Pesquisas
clínicas com crianças causam impasses éticos
Cautela
é a palavra apropriada quando se fala em pesquisa de medicamentos pediátricos.
Se, por um lado, existe a necessidade de desenvolvimento de novas medicações
(a medicina avança com novos tratamentos e fármacos), por outro,
ainda não está estabelecida uma forma ética de proteger
as crianças dos possíveis danos. Uma maneira adotada pelo Brasil
é a realização de testes na fase de pós-comercialização
(fase IV na pesquisa de novos medicamentos).
Os
estudos com fármacos devem ser feitos em diferentes faixas etárias
e a criança precisa ser protegida dos riscos da pesquisa. “Elas
ainda são muito sensíveis aos medicamentos”, destaca a
farmacologista da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Gun Mendes.
Ela avalia que “a indústria farmacêutica tem pouco incentivo
para estudar os medicamentos na população infantil porque o
número de usuários é pequeno e a perspectiva de retorno
financeiro também”. Segundo relatório da Associação
da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), apenas 10%
dos medicamentos lançados recuperam, pelas vendas, os gastos realizados
com pesquisa e desenvolvimento.
Mas
esse quadro está mudando. A Secretária Executiva da Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), Corina de Freitas, acredita
que, embora pequena, a demanda de pesquisa com medicamentos de uso pediátricos
tem aumentado. A Conep não tem estatísticas precisas sobre testes
infantis, mas Freitas atribui a tendência à preocupação
dos órgãos que aprovam a comercialização de medicamentos
de zelar pela segurança da saúde das crianças. “Geralmente
são estudos detalhados de medicamentos disponíveis para adultos,
nos quais são feitos ajustes de dosagem e verificação
de efeitos adversos”, declara.
Desde
2004, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
estabelece que o fármaco deve ser reconhecido como seguro e eficaz
para o uso a que se propõe através de comprovação
científica e de análise (resolução-RDC 219). Portanto,
o medicamento que chega à farmácia com indicação
pediátrica passa por testes de segurança e eficácia em
crianças. Cabe tanto à Conep quanto à Anvisa a aprovação
final dos medicamentos.
Cautela
A
professora de bioética da Universidade Estadual de Feira de Santana
(Bahia), Eliane Azevedo, afirma que a pesquisa com crianças deve ser
evitada porque elas são mais vulneráveis e ainda estão
desenvolvimento. Além disso, para a avaliação de efeito
adverso, a criança não tem condições de detectar
os riscos e benefícios do fármaco, ficando os sintomas subjetivos
sob julgamento de um adulto.
Trata-se
de um conflito ético em que se chocam a necessidade de desenvolvimento
de novas medicações, porque a medicina não pode avançar
sem a terapêutica, e a defesa de um ser vulnerável. Para isso,
o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) tem papel fundamental de
proteger o sujeito da pesquisa. “O Brasil se tornou respeitável
internacionalmente por defender a população”, destaca
Azevedo. Já são mais de 470 Comitês e todos os estados
já possuem no mínimo um.
A
resolução
196 de 1996, que estabelece diretrizes para a pesquisa com seres humanos,
deixa clara a preferência de usar pessoas com capacidade para decidir
se aceitam correr riscos dos estudos de desenvolvimento de novos fármacos.
Quando se trata da criança, ela entra em um grupo especial chamado
de vulnerável (que inclui também idosos), voltado para pessoas
que não tem autonomia para dar o consentimento livre e esclarecido
para a realização de estudos. Ele é dado pelos pais ou
tutores, mas deve levar em conta a vontade da criança, considerando
a capacidade de decisão, explica o coordenador da Conep, William Hossne.
No
entanto, a professora de Saúde Pública da Universidade Estadual
Paulista (Unesp), Maria Simões, considera que a legislação
dificulta a execução de ensaios clínicos em crianças
e, ao mesmo tempo, não tem o poder para restringir ou normatizar a
utilização dos medicamentos em pediatria. “Com exceção
de áreas como a oncologia pediátrica e a imunização
ativa, apenas na fase de pós-comercialização os medicamentos
passam a ser usados em crianças, de forma empírica e muitas
vezes questionável”, afirma. Geralmente, as doses são
adaptadas de acordo com peso e idade.
A
pesquisadora alerta que “não há relação
simples de proporcionalidade entre adultos e crianças”. Estas
estão mais sujeitas a alterações fisiológicas
que modificam as etapas de transformação de medicamentos no
organismo (absorção, distribuição, metabolismo
e excreção).
História
A
preocupação com a bioética em pesquisas com seres humanos
se intensificou depois da Segunda Guerra, quando o Tribunal Internacional
de Nuremberg (Alemanha) julgou os experimentos médicos alemães
com prisioneiros judeus. Assim, como um dos produtos do julgamento, foi publicado
o Código
de Nuremberg, de 1947, que exigiu, entre outras ações, o consentimento
voluntário na participação de pesquisas e a obrigação
em se evitar danos desnecessários aos voluntários.
Formulada
em 1964 pela Associação Médica Mundial, a Declaração
de Helsinque (Finlândia) também surgiu para coibir as pesquisas
abusivas, reforçando a proteção dos seres humanos em
ensaios clínicos. Documento de referência internacional, ela
estabelece princípios éticos para médicos e participantes
da pesquisa farmacêutica.
Já a pesquisa com crianças começa a ser estimulada quando
a Food and Drug Administration (FDA), agência norte-americana
de regulação de medicamentos, aprovou normas voltadas aos pacientes
infantis. Uma delas é a Lei Pediátrica (1999) que concede benefícios
aos laboratórios que pesquisem efeitos de fármacos nesse grupo.
Também
o ICH-E11 (Conferência Internacional sobre Registros Farmacêuticos
para Uso Humano), formada por instituições reguladoras e por
pesquisadores da União Européia, Estados Unidos e Japão,
reforça que pacientes pediátricos devem receber medicamentos
que tenham sido adequadamente avaliados para eles. E, em 2006, o Parlamento
Europeu decidirá se implanta o Comitê Pediátrico, cuja
responsabilidade é julgar as necessidades dos fármacos para
crianças.
No
Brasil, o Código de Nuremberg e a Declaração de Helsinque
são documentos de referência na defesa de normas para a realização
de pesquisa com seres humanos. A aplicação prática dos
princípios éticos está estabelecida pela resolução
196, explica o coordenador da Conep, autor da resolução que
regulamenta os testes com seres humanos, William Hossne.
Com
a 196 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), as pesquisas que envolvem
seres humanos passam pelos CEPs regionais. Depois de aprovadas pelo CEP elas
vão para a Conep, onde são novamente avaliadas. Quanto à
regulação, a Anvisa e a Conep avaliam técnica e eticamente
a possibilidade de submeter crianças a pesquisas de um medicamento
que pretende ser comercializado para uso infantil.
Outro
documento adotado pela Conep é a Declaração de Mônaco,
produto do Simpósio Internacional sobre Bioética e os Direitos
das Crianças (2000). Ela reconhece que a sociedade deve promover, em
especial, pesquisas relativas a doenças raras e ao desenvolvimento
de terapias eficazes.
Uso racional
“Os
medicamentos não recomendados para crianças ainda são
usados”, relata a pesquisadora da área de pediatria da Unicamp,
Maria Aparecida Moysés. Ela atribui esse fato ao desconhecimento do
médico, à automedicação ou aos casos em que não
há outras alternativas, pela gravidade do estado do paciente. Maria
Simões, da Unesp, acrescenta que, desde 1994, as intoxicações
com remédios são as principais a afetarem humanos, principalmente
em crianças menores de quatro anos. “Os medicamentos que mais
levam a óbito são os descongestionantes nasais, anticonvulsivantes,
anti-histamínicos e expectorantes e a principal causa ou circunstância
dos eventos foi o acidente individual, seguido do erro de administração
e do uso terapêutico”, afirma.
Na
revista Archives of Disease in ChildHood (Arquivos de Enfermidades
na Infância) de fevereiro de 2005, o consultor em medicina psicológica
do Hospital da Criança (Londres), Peter Hill, mostra que medicamentos
off label (utilizados para indicações, dose, idade,
não previstas quando do registro do produto) e unlicensed
(não aprovados para uso em crianças) são amplamente utilizados
em pediatria. O autor considera a prática aceitável desde que
não haja alternativa adequada e o uso não conflite com o conhecimento
médico considerado sério e respeitável.
Criança
é criança
De
acordo com Maria Moysés, com o rápido crescimento da criança,
as células aumentam em número e, no processo de divisão
(mitose), elas ficam vulneráveis aos agentes químicos e físicos,
podendo sofrer mutações com mais facilidade.
No
primeiro ano de vida, a criança triplica o peso (de 3 a 4 quilos, passa
para dez a onze quilos, aproximadamente) e o diâmetro cerebral aumenta
12 centímetros desde o nascimento até o primeiro aniversário
(em média, o crescimento máximo do diâmetro encefálico
de um adulto fica em 20 centímetros). Essa ebulição de
células se dividindo e se especializando, exige que o corpo esteja
adaptado à velocidade de crescimento e desenvolvimento. “Isso
não significa que ela é um ser imaturo, mas que está
se aprimorando, é um ser completo e não um adulto em miniatura”,
argumenta Moysés.
(PS)
Leia
mais:
Poder
das multinacionais inibe a indústria brasileira, mas fitoterápicos
podem ser uma solução.
http://www.comciencia.br/reportagens/farmacos/farma07.htm
The
Ethical Conduct of Clinical Research Involving Children
http://books.nap.edu/catalog/10958.html?onpi_newsdoc03252004