De motosserras e queimadas
A chamada
Operação Curupira iniciada pela polícia federal em
junho deste ano, no estado do Mato Grosso, deteve e indiciou dezenas de
pessoas envolvidas num esquema de corrupção: a venda, por
autoridades ambientais, de documentos falsos para autorizar o
transporte e o comércio de madeira ilegal. A
operação trouxe à tona um problema antigo, a
relação entre a atividade legal da indústria
madeireira e a extração ilegal de madeira na
Amazônia.
O Brasil é o
segundo maior produtor mundial de madeira tropical. O Instituto do
Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon),
em pesquisa divulgada em maio deste ano, realizou uma espécie de
sociologia da indústria madeireira na Amazônia, trazendo
dados importantes sobre o setor. No ano de 2004, essa indústria
consumiu 24,5 milhões de metros cúbicos de madeira em
toras, o que equivaleria a cerca de 6,2 milhões de
árvores. Com esses números, o Brasil só perde em
produção de madeiras em toras para a Indonésia,
que consome anualmente 30 milhões de metros cúbicos de
madeira.
Toda essa
matéria-prima gerou 10,4 milhões de metros cúbicos
de madeira processada em formato de tábuas, laminados e
compensados, nos 82 pólos madeireiros existentes na
região. O estado do Pará responde por 45% desse total de
madeira produzida, concentrando 51% das indústrias madeireiras.
As serrarias, laminadoras e fábricas de compensados paraenses
geram 48% dos empregos desse setor na Amazônia. Cerca de 5% da
população economicamente ativa da chamada Amazônia
Legal (território que inclui todos os estados da região
Norte, além do Mato Grosso e parte do estado do Maranhão)
trabalha direta ou indiretamente com a atividade madeireira. O estado
do Mato Grosso, por sua vez, concentra 33% da produção,
Rondônia contribui com 15% e o restante se distribui entre os
demais estados (o estado do Amazonas detém somente 2% da
produção regional).
Da madeira saída
dessas indústrias, 64% foi consumida no mercado doméstico
e 36% no mercado externo. As exportações tiveram um
aumento significativo: de 381 milhões de dólares (em
1998) para 943 milhões de dólares (em 2004). É
preciso lembrar que somente a madeira processada, ou seja, que tenha
passado por algum processo de beneficiamento industrial, é que
pode ser exportada: a exportação de toras de madeiras
é ilegal no Brasil desde 1980.
Mas de onde vem essa
madeira consumida pelas indústrias da Amazônia? A
extração de madeira na floresta pode ser descrita, em
linhas gerais, da seguinte forma: num período que geralmente
compreende 5 a 10 anos de exploração de uma dada
região, os madeireiros retiram, primeiro, as espécies
maiores e mais valiosas como o mogno, o ipê e o cedro. Retornam,
depois de alguns anos, para a extração de exemplares
menores e de outras espécies como o jatobá e a
maçaranduba. O transporte é feito através da
abertura de estradas, grandes toras de madeira correndo pelos rios
é uma imagem cada vez mais rara na região. Tratores
são usados para arrastar as toras do interior da floresta para a
margem das estradas. Embarcadas em caminhões, as toras de
madeira seguem para serrarias, fábricas de lâminas e
compensados.
Esse processo de
extração da madeira está sujeito ao Código
Florestal de 1965 que estabeleceu, no seu artigo 15, que “fica proibida
a exploração sob forma empírica das florestas
primitivas da bacia amazônica, que só poderão ser
utilizadas em observância a planos técnicos de
condução e manejo a serem estabelecidos por ato do Poder
Público, a ser baixado dentro do prazo de um ano”. Mas as
primeiras regras sobre manejo florestal na Amazônia foram
editadas em 1986 e o decreto que estabeleceu suas diretrizes só
foi baixado em 1995. O desmatamento é autorizado apenas em 20%
da área de cada propriedade privada; os 80% restantes são
reservas legais sujeitas aos princípios do manejo florestal
sustentável.
Tendo em vista essa
legislação, a madeira utilizada pelas indústrias
na Amazônia possui três origens: o desmatamento legal (
20%) visando as atividades de pecuária e agricultura; as
áreas de manejo florestal sustentável; e o
desflorestamento ilegal e criminoso. Mas uma série de problemas
envolvendo o manejo florestal tem feito com que a madeira oriunda dele
concorra em condições desiguais com aquela
originária do desmatamento ilegal. O quadro, assim, se complica.
“Dois tipos de madeira
são oferecidos no mercado. Uma provém do manejo florestal
e a outra tem origem no desmatamento. O consumidor [a indústria]
tem, assim, à sua disposição, duas toras iguais.
Uma é proveniente do desmatamento e, por isso, mais barata. A
outra, por ser de uma área de manejo, apresenta um custo muito
maior. Qual madeira a indústria irá comprar?” questiona
Humberto Angelo, professor do Departamento de Engenharia Florestal da
Universidade de Brasília (UnB). Segundo Angelo, a
ampliação e manutenção dos planos de manejo
florestal sustentável dependem da competitividade da madeira.
“Se não forem criados mecanismos fiscais e creditícios
que tornem o manejo florestal uma atividade econômica mais
lucrativa, dificilmente a produção sustentável de
madeira irá se expandir na Amazônia”, afirma o engenheiro.
É preciso lembrar
que, por ser uma atividade de longo prazo (ciclos de reflorestamento
que levam de 20 a 30 anos), o tempo necessário para o manejo
florestal tende a se chocar com a demanda por matéria-prima das
indústrias. Além disso, muitos pesquisadores têm
alertado para o fato de que não existem estudos sobre a real
sustentabilidade do manejo florestal. “É preocupante o fato de
planos de manejo serem adotados pelo Ibama como política
ambiental desejável para a exploração madeireira
sustentável. Isso porque não há, ainda, pesquisas
desse tipo de uso em nenhuma floresta tropical no mundo, inclusive na
Amazônia, menos ainda para os diferentes ecossistemas florestais
da grande região”, afirma Irene Garrido Filha, pesquisadora e
secretária-geral da Campanha Nacional de Defesa pelo
Desenvolvimento da Amazônia (CNDDA).
Num artigo publicado na
revista Estudos Avançados,
a pesquisadora sugere que, para se conter o desmatamento
predatório e para que o manejo florestal seja eficiente, seria
necessário o estabelecimento de uma política de
ampliação dos estudos científicos básicos e
aplicados sobre o manejo florestal sustentável na
Amazônia, aliados a um plano de reordenamento territorial na
região. “Além disso, do ponto de vista econômico,
é fundamental que a Amazônia passe a produzir artefatos de
madeira para a exportação e para o mercado interno.
Assim, agrega-se mais valor ao produto na região. Tal
evolução econômica poderá representar,
igualmente, desenvolvimento social, com melhores
condições de vida para a população
regional”, acredita a secretária-geral da CNDDA.
Uma outra
solução apontada para incentivar o manejo florestal
é a reabertura das exportações de madeira em
toras. Como já foi dito, elas são proibidas no Brasil,
desde 1980, sendo permitida apenas a exportação de
madeira que tenha passado por algum processo de
industrialização.
Para Irene Garrido Filha,
aqueles que argumentam em favor da exportação de toras
levam em consideração apenas o aspecto econômico da
questão – que seria o aumento do preço das toras no
mercado interno – o que viria, segundo ela, a comprometer ainda mais a
conservação da floresta. “É evidente que a venda
de madeira em toras, não acrescentando valor ao produto,
é um retrocesso. Havíamos avançado ao exigir a
industrialização, mesmo primária, que deve ser
incentivada qualitativamente, para agregar valor ao produto. A
idéia da liberação da venda de madeira em toras
diminuiria também os postos de trabalho nas indústrias do
setor madeireiro. Não se atenderia, assim, ao aspecto social,
nem ao ambiental, porque se incentivaria a exploração da
floresta, sem cuidados”.
Já para Humberto
Angelo, o aumento do preço das toras de madeira no mercado
interno, que adviria da reabertura das exportações, seria
uma maneira de se incentivar o manejo florestal. “Com a reabertura das
exportações brasileiras de toras para o mercado
internacional, o preço da madeira no mercado interno tende a
aumentar. Conseqüentemente, a indústria compradora dessas
toras se preocupará em fazer um melhor aproveitamento delas.
Além disso, o produtor florestal responsável pelo manejo
será melhor remunerado, incentivando-se, dessa forma, a
ampliação dessa atividade sustentável na
Amazônia”, avalia o engenheiro florestal.
Corrupção
e manejo florestal
Um outro problema
envolvendo o manejo florestal e a extração de madeira na
Amazônia é a corrupção. Em 1996, apenas um
ano depois da regulamentação do manejo previsto no
Código Florestal, o Ibama, ao avaliar milhares de planos de
manejo florestal que haviam sido aprovados por ele próprio,
constatou uma série de irregularidades. Muitos madeireiros
estavam utilizando planos de manejo para legalizar a
extração ilegal de madeira.
As fraudes cometidas
pelos madeireiros e constatadas pelo Ibama (e que envolviam
funcionários do próprio órgão) eram
variadas: contratação temporária de engenheiros
florestais apenas para conseguir a aprovação do plano de
manejo florestal; abandono da execução do plano;
aprovação de planos de manejo em áreas já
desmatadas; aprovação de projetos que não haviam
sido executados.
Em 2001, o Greenpeace,
através de um estudo de
caso de autoria de Marcelo Marquesini e Gavin Edwards, já
havia denunciado um esquema de corrupção muito semelhante
ao desmantelado recentemente pela Operação Curupira.
Naquele caso, o esquema envolvia indústrias madeireiras da
cidade de Santarém, no Pará. As grandes madeireiras da
região se abasteciam de madeira proveniente de pequenas
serrarias. Mas algumas dessas serrarias eram “empresas fantasmas” e
funcionavam apenas para legalizar madeira extraída de forma
ilegal, através da obtenção de
Autorização para Transporte de Produto Florestal (ATPF)
junto ao Ibama. Uma empresa X adquiria uma ATPF da empresa Y para
legalizar madeira ilegal. A ATPF obtida pela empresa Y era conseguida,
junto ao Ibama, através da apresentação de um
falso plano de manejo. A empresa X usava os documentos adquiridos para
justificar a procedência da madeira, que seria a empresa Y. Mas
esta, por sua vez, não declarava ao Ibama o repasse de madeira
para a empresa X, madeira, aliás, que não existia. Por
fim, a empresa X, com a ATPF em mãos, vendia a madeira para as
grandes indústrias.
Segundo o Greenpeace, a
escassez de recursos e de funcionários e a impunidade têm
facilitado o envolvimento de quadros do Ibama em esquemas de
corrupção, punidos, muitas vezes, apenas com multas
administrativas. Mas a Lei de Crimes Ambientais, regulamentada em 1999,
prevê a detenção e a culpabilização
criminal para esses casos. “Entretanto, a punição depende
da capacidade de processar que é limitada devido ao pequeno
número de procuradores do Ibama. Além disso, a
punição depende da atuação de outros
orgãos como, por exemplo, as associações
profissionais. Estas associações são
responsáveis pela avaliação do desempenho dos
engenheiros florestais que assinam os projetos de manejo florestal.
Porém, é estranho que não haja grande
número desses profissionais penalizados diante de tantas fraudes
envolvendo planos de manejo florestal”, avalia a
organização não-governamental num relatório
técnico publicado em 2001.
Um outro instrumento
importante para o combate à corrupção e à
extração ilegal de madeira na Amazônia tem sido a
certificação emitida pelo Forest Stewardship Council
(FSC), uma entidade certificadora específica para o setor
florestal, criada no México, em 1993. No Brasil, em 1997, foi
criado um grupo de trabalho do FSC para elaborar padrões e
regras para o manejo florestal no país. Fazem parte desse grupo
empresário e organizações
não-governamentais que contam ainda com a
participação – na condição de observadores
– do Ministério do Meio Ambiente e da Escola Superior de
Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP).
O FSC acompanha a cadeia
de produção da madeira, desde a sua
extração na floresta até o produto acabado,
garantindo, portanto, ao consumidor (seja ele a indústria
madeireira ou o comprador final) a origem legal da madeira: que ela
provém de planos de manejo florestal sustentáveis e que o
processo de produção assegura os direitos dos
trabalhadores e comunidades nele envolvidas.
“Essa é uma boa
prática. Já existe uma cadeia de produtores e
consumidores de madeira adeptos da certificação. Mas
acredito que a certificação também deveria ser
exigida de outros produtos da região. Por que não exigir
da soja e de outras commodities agrícolas produzidas na
região amazônica a certificação que
atestaria que as atividades a elas relacionadas não
contribuíram para o desmatamento?” questiona Humberto Angelo ao
lembrar que a atividade madeireira não é, hoje, a
única e nem mesmo a maior responsável pelo problema do
desmatamento na Amazônia.
Segundo Leandro Valle
Ferreira, Eduardo Venticinque e Samuel Almeida, em artigo publicado em maio deste ano, além da
exploração madeireira, o desmatamento na Amazônia
estaria ligado à política de ocupação e de
desenvolvimento da região baseada na especulação
de terra ao longo das estradas, crescimento das cidades, aumento
dramático da pecuária bovina e da agricultura,
principalmente do cultivo da soja
e do algodão. Um documento do Grupo Permanente de Trabalho
Interministerial para a Redução dos Índices de
Desmatamento da Amazônia Legal, criado em 2003 e ligado à
Casa Civil da Presidência da República, avalia que a
pecuária é a atividade responsável por 80% de toda
a área desmatada na Amazônia legal.
(CC)