Ajuda à
África pode atrapalhar
De 84 países listados
pela Organização das Nações Unidas para Agricultura
e Alimentos (FAO, na sigla em inglês), como sendo os de mais baixa renda
e que apresentam déficit alimentar, 40 deles estão localizados
no continente africano. Países que já tiveram condições
melhores, mas que, devido a conflitos internos, períodos de secas seguidas
de enchentes e doenças como malária, doença do sono e,
mais recentemente, a aids têm suas economias afetadas e em alguns casos
enfrentam a fome extrema.
A
situação de insegurança alimentar na África
foi um dos temas de destaque na última reunião do grupo
dos sete países mais ricos do mundo mais a Rússia, o G-8,
realizada em julho em Gleneagle, na Escócia. A ajuda aos
países africanos já fazia parte da pauta da
reunião, mas foi fortemente apoiada em campanha liderada por Bob
Geldof, músico irlandês, que reuniu cerca de 1,5
milhão de pessoas, em shows de rock realizados em 10 cidades de
diferentes países. A campanha recebeu o nome de Live 8,
remetendo à campanha anterior Live Aid, realizada 20 anos antes,
também organizada por Geldof. Como o próprio fez
questão de afirmar em entrevistas e no site do evento, o Live 8
não é o Live Aid 2. Em 1985, a intenção foi
convocar a população a ajudar as vítimas da fome
que assolava a África. Os concertos realizados em Londres e na
Filadélfia arrecadaram mais de US$ 100 milhões. Mas visto
que a pobreza e as enfermidades no continente africano permanecem
até hoje, a proposta do Live 8 foi mais ampla. O chamado desta
vez foi pela justiça mundial e pelo perdão integral
às dívidas dos países pobres, para que eles possam
voltar a se desenvolver. Mais de 26 milhões de pessoas mandaram
mensagens de apoio à campanha de 2005, cujo lema era:
“faça a pobreza virar história”.
Em paralelo
à reunião do G-8 e aos concertos do Live 8,
representantes dos países africanos também estiveram
reunidos, em Sirte, no norte da Líbia. Ao final do encontro, a
União Africana (UA) solicitou mais ajuda ao desenvolvimento e,
ao mesmo tempo, a anulação da dívida por parte de
todos os credores. A UA solicitou o apoio dos países
industrializados para fortalecer os Estados africanos na
diversificação de sua produção e nas
exportações. Em contrapartida, os países africanos
se comprometeram a promover a transparência e a combater as
práticas de corrupção.
Ajuda que atrapalha
Mas o chefe de
estado líbio Muammar Khadafi, declarou à ocasião
que “implorar não vai fazer o futuro da África,
isso cria um abismo maior entre os grandes e os pequenos. A unidade
é o único caminho para enfrentar os problemas. Não
podemos ficar mendigando”.
O economista
queniano James Shikwati, em entrevista concedida em julho ao jornal
alemão Der Spiegel, também critica essa ajuda. Para ele,
apesar de bilhões de dólares já terem sido
despejados na África o continente continua pobre. Os recursos,
segundo ele, “financiam burocracias, e a corrupção
e a complacência são promovidas. Os africanos aprendem a
ser mendigos e não independentes. Além disso, a ajuda ao
desenvolvimento enfraquece os mercados locais em toda parte e mina o
espírito empreendedor de que tanto precisamos”, diz ele.
No entanto, como
explica o professor de economia da Unicamp, Antônio Márcio
Buainain que concorda em parte com Shikwati, muitos países
africanos passam por momentos de crise aguda, com suas economias
paralisadas e essa ajuda internacional reduz, no curto prazo, um grande
número de mortes.
Essas
críticas aos programas de ajuda à
erradicação da fome na África, com base na
doação de alimentos ou venda a preços baixos
não são recentes. Datam, segundo Buainain, dos anos 1980
e 1990. O Programa Mundial de Alimentos (PMA), criado em 1996 pela FAO,
por exemplo, foi duramente criticado, por distribuir alimentos sem
criar condições para o desenvolvimento local. No Brasil,
essas críticas ao programa levaram à suspensão da
distribuição de cestas de alimentos, sendo
substituída por ações que exigem uma contrapartida
do cidadão, mesmo que seja apenas a manutenção dos
filhos na escola (Programa Bolsa Família).
Outra modalidade
criada pelos governos e organismos internacionais foi a do food
for labour (alimentos por trabalho), na qual, como explica o
economista da Unicamp, cria-se algum tipo de trabalho para a
população para justificar a oferta de alimentos, tal como
as frentes de trabalhos criadas no nordeste brasileiro. Mas Buainan
destaca que esse tipo de arranjo só é viável
quando não se trata de situação extrema. Quando a
população está faminta, atravessando um conflito
armado, uma seca violenta ou uma enchente acabou de cobrir toda a
plantação, não há outra
solução que não a de doar alimentos.
Mas o economista
queniano não concorda com isso. Falando especificamente sobre o
Quênia, ele explica que quando há uma seca em alguma
região do país, os políticos (que ele acusa de
corruptos), solicitam ajuda ao PMA. Em pouco tempo, a ONU envia
milhares de toneladas de milho para a África que, nas
mãos desses políticos, são distribuídos
segundo seus interesses. A divisão do país em tribos, com
culturas, interesses e líderes próprios, dificulta a
distribuição eqüitativa do alimento. Para James
Shikwati, os quenianos sobreviveriam sem essa ajuda, não
morreriam de fome sem ela. “Nesse caso, os quenianos, para
variar, seriam obrigados a iniciar relações comerciais
com Uganda ou Tanzânia, e comprar alimento deles. Esse tipo de
comércio é vital para a África. Ele nos obrigaria
a melhorar nossa infra-estrutura, enquanto tornaria mais
permeáveis as fronteiras nacionais – traçadas pelos
europeus, aliás. Também nos obrigaria a estabelecer leis
favorecendo a economia de mercado”, diz ele
Buainain
acredita ainda que a FAO não pode intervir apenas em crises
agudas, mas deve sim promover programas de recuperação
desses países no longo prazo. Mas o economista reconhece que a
organização esbarra em um difícil dilema.
“Os investimentos nesse sentido são muito altos e a FAO
não possui esses recursos. Parte desses investimentos não
são viáveis como empréstimo, deveriam ser
ações da comunidade internacional para canalizar recursos
para criação de condições locais que
permitam a produção de alimentos”, afirma.
O outro problema
é interno. Muito dinheiro já foi disponibilizado para
esse fim em países da África mas, segundo Buainain, que
reforça as críticas de James Shikwati nesse sentido,
esses recursos foram apropriados por uma elite corrupta e se
transformaram em obras desnecessárias. Ou seja, para ele falta
uma política de desenvolvimento a ser apoiada e financiada pela
organização internacional, mas faltam também
elementos de controle interno, que garantam o investimento dos recursos
recebidos para ações que realmente ajudem esses
países a se desenvolverem internamente e que consigam por si
só superar os períodos difíceis. Nos países
em guerra civil, por exemplo, os recursos acabam sendo
desperdiçados com a compra de armas. “Faltam
políticas que conciliem essas duas questões”,
conclui o economista da Unicamp.
O historiador angolano
Carlos Pacheco, no blog Moçambique para todos, levanta uma outra questão
não resolvida na reunião do G-8, que são os subsídios
concedidos aos agricultores dos Estados Unidos e Europa. Para ele, a questão
do modelo de ajuda que os países ricos oferecem precisa ser discutida.
“Sem uma alteração da agenda que favorece as potências
do dinheiro, o futuro dos pequenos agricultores dos países pobres continuará
seriamente ameaçado”. Esses agricultores, segundo ele, representam
80% da população mundial e enquanto os Estados Unidos e a Europa
forçarem os Estados mais pobres a abrir seus mercados à importação
dos mesmos produtos que os camponeses na África, na Ásia e mesmo
no Brasil cultivam, o modo de vida e a segurança alimentar desses trabalhadores
estará comprometida.
A ajuda
da FAO
O Programa
Mundial de Alimentos é a principal iniciativa da FAO para o
combate à fome. Conta com o apoio do Departamento para o
Desenvolvimento Internacional (DFID), do Reino Unido, do Departamento
de Ajuda Humanitária (Echo), da União Européia, da
Comissão EuroEurope Aid Comission Office (Europe-Aid),
também da UE e da Agência de Ajuda dos Estados Unidos
(USAID). Além desses parceiros, o programa conta ainda com o
auxílio de mais de mil ONGs e várias empresas, bancos e
fundações. Os principais financiadores do programa
são os governos que, em 2004, doaram para o programa US$ 1,336
bilhão.
As estimativas
do programa apontam que um em cada três africanos está
subnutrido e que centenas de milhares de crianças morrem todos
os anos no continente de doenças fáceis de evitar, a
maioria delas ligada à subnutrição e à
fome. Na reunião do G-8, os países ricos se comprometeram
a aumentar progressivamente a ajuda financeira à África,
até que chegue a US$ 25 milhões extras no ano de 2010. O
aumento deverá levar a ajuda a US$ 50 milhões naquele
ano.
Na semana passada, a ONU,
através do PMA, convocou a comunidade internacional para a doação
de pelo menos US$ 88 milhões para socorrer quatro milhões de
pessoas afetadas por uma crise de alimentos provocada por um período
de seca, seguido de inundação e reforçado pela epidemia
da aids. A ajuda será convertida não só em alimentos,
mas também em sementes e fertilizantes para os agricultores da região.
Esse tipo de
ajuda foi oferecida ao Zimbábue em 2002 e recusada por serem
sementes de milho geneticamente modificadas. O governo temia que a
população plantasse os grãos ao invés de
comê-los, contaminando as plantações do país
e prejudicando a venda ao mercado europeu. E nova polêmica foi
instaurada em agosto quando 40 toneladas de alimentos e outras
provisões foram enviadas para ajudar a população
zimbabuense. Os alimentos ficaram em Johanesburgo à espera de
uma certificação do Departamento de Agricultura da
África do Sul, de que as sementes não são
geneticamente modificadas.
A FAO, entre
suas funções, deve conduzir as atividades internacionais
em busca da erradicação da fome e assegurar uma boa
nutrição para todos. Este é o conceito mais amplo
de segurança alimentar que prevê o acesso a alimentos em
quantidade e qualidade ideais. Sendo assim, um alimento que possa ter
sua segurança, no sentido de seguridade, questionável,
não deveria fazer parte da cesta de produtos a serem doados em
campanhas lideradas pela organização.
(SP)