nos oferece referenciais partindo do Estádio do Espelho.
Este Estádio, descrito por Lacan, começa aproximadamente aos
seis meses de idade. É através dele que a criança começa
a conquistar sua imagem corporal, através do discurso e do desejo do
outro (mãe).
De
que forma os contos de fadas expressam esse momento e seus conflitos? Como
ilustração podemos citar o conto: O patinho feio. Nesta
história de Andersen, uma pata choca seus ovos e quando estes se quebram
um sai diferente de todos os outros. Feio. Apesar de nadar muito bem, o patinho
é desprezado pelos seus irmãos, pela comunidade dos patos e
por sua mãe que diz: “Eu queria ver você bem longe
daqui!” (Andersen, 1995:110).
O
patinho começa a achar que ele é realmente muito feio, então
foge. Durante sua viagem passa por dificuldades e seus infortúnios
são responsabilizados pela sua feiúra. Até que em um
momento, ele vê os cisnes e vai ao encontro desses, mesmo correndo o
risco de levar bicadas. Chegando lá:
“(...)
O pobrezinho abaixou a cabeça, olhando para a água, e esperou.
Mas que foi que ele viu na água límpida? Por baixo de si, viu
sua própria imagem; só que sua imagem não era mais de
um desajeitado pássaro cinza-escuro, feio e repelente. Ele era um cisne!”
(Andersen, 1995:118).
O
patinho, na verdade um cisne, já havia nadado antes em outros lagos.
Porém, olhava-se através do olhar do outro, assujeitado ao desejo
e olhar do outro – principalmente daquela que exerce a função
materna. Saindo para o mundo, crescendo, quando volta a olhar sua imagem ele
já vê um lindo cisne branco e não apenas um pato cinza
feio – saída dessa assujeitação. É nesse
Estádio que a criança começa aos poucos perceber que
seu corpo, até então sentido como fragmentado, é algo
único. É através dessa experiência, com a mediação
do outro-mãe (mãe, enquanto função materna), que
a criança começa estruturar seu eu e a conquistar a sua imagem
corporal.
Essas
identificações que as crianças fazem com os contos são
facilitadas pela não especificidade de tempo e local. A identificação
com os personagens é facilitada pela ausência de nome próprio.
Normalmente o nome é relacionado às características físicas,
como por exemplo, Branca de Neve e Cinderela ou Gata Borralheira (o nome origina
de cinders, que significa borralho), um dos únicos nomes próprios
que aparece é João – freqüente em muitas histórias
– e Maria). Nos contos, a idade das princesas, reis, rainhas, bruxas,
príncipes, etc. não é definida sendo possível
transitar por todos os personagens em momentos diferentes de nossa vida.
No
conto há o personagem malvado, que geralmente é nominado e aparece
sob a descrição da madrasta da “Branca de Neve”,
a bruxa da casa de chocolates de “João e Maria” e o gigante
que mora nas nuvens na história “João e o pé de
feijão”. Ou seja, a maldade pode estar presente em todos nós.
Nos contos, os personagens não têm ambivalência: ou são
bons ou são maus – da mesma maneira que a criança pensa:
a mãe má não pode ser a mãe boa.
Na
atualidade, muitos contos aparecem de forma distorcida do original. Um grande
exemplo disso, são os desenhos animados de Walt Disney, que subtraem
passagens consideradas mais fortes com o objetivo de não assustar ou
chocar as crianças, “evitando” o conflito. Não podemos
generalizar, algumas histórias de Disney merecem a devida atenção
como O rei leão e a mais nova animação, Procurando
Nemo. No entanto, quanto à adaptação de contos de
fadas clássicos, estes aparecem distorcidos e amenizados.
Os
contos no original podem chocar alguns adultos, é “assustador”
um lobo que come uma menina (Chapeuzinho vermelho) ou uma sereia
que arranca sua própria língua em busca do amor de um humano
(A Sereiazinha) ou um rapaz que procurando o medo retira sete enforcados
da forca para aquecê-los (O homem que saiu em busca do medo).
Muitos adultos olham as crianças sob a lógica do adulto e não
sob a fantasia da criança.
Quando
pequena, a criança pode ser bem agressiva: bater no irmão, não
sair de perto da mãe, morder o colega da escola... a medida que cresce
e começa a socialização a criança fala, ao invés
de agir – simbolizando. E o conto é exatamente a escrita de uma
simbolização, de um mundo onde a criança pode extravasar
seus anseios, medos e necessidades.
Escondendo
a dor, a perda, a violência dos contos, esconde-se o que há de
mais verdadeiro nessas histórias. O conto não deve ser só
feito de imagens boas, pois não deve ser uma fuga para as crianças
se esconderem em um mundo de faz de conta. Mas, conter as passagens de medo,
angústia, vingança como um meio da criança simbolizar
seus próprios conflitos.
O
enredo dos contos de fada também reproduz as histórias de vida
das crianças, pois nele o herói sai de casa, passa por privações,
enfrenta perigos e conhece a maldade, triunfando no final da história.
Na vida, a criança passa por estas modificações: precisa
sair de casa. Desligar-se dos pais. Ir para escola, fazer amigos, saber evitar
situações de risco, explorar o mundo a sua volta.
A
criança tem relação de total indistinção
com a mãe nos primeiros meses de vida. A criança é o
desejo da mãe. Essa quebra se dá com a interdição
ao incesto que a função paterna realiza. A partir desse momento
a criança, volta-se para a cultura. Para o Outro. E o conto de fadas
entra como este Outro, pois também pode ajudar na separação
dessa relação mãe-criança. Isso acontece pois,
de maneira simbólica, o conto atua no psíquico da criança.
Podemos
tomar como exemplo o conto de Andersen, A Polegarzinha. Nesta história,
uma mulher deseja muito ter um filho, então pede ajuda a uma feiticeira
que lhe dá um grão de cevada - semente. A partir do beijo da
mãe, a flor se abre e nasce a filha, como é muito pequena, recebe
o nome de Polegarzinha. Um dia, enquanto está dormindo, uma sapa a
seqüestra para casar-se com o filho sapão. No entanto, a menina
foge com a ajuda dos peixes. Um besouro a pega para casar-se com ele, mas
todos os outros insetos dizem que Polegarzinha é muito feia. Depois
de ser deixada pelo besouro a personagem acredita ser feia. Ela encontra-se,
então, com uma rata, e esta também quer realizar o casamento
da Polegarzinha com o vizinho toupeira, por este ser rico e inteligente. Enquanto
está na casa da rata, a menina salva uma andorinha e esta depois ajuda
sua salvadora a fugir do casamento, levando-a para um lugar onde há
outras pessoas como ela – pequena como o dedo polegar. Lá então
Polegarzinha conhece um homem com quem se casa.
Esta
pequena história nos mostra que Polegarzinha vive segundo os desejos
do Outro. É sempre levada, carregada para os lugares sem ser questionada.
Quando a andorinha aparece, a personagem faz uma escolha, pois lhe é
feita uma pergunta: “O frio inverno está chegando –
disse a pequena andorinha – Estou de viagem para as regiões quentes.
Você quer vir junto?” (Andersen, 1995:34).
A
criança quando pequena, é o desejo da mãe, tem medo e
gosta daquilo que a mãe gosta. Para ilustrar, transcrevo um trecho
da fala de uma paciente de Maud Manonni: “A fumaça”,
diz Isabelle, “arde nos olhos das crianças. Elas têm medo.
No fundo elas não têm medo, é porque a mamãe tem
medo que elas têm o medo da mamãe(...)” (Manonni,
1988:137).
O
conto ilustra Polegarzinha presa ao desejo dos outros até que toma
sua decisão e parte, libertando-se dos desejos dos outros e tornando-se
um sujeito desejante. Agora, já caminha com seus próprios pés,
sem precisar ser levada pelos outros.
A
pesquisa realizada para este artigo apenas está começando. Este
é um pequeno apanhado de quantas significações e significados
podemos encontrar em uma literatura de tão fácil acesso como
os contos de fadas. Para percorrer este caminho agi um pouco como Chapeuzinho
Vermelho, ao olhar pelos cantos. Em alguns momentos saí da trilha,
mas logo retomei o meu rumo. Em outros, fiquei como a Bela Adormecida, esperando
o momento para despertar e então escrever mais algumas linhas. Em outras,
sendo ousada, como a menina que percorre o mundo em “Os sete corvos”.
Os
contos de fadas vêm mobilizando milhares de crianças, jovens
e adultos durante muitas décadas. Muitos trazem lembranças,
sejam boas ou más, de algum conto em particular. Como cada um vivencia
um conto é único.
*
Este artigo baseia-se na monografia “Era uma vez...” - os
contos de fada como mediadores no trabalho psicopedagógico para uma
possível resolução diante dos conflitos internos infantis.
Andrea
Pires Magnanelli é especialista em psicopedagogia na PUC-SP.
Referências
Bibliográficas:
ANDERSEN, Hans C. Histórias maravilhosas de Andersen. São
Paulo: Companhia das Letrinhas, 1995.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
FREUD, Sigmund. A ocorrência, em sonhos, de material oriundo de
contos de fadas. Obras Completas de Sigmund Freud. Volume XII, 1913.
MANNONI, Maud. Efeitos da reeducação em uma criança neurótica.
In: A criança retardada e a mãe. São Paulo:
Martins Fontes,1988. p. 125-146