O que seria da
nossa alimentação sem as frutas?
Gil
Felippe
Hoje quem
vive sem frutas? Quem é capaz de passar um dia sem comer uma fruta,
várias frutas ou uma salada de frutas? Frutas fazem parte de nossos
hábitos alimentares diários. A família, a escola, os
jornais, as revistas, a televisão, o rádio estão sempre
a insistir que as frutas são alimentos essenciais.
Mas, nem
sempre foi assim. No mundo ocidental, isto é, na Europa, as frutas
passaram a ser apreciadas como alimento nutritivo só lá pela
Idade Média. Só no século XIV foi que terminou o desprezo
que os europeus tinham pelas frutas. A primeira fruta a quebrar a má
reputação delas foi a laranja. Uma planta asiática! Um
bom exemplo do uso da laranja é um pudim da Idade Média, que
hoje nós chamaríamos de bolinho frito, que é apresentado
no livro Entre o jardim e a horta – as flores que vão para
a mesa, Gil Felippe, 2003, Editora Senac – São Paulo. Eis
a receita desse pudim medieval.
PUDIM DE
ATANÁSIA
laranja
açúcar, a gosto
inflorescências de atanásia, a gosto
7 ovos, menos 2 claras
575ml de creme de leite
tomilho, a gosto
manjerona, a gosto
salsinha, a gosto
folhas de morango, a gosto
noz-moscada ralada, a gosto
1 prato raso de pão branco ralado
Picar finamente as flores de atanásia (uma planta da família
das compostas, a mesma do girassol), tomilho, manjerona, salsinha e folhas
de morango. Misturar muito bem com todos os outros ingredientes, com exceção
da laranja e do açúcar. Fritar em porções, sem
deixar dourar demais.
Espremer as laranjas para tirar o suco. Misturar o suco da laranja com o açúcar
e umedecer o pudim já frito.
A laranja
já era mencionada na literatura chinesa 2400 anos antes da era cristã.
Teofrastes em 310a.C. já dera uma boa descrição dessa
fruta. A laranjeira vinda do Oriente, chegou à Europa pelo Mediterrâneo,
trazida pelos árabes, e atingiu Portugal antes deste ser mesmo um país.
As laranjeiras cultivadas pelos reis da França, desde Francisco I até
Luís XV, eram originadas de uma laranjeira importada de Pamplona na
Espanha. Eram todas produtoras de laranja-azeda. As laranjas doces eram levadas
para a Europa, da Índia e da China, pelos portugueses. Já a
primeira laranjeira (de laranja-doce), vinda da China, só chegou a
Portugal em 1630 e lá floresceu. Passou a ser cultivada e passou a
ter muito mais sucesso que a laranja-azeda que era a única na Europa.
Para o Brasil sementes e mudas foram trazidas de Portugal. A partir de então
outras frutas passaram a fazer parte da dieta da população européia.
Assim a pêra era uma das frutas favoritas do rei francês Luís
XIV. O doce feito do marmelo, a marmelada, era o doce mais popular na Europa
nos séculos XVI e XVII e muito popular na Inglaterra, na época
da rainha Vitória. O marmelo era tão popular e uma fruta tão
importante na Europa que na época colonial o marmeleiro era muito cultivado
no estado de São Paulo. Era de São Paulo exportado para a Europa
pelos portugueses. Na verdade, o marmelo foi o primeiro produto de exportação
de São Paulo, antecedendo de muito o café. O pêssego só
foi introduzido na América do Norte no século XVI, antes da
chegada dos ingleses e no Brasil, por Martim Afonso de Sousa, em São
Vicente, em 1532 proveniente da ilha da Madeira. Já o abacaxi, considerada
a mais saborosa fruta da América, só passou a ser conhecida
e apreciada pelos europeus lá pelo século XVI. Os portugueses
levaram o abacaxi do Brasil para a África em 1505, para a Índia
em 1518 e para as Filipinas em 1558. Enfim, frutas passaram, logo após
a Idade Média, a ser parte da alimentação européia.
E mais e mais frutas foram chegando à Europa passando a fazer parte
da alimentação.
Quando se
estuda a reprodução das plantas que produzem flores, as angiospermas,
tem-se o fruto, que engloba as sementes que são responsáveis
pela propagação da espécie considerada. Como exemplos
de frutos têm-se a goiaba e a vagem do feijão. Mas, precisamos
considerar também o pseudo-fruto simples e as infrutescências,
que são pseudo-frutos múltiplos. O pseudo-fruto simples é
o caju, o fruto do caju é a castanha-de-caju; aquela parte da qual
se faz suco é o pedúnculo intumescido da flor, portanto não
é um fruto, mas um falso fruto. E infrutescência é um
conjunto de frutos, que é o caso do abacaxi. Tudo isto pode ser visto
no livro Frutas –sabor à primeira dentada, Gil Felippe,
2005, Editora Senac-São Paulo. O que chamamos de frutas são
os frutos, pseudo-frutos e infrutescência que são carnosos, suculentos,
adocicados, ácidos e, sobretudo, comestíveis. Portanto, fruta
é um tipo especial de fruto, pseudo-fruto e infrutescência. Frutas
seriam, então, os frutos e pseudo-frutos que se comem como sobremesa
ou com que se fazem doces. Uma fruta deve ser rica em água e pode ser
muito rica em açúcares (carboidratos), mas obrigatoriamente
muito pobre em gordura. A relação entre açúcar
e gordura deve ser bem alta. Mas, como toda regra tem exceção,
aqui também há exceção.
A exceção
é o abacate. O abacate é a única fruta que é muito
rica em gordura e muito pobre em açúcar. Em um quilo de polpa
de abacate há apenas 58g de açúcares e dependendo da
variedade de abacate entre 120 e 250g de gordura. Isto significa que há
abacates que um quarto da polpa é gordura! No abacate a relação
entre açúcar e gordura é menor que 1. O conteúdo
de carboidratos é quase a metade daquele encontrado na laranja. Mas,
o abacate só é considerado fruta no Brasil e em poucos outros
países. Na maioria dos países é utilizado como uma hortaliça.
Como os brasileiros não estão interessados em definições,
ele é para nós uma das frutas mais apreciadas. Como já
disse, para o resto do mundo é uma hortaliça, usada em saladas,
muitas vezes com camarões, e em molhos como o guacamole. Para os europeus,
principalmente para os ingleses, é a mais deliciosa das hortaliças.
A tabela
a seguir mostra o conteúdo de carboidratos e gorduras de algumas frutas
bem conhecidas.
Comparação
do valor nutricional em 1kg
de polpa de cada fruta (valores aproximados).
|
Água |
Proteína |
Carboidrato |
Gordura |
% |
G |
Abacate |
80 |
12 |
58 |
100/250 |
Abacaxi |
95 |
5 |
140 |
2 |
Abóbora |
95 |
10 |
60 |
1 |
Banana |
75 |
15 |
220 |
3 |
Caqui |
80 |
7 |
200 |
4 |
Carambola |
91 |
4 |
100 |
1 |
Figo |
>80 |
10 |
180 |
1 |
Goiaba |
85 |
10 |
100 |
5 |
Jabuticaba |
90 |
1 |
130 |
0,1 |
Laranja |
90 |
10 |
100 |
2 |
Maçã
|
85 |
5 |
150 |
4 |
Mamão |
90 |
5 |
85 |
1 |
Manga |
80 |
5 |
190 |
3 |
Melancia |
95 |
5 |
55 |
1 |
Morango |
90 |
12 |
225 |
1 |
Pêssego |
89 |
6 |
100 |
1 |
Pitanga |
90 |
10 |
130 |
5 |
Em geral
as frutas não são conhecidas por seu conteúdo alto de
proteínas. Hortaliças como os brócolis e a alcachofra,
que botanicamente são inflorescências, apresentam 30g de proteína
por quilo, enquanto o feijão, que é uma semente, cerca de 230g.
Das frutas o que interessa é o conteúdo em açúcar
e em certas vitaminas.
Porém,
não é só energia que as frutas nos dão. Elas são
uma boa fonte de vitaminas e sais minerais. Vamos a alguns exemplos para ilustrar.
A manga é rica em vitamina A, enquanto o abacate além da vitamina
A, é rico nas vitaminas B e E e em potássio. Vitamina C é
encontrada no caju, no abacaxi (que também é rico em vitamina
B), na laranja, no morango, na nêspera-japonesa, no kiwi, no mamão,
na acerola, na goiaba, na jabuticaba, na pitanga, enfim numa infinidade de
frutas. O morango é rico em vitamina B9, silício, potássio
e magnésio. Já o maracujá é rico nas vitaminas
do complexo B e em muitos sais minerais, entre eles o ferro e o fósforo.
Na tabela
aparece a abóbora como fruta. Pois é, a abóbora jovem,
a abobrinha é uma hortaliça, mas quando amadurece ela é
uma fruta, que dependendo da receita pode ser usada como hortaliça.
Quando se faz quibebe ou sopa, ela é uma hortaliça. Quando se
faz doce de abóbora com coco ela é uma fruta. Mas, é
como fruta que faz sucesso no Brasil, empregada como compotas, tortas, doces
em calda e doces em pedaço. Em Portugal a abóbora madura pequena,
da qual são feitas tortas doces muito gostosas, é chamada gila
ou chila. A abóbora é conhecida desde a cultura pré-colombiana,
sendo associada à civilização nas Américas, constituindo
com o milho e o feijão, a base alimentar das culturas inca, asteca
e maia.. No México foi mostrada a existência de abóboras
entre 5000 e 7000anos a.C..
Há
duas frutas que já foram muito populares no Brasil e hoje estão
praticamente esquecidas. Não seria a hora de uma reavaliação
e de tentar devolvê-las ao mercado consumidor? Uma delas é o
jambo e a outra é o cambuci.
O jambo,
que era tão comum nos quintais do interior do estado de São
Paulo é uma fruta rara hoje em dia. A rose-apple dos ingleses
é amarelada, com leve gosto adocicado e com aroma de rosas. É
oca, a semente parece solta dentro dela. A fruta é muito utilizada
ao natural, mas também é usada para geléias e compotas.
É muito apreciada pelas crianças.
Não
é uma fruta brasileira. Botanicamente é conhecida como Syzygium
jambos e é originária do sudeste da Ásia. Foi trazida
para cá pelos portugueses. A árvore do jambo vive mais de cem
anos e na época da floração há o delicioso perfume
adocicado das flores. O jambo de que estamos falando não deve ser confundido
com o jambo-vermelho, tão comum no nordeste, que é o Syzygium
malaccensis, outra fruta exótica, proveniente da Ásia.
Esses dois jambos são da mesma família botânica que engloba
a goiaba, a pitanga, a jabuticaba, a uvaia e o cambuci.
Já
o cambuci é uma fruta bem brasileira, na verdade uma fruta paulista.
Botanicamente
o cambuci é chamado de Campomanesia phaea. A árvore
atinge oito metros de altura, originária da Mata Atlântica na
vertente da Serra do Mar que dá para o planalto da cidade de São
Paulo e do próprio planalto. O cambuci, isto é, a fruta tem
uma forma muito peculiar. É ovóide-romboidal, com uma crista
horizontal, mais ou menos na região do seu equador, dividindo-a em
duas partes: lembra a forma de um disco voador ou uma urna ou pote de água
dos índios. É por esta razão que se acredita que o nome
cambuci vem da palavra tupi-guarani para pote de água. A frutificação
ocorre de fevereiro a abril e o fruto, com seis centímetros de diâmetro,
tem casca fina verde-amarelada e polpa aquosa. Quando maduro é muito
mole, partindo-se quando cai ao solo.
O cambuci
é uma espécie em perigo de extinção, que era muito
freqüente na cidade de São Paulo, no Largo do Cambuci. Devido
a sua presença bastante comum e em sua homenagem é que foi dado
o nome de Cambuci ao conhecido bairro da cidade de São Paulo. Parece
que não há nenhum pé de cambuci naquele bairro hoje em
dia. Mas, como cambuci também significa pote, pode ser que o nome do
bairro tenha essa origem. Pouca gente conhece hoje o cambuci. Há várias
árvores de cambuci no Jardim Botânico de São Paulo. A
instituição prepara mudas dessa espécie para venda para
quem tiver interesse.
As frutas de cambuci têm um perfume intenso, adocicado, mas de sabor
ácido como o limão. Elas são muito apreciadas pelas pessoas
que as conseguem. Do cambuci são feitos geléias, sorvetes, sucos,
licores, maceração em bebidas alcoólicas como pinga.
É apreciada também ao natural, mesmo sendo ácida. Nos
tempos coloniais era feita uma infusão alcoólica em pinga das
frutas do cambuci ou de uma mistura de cambuci e uvaia, a infusão ficando
com aroma e paladar muito interessantes. Os pássaros são grandes
apreciadores do cambuci e são responsáveis pela disseminação
da espécie. As frutas não são encontradas no comércio.
Fica aqui a pergunta – porque não trazer essa fruta de volta
para o consumo popular? Além de termos mais uma boa fruta brasileira
no comércio, a espécie não mais estaria em perigo de
extinção.
Gil Felippe
é professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas. Autor
de Frutas - sabor à primeira dentada, 2005, Editora Senac – São
Paulo.