Projeto prevê
manejo privado
Deverá ser votado,
ainda este mês, o Projeto de Lei 4776/05, que dispõe sobre
a concessão e gestão de florestas públicas para
produção sustentável, institui o Serviço
Florestal Brasileiro (SFB), na estrutura do Ministério do Meio
Ambiente (MMA), e cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal
(FNDF). O PL está em regime de urgência no Senado e se
não for votado provocará o trancamento da pauta, ou seja,
vai impedir a votação de outros projetos. Mas há
ainda resistência por parte de alguns segmentos da sociedade
civil e de órgãos do próprio governo, por haver o
entendimento de que a Lei possa priorizar interesses mercantilistas,
com prejuízo ao meio ambiente e às
populações que vivem nas florestas.
A proposta é que o
FNDF seja abastecido com os recursos advindos das concessões, e
seja destinado a fomentar o desenvolvimento das atividades
sustentáveis de base florestal no Brasil e a promover a
inovação tecnológica do setor. Já o SFB
é um órgão gestor, que irá operar como uma
Agência Nacional de Florestas e estará vinculado ao
Ministério do Meio Ambiente. O SFB terá um diretor geral,
com mandato para quatro anos, escolhido pelo Presidente da
República a partir de uma lista tríplice apresentada pelo
Ministro de Estado do MMA.
Elaborado a partir do
final de 2003 por representantes do governo federal, governos
estaduais, ONGs, movimentos sociais, setor privado e
instituições de ensino e pesquisa, o projeto foi enviado
em fevereiro deste ano para a Cãmara dos Deputados, onde recebeu
305 emendas, das quais 140 foram incorporadas. No Senado, até o
fechamento desta edição, o PL já havia recebido
duas emendas, de autoria do senador João
Capiberibe (PSB-AP).
O Projeto regulamenta o
uso de todas as áreas de florestas públicas do Brasil, ou
seja, as florestas naturais ou plantadas, localizadas nos diversos
biomas brasileiros, incluindo o amazônico, a mata
atlântica, o cerrado e a caatinga. No entanto, as
atenções maiores estão voltadas para a
Amazônia. “Mais de 90% de toda a produção florestal
no Brasil, madeireira e não-madeireira, vem da Amazônia.
Hoje em dia, a região da mata atlântica tem uma
importância do ponto de vista da produção florestal
quase zero, pois é um bioma a ser protegido e os usos que se
pode ter nessas áreas públicas são principalmente
baseados em serviços como o turismo e os não
madeireiros”, explica Tasso Rezende Azevedo diretor do Programa
Nacional de Florestas do Ministério do Meio Ambiente.
Florestas
vão à leilão
O artigo 27 do Projeto
esclarece que as concessões serão dadas mediante a
combinação de dois critérios: o primeiro é
a oferta lançada pelo interessado na concessão florestal,
sendo que quem oferecer o maior preço ganha; e o segundo seria
uma fusão entre a proposta de um menor impacto ambiental, maior
benefício social e maior eficiência. Mas qual deles
prevaleceria no caso do surgimento de um impasse? O maior preço
pago, ou o melhor projeto socioambiental?
Em nota de esclarecimento
sobre o Projeto de Lei, o Ministério do Meio Ambiente afirma que
as florestas públicas no Brasil “são geridas por meio de
um mecanismo desfavorável ao bem público e ao meio
ambiente”, reconhecendo, assim, que a questão ambiental
brasileira apresenta problemas. Mas o mecanismo de concessões
que está sendo proposto pelo PL não é encarado
como a melhor opção para o professor de geografia da
Universidade Federal Fluminense (UFF), Carlos Walter Porto
Gonçalves. Para ele trata-se de uma reinvenção da
Lei de Lavoisier, ou seja, “na natureza nada se cria, nada se perde,
tudo se transforma em mercado”.
“Parece
que a natureza só tem salvação se for mercantilizada.
Mas talvez o problema seja exatamente esse. Os lugares do mundo que permanecem
com elevado grau de biodiversidade são exatamente aqueles que se mantiveram
à margem do mercado”. Para Gonçalves o governo quer passar
a idéia de que há que se fazer alguma coisa diante da intensa
devastação. “Uma simples portaria como a que determinou
que houvesse o georeferenciamento das propriedades gerou uma série
de conflitos na Amazônia com intensa pressão dos setores ligados
à devastação, o que mostra que ali residia o problema
da grilagem e bem poderia estar sendo resolvido já com o conjunto da
legislação existente”, e continua: “voltamos a repetir
a lógica bacharelística tradicional onde parece que a criação
de um novo órgão vai resolver o problema, ou seja, para acabar
com a burocracia criou-se mais um órgão burocrático e,
assim, evita-se de enfrentar politicamente o problema”.
Apesar do Ministério do Meio
Ambiente explicar que as concessões não garantem a posse da
terra, mas apenas o direito de manejar a floresta, sem qualquer direito de
posse ou domínio da área, o Projeto prevê que as concessões
durem até 40 anos nas mãos dos beneficiados.
“Qualquer área do
território que tiver floresta pública deve permanecer
floresta e deve permanecer pública”, ressalta Azevedo. Com essa
afirmação o secretário de florestas do MMA tenta
rebater as críticas que o PL vem recebendo de que sua
aprovação significaria a privatização das
florestas públicas. A maior área de florestas
públicas do território brasileiro está na
Amazônia, sendo que cerca de 75% do total do território
amazonense é área pública.
Marcelo Marquesini,
engenheiro florestal do Greenpeace conta que ao longo dos
últimos 30 anos as florestas públicas estão sendo
privatizadas por um processo de grilagem associada ao desmatamento.
Muitas dessas áreas são cedidas ao agronegócio de
grãos ou da pecuária, no entanto, esses processos
não têm sido combatidos como se deveria. O Plano de
Controle e Prevenção ao Desmatamento do MMA mostra que os
estados que mais participaram dos processos de desmatamento da
Amazônia são exatamente aqueles ligados ao
agronegócio da pecuária ou da monocultura da soja.
Distribuição
da participação dos estados no desmatamento anual da
Amazônia (km²)
|
2001/2002 |
2003/2003 |
2003/2004 |
Mato Grosso |
35,6% |
42,5% |
48,1% |
Pará |
36,1% |
28,0% |
25,7% |
Rondônia |
15,6% |
13,7% |
15,8% |
Amazonas |
3,8% |
7,0% |
4,0% |
Acre |
3,2% |
4,0% |
3,1% |
Fonte: MMA (alterado)
Evolução de
taxa de desmatamento na Amazônia (km²)
|
|
Clique na imagem para
ampliar |
Marquesini explica que a
grilagem de terras em florestas públicas, principalmente na
Amazônia, se deve em parte pela ineficiência de pessoas
trabalhando em órgão públicos.
“O Incra [Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária] que
é o órgão responsável pela questão
fundiária, junto com os institutos de terra dos estados,
não tem pessoal suficiente e tem problemas de
corrupção já comprovados. Funcionários do
Incra são flagrados em situação de
falsificação de documentos e já se fala que a
Amazônia está sendo privatizada”,
lembra. Marquesini, que trabalha em Manaus-AM, diz que atualmente
existem centenas de madeireiras atuando na Amazônia, inclusive
algumas compraram terras, consolidando a privatização.
“Há empresas madeireiras chinesas, malásias e americanas
esparramadas por toda a Amazônia, com ou sem terras”.
O Projeto de Lei chega
como uma possibilidade de acabar com as práticas comuns de
grilagem de terras, mas Marquesini destaca que para o projeto ser
eficaz o governo deve destinar mais recursos financeiros, humanos e
tecnológicos para as áreas de florestas. Ele afirma que o
governo tem um plano de ação de combate ao desmatamento,
mas os recursos destinados para tal plano estão contingenciados.
“O dinheiro acabou em julho e soubemos que estava sendo negociada a
liberação de uma parcela para continuar as atividades do
plano. Agora, um plano que é do próprio governo,
você tem que negociar um dinheiro que já deveria estar na
conta?”, questiona o engenheiro.
Fracasso
anunciado?
Existe hoje um quadro
deficitário de recursos de todos os tipos para se trabalhar as
questões do meio ambiente no Brasil. O número de pessoas
trabalhando nos órgãos públicos, com o poder de
fiscalização e monitoramento são sempre
considerados insuficientes até mesmo pelos próprios
diretores desses órgãos. A insuficiência de
recursos humanos, financeiros, tecnológicos e de
infra-estrutura, também são apontados como causas do
problema do desmatamento.
Marquesini, citando dados
da Diretoria de Recursos Florestais do Ibama, de maio de 2005, mostra
que existem apenas 43 engenheiros florestais para a Amazônia
inteira. Belém, Manaus e Macapá possuem sete, seis e
cinco engenheiros, respectivamente. Apesar da preocupação
do engenheiro florestal do Greenpeace com o número insuficiente
de profissionais responsáveis para autorizar e fazer a vistoria
dos planos de manejo na região amazônica, ele destaca o
mérito do PL. “É melhor ter floresta bem manejada que
aplique as técnicas de redução de impactos e que
cuide da floresta após a colheita, do que o desmatamento, ou que
as áreas virem pastos e florestas degradadas”, e continua: “pelo
menos se resguarda uma parcela da biodiversidade”.
Azevedo, do MMA ressalta
que apenas uma Lei não consegue barrar as atividades
ilícitas que desmatam e devastam as florestas, mas cria uma
série de instrumentos para se fazer o monitoramento e a
fiscalização. Com a aprovação da Lei
será implementada uma ação, por meio de uma
força tarefa que envolve Ibama, exército, polícia
federal, governos estaduais e receita federal. Há também
um processo de ordenamento fundiário nas áreas mais
críticas para definir as Unidades de
Conservação (UCs) e quais serão as
áreas para manejo, além do combate à
corrupção. “Essas ações são capazes
de frear a atividade ilegal, mas só se consegue manter por longo
prazo a floresta em pé se as atividades econômicas ilegais
forem substituídas por outras, que sejam legais e
sustentáveis. Quando se fala que as florestas públicas
permanecerão florestas e públicas, esse sinal está
sendo dado, ou seja, as atividades a serem colocadas ali devem ser
sustentáveis”, afirma.
Mas Marquesini critica a
estrutura atual do Ministério e seu modo de operar que seria, em
sua opinião, obstáculo para um bom funcionamento de um
programa como esse. “Precisa ser reforçado, reestruturado [o
MMA], mesmo alegando que o dinheiro das concessões vai para o
próprio sistema, não sabemos quanto vai entrar de
dinheiro, qual será o custo de tudo isso. Isso não
está bem claro nem para o Ministério, nem para o Ibama e
nem para a sociedade”.
Uma visão
sobre a Amazônia
Quando se formula um
conjunto de ações para se pensar a
preservação, o desenvolvimento sustentável e o
manejo florestal sustentável não deveriam ser os povos da
floresta os primeiros a serem ouvidos? Afinal, não há
defesa da floresta sem os povos que ali vivem. No caso da
Amazônia, falta uma visão que respeite a presença
dos amazônidas. “As pessoas têm sempre uma visão
sobre a Amazônia e não uma visão da Amazônia,
dos amazônidas sobre sua própria região. Há
ecologistas que querem preservar a floresta, se possível
expulsando o povo de lá”, critica Gonçalves, professor da
UFF.
Na opinião do
diretor do Programa Nacional de Florestas, as questões pensadas
formam um conjunto com a finalidade de provocar uma queda nos
níveis de desmatamento. “O mais importante em tudo isso é
que as florestas públicas vão gerar recursos para o
município, para os estados e para a União. A
pecuária não gera, a soja não gera, pois nenhuma
gera imposto local. Então, para os municípios, as
florestas vão gerar royalties tornando o município
interessado em manter a floresta”, esclarece Rezende.
Mas Gonçalves
destaca que diante da devastação socio-ambiental em que
vivemos parece urgente que se faça alguma coisa e o principal
argumento é o caminho da privatização, de entregar
o patrimônio da biodiversidade ao mercado. “Realmente algo deve
ser pensado, talvez uma reforma do Estado, uma reforma política
para desprivatizarmos o Estado e não privatizar o que é
público”.
O professor de geografia
acrescenta que “se a biodiversidade é um recurso
estratégico, na verdade, tem que ter uma política de
caráter permanente, portanto, uma questão de Estado.
Deveria se incluir a idéia de Reserva Estratégica no
Projeto, uma idéia típica nos debates sobre a
Amazônia”. Afinal o que são as florestas públicas?
O que é o cerrado, a caatinga, a Amazônia? Não
é só a biodiversidade, mas o conhecimento que existe
sobre essa biodiversidade. É o conhecimento que está nos
povos da floresta.
(AG)