Matar a fome e cuidar
do coração
No início
do ano, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou
dados segundo os quais a população adulta (95 milhões
de pessoas) do Brasil, país de Fome Zero, é formada mais por
pessoas acima do que abaixo do peso. São 10,5 milhões de obesos
e 38,8 milhões com excesso de peso contra 3,8 milhões com déficit.
Somam-se a esses dados os números da Sociedade Brasileira de Cardiologia
(SBC), segundo a qual 21,6 % dos brasileiros possui colesteral alto. Nos EUA,
país campeão do colesterol, essa taxa é de 25%.
A partir
dessas informações colocou-se a pergunta: será que o
Brasil precisa mais da ajuda dos Vigilantes do Peso do que de um Fome Zero?
Um olhar mais atento dos especialistas mostra que esse não é
um ângulo correto para se ver o problema. Longe de significar que o
problema da fome está resolvido, os números mostram que quando
a população brasileira tem dinheiro para se alimentar o faz
de forma incorreta, privilegiando os alimentos mais calóricos, que
por sua vez são os mais baratos. Assim, a falta de dinheiro para comprar
alimentos causa dois problemas opostos que são faces de uma mesma moeda:
as doenças causadas pela falta pura e simples de comida e os malefícios
causados por uma alimentação inadequada.
Enquanto
o primeiro problema tem sido combatido com programas como o Fome Zero, o último
só tem se agravado. De acordo com a SBC as doenças do
coração e sistema circulatório já são responsáveis
por 35% de todas as mortes no país. Estimativas da Organização
Mundial da Saúde (OMS) apontam para um crescimento de 28% das mortes
por problemas cardiovasculares até 2020.
Esses números
colocam o Brasil entre os países com índices de colesterol mais
elevados do mundo. Uma radiografia inédita mostra que um em cada cinco
brasileiros tem taxa de colesterol considerada perigosa pelas entidades internacionais
de saúde. Esses resultados fazem parte do maior levantamento da história
brasileira sobre a incidência do colesterol. Hoje, aproximadamente 38,9
milhões de pessoas têm colesterol alto no país.
A pesquisa percorreu todos os estados brasileiros, mobilizou mais de 800 profissionais
da saúde e mediu o colesterol de 1.239 pessoas.
Para Raimundo
Marques do Nascimento Neto, diretor-executivo da SBC/Funcor, esses números
apontam para uma epidemia. Para tentar conter esse avanço ele explica
que há uma interlocução entre o Ministério do
Desenvolvimento Social (MDS) e a SBC no sentido de adequar os programas de
distribuição de alimentos e renda do governo com essa nova realidade
que o brasileiro está vivendo. Para ele, o programa de distribuição
de renda é excelente, mas a atuação do governo na prevenção
dos índices de colesterol é urgente e necessária.
“Temos
que matar a fome, mas não podemos matar a pessoa do coração”,
destaca. “Nós temos uma população pobre que está
faminta e temos uma população que está sendo mal alimentada,
isso é muito grave”. Para ele, não saber se alimentar
é como ler e escrever sem compreender. “Não podemos admitir
que a pessoa passe a se alimentar de uma forma inadequada”. Ele explica
que a SBC está desenvolvendo uma parceria preventiva com o MDS com
o objetivo de educar e informar sobre a composição nutricional
dos alimentos. O nome da campanha é “Fome Zero, Coração
Dez”. “A idéia é atingir a população
mais pobre, que são aqueles que apresentam os maiores níveis
de colesterol”, explica.
O alto colesterol
da população pobre está diretamente relacionado com os
preços dos alimentos, ou seja, os mais baratos são os com maior
colesterol. “O que acontece é que a população mais
pobre é levada a comer mais carne gorda e miúdos, que contém
níveis mais altos de colesterol. É um problema desde a infância,
mas o impacto do colesterol é em longo prazo”. A Pesquisa de
Orçamento Familiar (POF – 2002/03) traz uma importante informação
para entendermos o que Nascimento Neto afirma. A tabela abaixo mostra a compra
de alimentos por domicílio per capita anual conforme a renda das famílias.
Nela, podemos notar que o consumo dos alimentos que oferecem menos riscos
à saúde da população aumenta de acordo com a renda.
Produtos |
Aquisição
alimentar domiciliar per capita anual (KG) |
Classes de rendimento
monetário e não-monetário mensal familiar (R$) |
Até 400 |
Mais de 400 a 600 |
Mais de 3000 |
Hortaliças |
15,696 |
22,397 |
42,269 |
Hortaliças
folhosas e florais (acelga, agrião, alface...) |
1,034 |
1,475 |
4,720 |
Hortaliças
frutosas |
7,909 |
11,621 |
19,790 |
Frutas
de clima tropical (abacaxi, acerola, goiaba...) |
10,362 |
12,714 |
38,677 |
Frutas
de clima temperado (ameixa, morango, pêssego, etc...) |
0,701 |
1,345 |
7,179 |
Carnes
|
16,859 |
20,171 |
31,026 |
Carnes
bovinas de primeira |
2,285 |
3,459 |
10,669 |
Carnes
bovinas de segunda |
5,969 |
6,976 |
5,580 |
Toucinho
fresco |
0,347 |
0,249 |
0,138 |
Toucinho
defumado |
0,009 |
0,049 |
0,272 |
Leite
de vaca fresco |
15,225 |
17,639 |
8,952 |
Leite
de vaca pasteurizado |
8,579 |
13,581 |
50,153 |
Fonte: IBGE (adaptada pelo
autor) |
Alimento
mata a fome, não o problema
O
programa Fome Zero, principal bandeira de eleição do governo
Lula, é uma política pública que visa a erradicação
da fome e da exclusão social. Muitas críticas foram dirigidas
ao programa devido ao seu caráter assistencialista: os alimentos seriam
oferecidos em lugar de se proporcionar condições (emprego, renda)
para que a própria população fosse às compras.
Mas para Walter Belik, professor do Instituto de Economia da Unicamp, uma
política pública precisa também resolver alguns
problemas imediatos. “Hoje, o nível de mortalidade infantil no
Brasil está em torno de 28 por mil habitantes nascidos vivos. É
altíssimo. No município com o pior IDH [Índice de Desenvolvimento
Humano], Manari, morrem 90 crianças em cada mil nascidas vivas. É
preciso haver uma política assistencial direta”. O pesquisador
defende uma política de distribuição de renda “pesada”
no país. “Se por um lado o governo Lula avançou nas políticas
pontuais de segurança alimentar por outro lado a política econômica
só concentrou a renda. Com uma mão você dá e com
a outra você tira”, avalia.
De
acordo com os números oficiais, o Fome Zero avança não
apenas num sentido de apoio assistencial, mas num conjunto de ações
estruturantes que, além de ampliar o acesso aos alimentos, articula
ações de fortalecimento da agricultura familiar e de geração
de emprego e renda. O Grupo de Trabalho Fome Zero, reunido em junho, avaliou
o programa como uma estratégia real de erradicação da
fome por meio da inclusão social. Para o grupo, o Programa de Aquisição
de Alimentos (PAA) é a melhor tradução dos objetivos
do Fome Zero, atuando desde a compra até a distribuição
dos alimentos. O Governo Federal compra os produtos da agricultura familiar
e destina às populações vulneráveis (quilombolas,
indígenas, acampados de reforma agrária, atingidos por barragens).
Em 2004, o governo investiu R$ 91,2 milhões e beneficiou 45,5 mil famílias
de agricultores familiares. Em 2005, a meta é atender 100 mil. Outra
ação é a compra de produção de leite dos
agricultores familiares e a distribuição para pessoas de baixa
renda. Até março de 2005, cerca de 17 mil famílias venderam
sua produção ao Fome Zero, que atendeu cerca de 717 mil famílias.
Em 2005, o volume de recursos destinado ao programa será de R$ 12 bilhões,
33% maior que em 2004, quando foi de R$ 9 bilhões.
Fome Zero –
2003 a junho de 2005 |
Programas
|
Investimentos |
Atendimento |
Produção
|
Municípios |
Bolsa Família |
R$ 13 bilhões |
7 milhões de famílias |
70% dos recursos são
gastos com alimentação |
5542 |
Programa de Aquisição
de Alimentos |
R$ 494 milhões |
150 mil agricultores |
222 mil toneladas de produtos
diversos ao ano; 638 mil litros de leite por dia |
Todos os estados |
Restaurantes populares |
R$ 20 milhões |
2 mil por dia (cada um) |
Dois em funcionamento 32
em construção, 78 em fase de pré seleção |
95 municipios e 5 estados |
Cisternas |
R$ 100 milhões |
295 mil pessoas |
71,2 mil unidades |
872 |
Cestas Básicas |
R$ 42 milhões |
300 mil famílias |
650 mil cestas |
Comunidades indígenas,
quilombolas e atingidos por barragens |
Banco de Alimentos |
R$ 5 milhões |
2.500 pessoas por unidade |
25 unidades |
25 |
O
sociólogo Herbert de Souza, Betinho, que ficou conhecido por sua trajetória
política de combate à fome, dizia: “quem tem fome tem
pressa”. Se estivesse vivo, no dia 03 de novembro completaria 70 anos.
Betinho escreveu no artigo “A
alma da fome é política” que para acabar com a fome
não basta dar comida; e para acabar com a miséria não
basta dar empregos; é necessário reconstruir radicalmente toda
a sociedade.
Entre
os dias 16 a 22 de outubro, o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional
(Consea) realizará a Semana Mundial da Alimentação, no
qual o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
(Ibase) comemorará o aniversário de Betinho, que foi um dos
fundadores do Instituto. Para Vivian Braga, uma das organizadoras do evento,
essas comemorações visam contribuir para um processo de sensibilização
e mobilização contra a fome e em favor da segurança alimentar
e nutricional. Braga lembra que, em meados dos anos 1990, houve um trabalho
no sentido da conscientização e “desnaturalização”
desse problema social, desencadeado pela Campanha da Ação da
Cidadania, que culminou na doação de alimentos e da formação
de centenas de comitês de doações. Passados 10 anos, os
desafios hoje seriam ainda maiores. “Tanto as comemorações
do aniversário do Betinho e do Dia Mundial da Alimentação
procuram trazer como tema fundamental a luta pelos direitos sociais e entre
eles o direito humano à alimentação como central. Como
estratégia de luta pela garantia desses direitos está a participação
social, principalmente aquela que se dedica à discussão e proposição
de políticas públicas para a área.
Alimentos
não faltam
O
problema da distribuição de renda há muito envergonha
a sociedade brasileira. Um número exageradamente grande de pessoas
– 49,8 milhões de brasileiros, ou 29,3% da população
– eram considerados indigentes em 1999. De acordo com o artigo¹
“Políticas de combate à fome no Brasil” esse número
é, em parte, generoso, pois são entendidos como indigentes “pessoas
ou famílias com renda abaixo do necessário para adquirir uma
cesta de alimentos com quantidades energéticas mínimas ou recomendadas.
A linha da pobreza é superior à de indigência, pois inclui,
além do valor dos alimentos, outras despesas não alimentares
como vestuário, moradia, transporte etc”.
A
Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD 2003) mostra números
assustadores para um país como o Brasil, com renda per capita
alta. Entre os anos de 2002 e 2003 ocorreu a maior redução no
rendimento médio mensal, com uma queda de 7,4%. De forma geral, a população
brasileira está ficando mais pobre. A PNAD mostra que, em 2003, os
10% com os maiores salários ficaram com 45,3% do total dos rendimentos
no país, enquanto que os 10% com menores salários ficaram com
apenas 1%. No país, quase um terço da população,
algo em torno de 60 milhões de brasileiros, sobreviveria com dois salários
mínimos.
Para
Walter Belik, da Unicamp, uma sociedade que assiste passivamente sua população
morrer de fome não pode ser chamada de democrática. Vivian Braga,
do Ibase, concorda e destaca que uma sociedade com fome é uma sociedade
de exclusão e desigualdades. “A fome acabará no dia em
que superarmos questões e dificuldades, sobretudo políticas,
na luta pelos direitos. Para isso é preciso haver um comprometimento
efetivo dos governos e da sociedade civil, não somente a organizada,
mas essa com a responsabilidade de exercer pressão permanentemente
sobre os governos”.
O
termo segurança alimentar seria insuficiente para explicar a fome pois,
segundo Belik, esse é um conceito que envolve quantidade, qualidade
e regularidade de ingestão de alimentos. O acesso aos alimentos é
a questão que deve ser enfrentada e aí entra a variável
renda. A proposta do professor é trabalhar com o conceito de “vulnerabilidade
à fome”, ou seja, aquelas pessoas que, por insuficiência
de renda, não conseguem comprar alimentos. A fome caracterizaria um
país ou uma região onde a produção de alimentos
é insuficiente. “Por exemplo, na África há uma
grande quantidade de pessoas passando fome por falta de alimentos. Não
tendo alimentos suficientes teria que aumentar a produção. No
Brasil, a questão não é produção. Inclusive
somos um grande exportador de alimentos da produção agrícola.
Não tem falta, não tem problema de disponibilidade, mas tem
problema de acesso”, explica Belik.
Dados
publicados pelo IBGE, em agosto, apontam para uma produção,
em 2005, de 113,507 milhões de toneladas de grãos. Um pouco
inferior, é verdade, à safra de 2004, que foi de 119,370 milhões
de toneladas. Mas nas cinco grandes macro-regiões do Brasil, a única
que demonstra um decréscimo na produção é a região
Sul, devido ao período de estiagem. As demais, como o Nordeste, apresentam
um aumento de 9,62% na produção de grãos e as regiões
Norte, Sudeste e Cento-Oeste apresentaram acréscimo de 14,77%, 3,39%
e 5,46% respectivamente, em sua produção de grãos. Ou
seja, com exceção da região Sul que foi alvo de um problema
atípico, a produção cresceu.
Josué
de Castro, foi um dos primeiros pesquisadores a “desnaturalizar”
o problema da fome no Brasil, ainda na década de 1930. Foi deputado
federal e presidente da Organização das Nações
Unidas para Agricultura e Alimentos (FAO, na sigla em inglês). Para
Castro, a natureza não é ingrata, mas generosa, a origem do
problema estaria nos grupos humanos que se apoderam dos recursos naturais
e fazem uma divisão injusta e ilegal. “A miséria e a fome”,
escreveu, “não são fenômenos naturais, são
uma criação humana, um produto da injustiça social, o
produto de uma estrutura sócio-econômica que jamais investiu
no bem estar da coletividade”.
Para
saber mais:
Veja mais sobre o aumento
da população x produção de alimentos
PNAD
POF
¹-BELIK,
Walter., GRAZIANO da Silva, J., e TAKAGI, Maya. “Políticas de
Combate à fome no Brasil”. In Josué de Castro e o Brasil.
Manuel Correia de Andrade [et. al] São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 2003.
(AG)