Ciência
é garantia de segurança?
Nos últimos
tempos tem avançado bastante a produção de novos alimentos
em laboratórios. Os transgênicos são exemplos típicos
que já chegaram às nossas mesas e que têm gerado polêmica
no mundo inteiro. As incertezas quanto aos impactos econômicos, sociais
e ambientais dessas novas tecnologias passam a exigir uma avaliação
cada vez mais criteriosa. Surgem, no âmbito das agências que regulamentam
a adoção dos novos produtos e processos produtivos, espaços
próprios para a análise e controle da difusão dos alimentos
derivados da biotecnologia. A ciência adquire uma relevância enorme
nos processos de regulamentação e é colocada como base
das previsões e avaliações realizadas. Os cientistas
tornam-se os principais mediadores da relação da sociedade com
o risco, com o poder de antecipar os perigos futuros e decidir sobre a aprovação
de novos alimentos.
Entretanto,
consumidores, ambientalistas, representantes de movimentos sociais, políticos
e, inclusive, pesquisadores, passam a questionar os pareceres científicos
e as liberações aprovadas pelas agências. A ciência
tem seus critérios de cientificidade contestados, suas relações
com a indústria criticadas e seu status colocado em cheque. Agências
reguladoras conhecidas em todo o mundo, como a Food and Drug Administration
(FDA), perdem credibilidade. A sociedade passa a exigir um maior controle
social da atividade científica, a participação de outros
setores nas decisões das agências e a construção
de leis que permitam o desenvolvimento da ciência, mas que garantam
respeito a dois princípios, também novos, que ganharam força:
a bioética e a biossegurança.
Apesar desse
cenário, a ciência ainda detém o poder de convencer a
sociedade a aceitar determinados riscos ambientais. Para alguns cientistas,
a politização desse conhecimento poderá democratizar
o processo pelo qual são tomadas as decisões de investimento,
de produção e de consumo de novas tecnologias. Como conseqüência,
o risco/segurança alimentar deixaria de ser um problema formulado apenas
por especialistas, em uma visão neutra e irreversível das tecnologias
a serem adotadas, mas levando-se também em consideração
a adoção de trajetórias tecnológicas e sociais
alternativas.
Neutralidade
confere status de decisão à ciência
A ciência
adquiriu o poder de determinar o que poderá ser aprovado e liberado
para consumo humano. Em todo o mundo, as agências responsáveis
pela aprovação de novos alimentos lançam mão de
pesquisas científicas e consultas a especialistas para respaldar suas
decisões. No jogo de forças, o conhecimento técnico-científico
ganha um papel preponderante.
Para Victor
Pelaez, do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná,
foi o caráter de neutralidade e objetividade do conhecimento científico
que conferiu à ciência o status de árbitro das disputas
que se estabelecem em torno das decisões de liberar ou não a
produção e comercialização dos novos alimentos.
“Ao
adquirir um status de saber neutro, ganha também a dimensão
de inquestionável. E nesta empreitada, não há saber que
não produza poder e vice-versa”, analisa Pelaez no artigo
“Biopoder & regulação da tecnologia: o caráter
normativo da análise de risco dos OGMs”. Nesse artigo, ele contrapõe-se
à idéia de neutralidade partindo “do pressuposto de que
a ciência, longe de exercer um papel de neutralidade nas decisões
tomadas, transforma-se em um importante instrumento de poder de decisão
e de persuasão coletivos”
Critérios
de cientificidade são contestados
Ao mesmo
tempo em que a regulação de novos alimentos se transformou em
uma área onde há grande influência e poder da ciência,
também se tornou uma arena de disputas e se expôs a duras críticas.
As principais agências reguladoras dos EUA, por exemplo, o United States
Department of Agriculture (USDA), a Environmental Protection Agency (EPA)
e, principalmente, a Food and Drug Administration (FDA), têm sido duramente
questionadas, principalmente no que concerne aos critérios e procedimentos
adotados para avaliação dos Alimentos Geneticamente Modificados
(GMs).
No artigo
“Safety testing and regulation of genetically engineered foods”,
William Freese e David Schubert fazem uma ampla análise da regulação
dos alimentos transgênicos nos EUA. Apontam em suas conclusões
a insuficiência das avaliações feitas pelas agências,
que são baseadas em estudos precários não publicados
e patrocinados pelas próprias empresas fabricantes dos produtos. “Os
estudos publicados, revisados pelos pares, particularmente na área
de impactos potenciais da saúde humana, são raros”, afirmam.
Na opinião deles, “é fundamental compreender como funcionam
as agências reguladoras norte-americanas porque elas são freqüentemente
citadas para sustentar a segurança destes alimentos”.
Os critérios
adotados para as avaliações dos alimentos GMs nos EUA também
têm sido contestados. O Princípio da Equivalência Substancial,
por exemplo, usado pelas agências dos EUA desde 1993 para aprovar e
liberar os novos alimentos, é considerado insuficiente para muitos
pesquisadores. Para Rubens Nodari, pesquisador da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) e assessor do Ministério do Meio Ambiente, trata-se
de um princípio sem base científica. “A equivalência
substancial é baseada na similaridade de composição química
(de proteínas, aminoácidos, óleos graxos) dos alimentos.
Por esse conceito a soja transgênica resistente ao herbicida glifosato
e a soja convencional são equivalentes. Assim como uma vaca sadia e
uma vaca louca, porque em termos de composição química
a carne da vaca louca e da sadia são iguais, a única diferença
entre elas é a conformação tridimensional de uma proteína”,
argumenta. E conclui: “nos Estados Unidos não se aprova, se desregulamenta”
. Nos países da Comunidade Européia, por pressão da sociedade
e da comunidade científica, esse conceito foi considerado insuficiente
e deu início a um longo processo de avaliação dos novos
alimentos em que o princípio da precaução tem sido a
principal diretriz.
No livro
Sementes da enganação: as mentiras da indústria e
do governo sobre a segurança dos alimentos transgênicos que você
está comendo (Seeds of deception-exposing industry and government lies
about the safety of the genetically engineered foods you're eating, em
inglês ), Jeffrey
M. Smith expõe a proximidade que existe entre as agências
reguladoras dos EUA e a indústria, mostrando o trânsito comum
que acontece entre profissionais dessas instituições e suas
implicações para a aprovação de políticas
de biossegurança.
Para Pelaez,
a aceitação do risco pela sociedade depende cada vez mais da
capacidade dos fornecedores de tecnologias em convencer os seus consumidores,
bem como de seu poder de representação junto às instituições
reguladoras. “A adoção do Princípio da Equivalência
Substancial pelos EUA deixa clara a prioridade econômica atribuída
a esse tipo de tecnologia. Tal prioridade está intimamente associada
a um modelo regulatório menos restritivo que busca construir um cenário
de risco ambiental aceitável e controlável”, analisa.
No
Brasil, críticas também são intensas
No cenário
brasileiro a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio), ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT),
também tem sido duramente criticada. Até 1996, a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), sediada no Ministério
da Saúde, era o principal órgão que atuava na regulamentação
de todos os tipos de alimentos novos que surgissem. Desde 1996, a CTNBio passou
a aprovar e liberar os alimentos GMs. Em março deste ano, quando a
Lei de Biossegurança (n.º 11.105) foi aprovada – revogando
a Lei n.º 8.974, de 05 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória
n.º 2.191, de 23 de agosto de 2001 – a CTNBio teve suas atividades
suspensas por vetos da nova Lei. Os vetos
focalizam principalmente os poderes de decisão concedidos à
Comissão.
Para o economista
David Hathaway, que atua em várias ONGs brasileiras como Ibase e Assessoria
e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (Aspta), um dos maiores
problemas da CTNBio está exatamente na sua fundação.
“O MCT se tornou o ministério responsável por avaliar
a segurança dos alimentos transgênicos no Brasil tendo mais poderes
do que os ministérios da Saúde e Agricultura. Esse ministério
foi criado para defender o desenvolvimento tecnológico e não
para se preocupar em promover a saúde e proteger o meio ambiente”,
e compara: “seria o mesmo que colocar nas mãos do Ministério
de Minas e Energia a decisão de implementar usinas hidrelétricas,
partindo do pressuposto de que os engenheiros são os que mais entendem
sobre a construção de usinas”.
A avaliação
dos impactos dos alimentos transgênicos para a saúde humana e
meio ambiente, na opinião de Hathaway, não pode ser colocada
apenas nas mãos de especialistas em biotecnologia, porque existe um
conflito de interesses em jogo. Freese e Schubert também acreditam
que “a ciência sozinha não poderá decidir as muitas
disputas que se levantaram nas diferentes nações com produção
de alimentos GM”. A abertura da participação da população
nas decisões sobre os novos alimentos que serão liberados para
consumo tem sido uma das reivindicações das organizações
não-governamentais brasileiras. (Leia carta
que está sendo enviada à ministra da Casa Civil).
A Comissão
também tem recebido críticas às suas práticas
de emissão de pareceres devido aos critérios adotados. Segundo
Nodari, que foi representante do Ministério do Meio Ambiente dentro
da CTNBio, a Comissão ainda usa o Princípio da Equivalência
Substancial em suas análises e não realiza estudos próprios,
apenas valida estudos feitos pelas empresas que solicitam a liberação
de novos alimentos. “A própria comunidade científica,
quando é conveniente, renuncia ao rigor da análise. Nós
precisamos mudar esse tipo de comportamento que coloca em risco a sociedade
brasileira e a própria tecnologia. Sem rigor podem ser aprovados produtos
que podem causar problemas à sociedade. Isso não é bom
nem para a sociedade, nem para a tecnologia”, ataca Nodari. A avaliação
dos OGMs é o único momento em que o Ministério do Meio
Ambiente se envolve com segurança alimentar. Isso acontece devido às
modalidades atuais de produção de alimentos, pois a segurança
destes ultrapassa o enfoque nos possíveis danos à saúde
da população e abarca também os riscos de impactos ambientais.
Leia mais:
Segurança
alimentar na Comunidade Européia
Segurança
alimentar: a abordagem dos alimentos transgênicos
Suzi Barletto Cavalli
Os
impactos ambientais: OGMs podem causar danos ao meio ambiente, mas
avaliação dos riscos é complexa.
Rubens O. Nodari e Miguel P. Guerra.
A
construção política da Agência de Vigilância
Sanitária, dissertação de
mestrado
Márcia Franke Piovesan
Risco, poder e
tecnologia: as virtualidades de uma subjetividade pós-humana
Leandro Chevitarese e Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro
(SD)