A
infância e a aquisição de linguagem
Maria
Fausta Pereira de Castro
Nada
mais próximo do tema da infância do que o fenômeno da aquisição
de linguagem. A palavra “infância” vem do latim infantìa,ae
que significa tanto ainda não falar como infância, o que é
novo, novidade; do latim infans,ántis, que não fala,
criança. A aquisição da linguagem é, portanto,
a passagem do infans, aquele que não fala, para sujeito falante.
Somos
testemunhas dessa mudança e nos admiramos a cada vez que temos o privilégio
de acompanhar de perto as primeiras vocalizações do bebê,
seus balbucios e fragmentos de enunciados nos quais reconhecemos partes da
nossa própria fala. Não deixamos de atribuir sentido à
fala infantil, de interpretá-la apesar de toda a diferença que
apresenta quando comparada à do adulto. A língua está
entre nós, ela antecede o infans na cultura e determina seu
percurso na aquisição de linguagem; o destino de toda criança,
salvo certos avatares, é se tornar falante. Em poucas palavras, podemos
dizer que a aquisição de linguagem é um fenômeno
que se repete em cada ser e, de certo modo, é tema de todo mundo: os
leigos a vêem como natural, apostando nesse vir-a-ser falante e, por
outro lado, investigadores de diversas áreas se perguntam como pode
uma criança vir a falar. Tanto a filosofia, quanto a psicologia, a
psicanálise e a lingüística formularam e formulam hipóteses
sobre a aquisição e a fala da criança.
Ao
longo dos séculos se encontram relatos que se referem às primeiras
palavras da criança, como também às indagações
sobre as condições necessárias para falar. Conta-se,
por exemplo, que o rei Psamético do Egito, no século VII A.C,
determinou o confinamento de duas crianças desde o nascimento até
a idade de dois anos sem qualquer convívio com outras pessoas, para
que se observasse como falariam ou se falariam ou ainda que língua
falariam no contexto de privação social. Além da crueldade
envolvendo o episódio é preciso notar que a hipótese
sustentada pelo rei era que, se essas crianças crescessem sem exposição
à fala humana e viessem a falar, a primeira palavra emitida espontaneamente
pertenceria à língua mais antiga do mundo. Passados dois anos
de total isolamento as crianças emitiram uma seqüência fônica
que teria sido interpretada como “bekos”, palavra do frígio,
língua indo-européia desaparecida, do grupo anatólico,
que era falada pelos frígios. Concluiu-se, então, que a língua
dos frígios era a língua mais antiga do mundo.
Note
o leitor que, além das indagações sobre a infância
e a aquisição de linguagem, o rei indagava-se sobre a origem
da linguagem através da investigação sobre a sua origem
na criança. Este salto do ontogenético, isto é, do desenvolvimento
individual, para o filogenético, como evolução de uma
espécie, e reciprocamente, é um trajeto que, embora insustentável,
ainda se observa em tempos bem mais atuais, quando o problema toca tangencial
ou frontalmente a questão da origem e da mudança.
Nesses
casos o termo “infância” é às vezes evocado
ou usado metaforicamente para falar de estados iniciais sobre os quais nossas
hipóteses são, até hoje, bastante especulativas.
Ferdinand
de Saussure, fundador da lingüística como ciência, posiciona-se
ceticamente a respeito da discussão sobre a origem da linguagem humana
e se opõe com veemência aos autores que estabelecem um paralelo
entre a língua e o organismo vivo que nasce, cresce e morre. A língua
para o autor não é um ser organizado, ela não morre espontaneamente,
não se deteriora e não cresce, na medida em que ela não
tem nem infância, nem idade madura ou velhice, e não nasce tal
como ocorre aos organismos vivos. A língua é um objeto de cultura,
mas não entendido como oriundo da necessidade de comunicação
e, sim, forjado pelo simbólico.
Os
estudos mais sistemáticos sobre a aquisição de linguagem
e sobre a particularidade da fala da criança começam a partir
do século XIX, através do trabalho dos diaristas. Assim foram
chamados aqueles que guiados tanto pela curiosidade intelectual quanto pela
condição de pais interessados no desenvolvimento de seus filhos,
registravam a fala destes em diários. Nada semelhante aos recursos
tecnológicos de hoje, em uma época anterior ao advento do gravador,
esses estudiosos contavam apenas com lápis e papel.
Os
diaristas realizaram um rico trabalho descritivo e mais ou menos intuitivo,
deixando uma fonte preciosa para outros pesquisadores interessados nos fatos
relacionados à emergência da linguagem na infância. Os
diários não eram, pois, voltados para um debate teórico,
seus autores não buscavam, na fala da criança, evidências
em favor de uma teoria lingüística ou psicológica, mas
podemos reconhecer que esses estudos se inseriam, de um modo ou de outro,
nas teorias da época.
Foram
os diaristas que iniciaram uma metodologia de trabalho hoje chamada “longitudinal”,
porque acompanha a fala da criança ao longo do tempo.
Os
estudos longitudinais dão visibilidade à mudança, isto
é, a um fenômeno que caracteriza tanto a aquisição
de linguagem quanto a própria infância. Cabe às hipóteses
ou teorias sobre a aquisição determinar o modo como concebem
a mudança quando enfrentam a sua questão maior: “como
pode um infans vir a falar?”
Se
a língua, como foi dito acima, no seu funcionamento simbólico
antecede o sujeito, está lá, ou melhor, é falada pela
comunidade em que ele nasce, a pergunta acima pode ser traduzida em uma outra,
o que põe em cena o papel do adulto: “qual o efeito da incidência
da fala do outro sobre o corpo prematuro do infans?”
As
perguntas acima não deixam de evocar um debate há muito formulado,
mas sempre vigente, entre hipóteses que partem do ponto de vista de
uma dotação da natureza, do inato, do biológico e aquelas
que incluem o problema da aquisição de linguagem na ordem da
cultura.
Não
traremos para o leitor esse debate, embora ele esteja no centro das discussões
sobre a aquisição de linguagem e não se configure simplesmente
pela oposição entre os termos “natural x social”.
Optamos aqui por deixá-lo ecoar como uma questão que circula
entre as formulações sobre as relações estruturais
entre o outro como falante (a mãe ou outro adulto), a própria
língua em funcionamento e a criança.
Como
sabemos o infans nasce em um estado de prematuridade específica
da espécie e nesse sentido, o diálogo entre mãe e bebê
deve ser tomado pela radical assimetria que o caracteriza, a começar
pelo fato de que inicialmente só o adulto fala, e fala pela criança
transmitindo-lhe sua “vocação humana”, bela expressão
do psicanalista Didier Weil ao qualificar essa voz que, ao passar a fala,
passa também à criança a sua música, transmitindo-lhe
uma dupla vocação: “está ouvindo a continuidade
musical de minhas vogais e a descontinuidade significante das minhas consoantes?”
Poeticamente
definido e condensado na transmissão da “vocação
humana”, esse fato dá visibilidade tanto ao efeito da presença
do bebê no adulto, quanto ao efeito que a fala deste promove no corpo
prematuro.
A
tese da prematuridade requer que se explicite o que ela acarreta: o ser humano
imaturo não sobrevive sem o adulto da espécie. Entretanto, não
é sobre a necessidade que falamos aqui. A mãe interpreta a presença
da criança como uma demanda. O grito do bebê é tomado
como a voz de um chamado pelo adulto, abrindo caminho para a aquisição
de linguagem, para uma relação da criança com a língua,
porque nada nesse diálogo miúdo entre mãe e criança
escapa à língua, o que dá todo o alcance da afirmação
de Saussure: é a língua que faz a unidade da linguagem.
Estas
observações de cunho mais geral ganham no trabalho de Cláudia
Lemos – lingüista e agora também psicanalista – uma
teorização a partir do que Saussure nomeou “ordem própria
da língua”, para dar conta da alteridade desta relativamente
ao humano. Para manter a coerência com essa perspectiva, a autora passa
a atribuir à lingua a função de “captura”,
entendida como uma abreviatura para os processos de subjetivação
que caracterizam a aquisição de linguagem. O termo dá
vigor à hipótese saussuriana de que a língua não
constitui uma função do falante; ela é o produto que
a criança “registra passivamente”, o que impede que a aquisição
de linguagem seja tomada como um processo de desenvolvimento em que a língua
se constrói como um objeto de conhecimento. Nesta linha de reflexão,
a perspectiva de Lemos de certo modo inverte a relação sujeito-objeto
ao conceber a criança como capturada por um funcionamento lingüístico-discursivo
que a significa como sujeito falante. As mudanças na aquisição
de linguagem passam a ser identificadas a partir das diferentes posições
da criança em uma estrutura, ou melhor, a partir das suas diferentes
relações com a língua, em que o pólo dominante
pode ser o outro, a língua ou o próprio sujeito.
Lembro
ao leitor que ao se abandonar a perspectiva de desenvolvimento não
se abandona por esse fato, o compromisso com a mudança, ao contrário,
ela passa a ser redimensionada pela ausência de um estado final, em
que culminaria o desenvolvimento. Embora se possa dizer que a fala da criança
se aproxima daquela do adulto, não se podem excluir mudanças
de posição deste último na sua relação
com a língua. Quanto à infância, esta sim é datada,
e se dilui no passado do falante.
Maria
Fausta Pereira de Castro é professora no Instituto de Estudos da Linguagem
da Unicamp.