Segurança
alimentar: um conceito em construção
O entendimento
de segurança alimentar, para o leigo, pode variar do total desconhecimento
até a intuição de alguns aspectos que o conceito geral
abrange. Mas são tantos os detalhes envolvidos nessa complexa e ampla
expressão que nem mesmo as políticas públicas conseguem
abarcá-los em sua totalidade. E seja para os governantes, seja para
os pesquisadores que fomentam as discussões na área, tanto no
Brasil, quanto a nível internacional, trata-se de um conceito que vem
sendo construído no decorrer do tempo e consolidado nos debates sobre
direitos humanos ao longo das últimas três décadas.
Cunhado no
início dos anos 70, o conceito de segurança alimentar se referia,
originalmente, a países, e não a indivíduos ou famílias,
e o foco das atenções eram os problemas globais de abastecimento.
Um dos marcos iniciais de disseminação do termo foi a Conferência
Mundial de Alimentação, realizada em Roma, em 1974, onde segurança
alimentar foi definida como a garantia de adequado suprimento alimentar mundial
para sustentar a expansão do consumo e compensar eventuais flutuações
na produção e nos preços. “Este conceito original
não considera a possibilidade de que o país tenha alimentos
e a população não possa ter acesso a eles”, comenta
Héctor Maletta, da Universidade Politécnica de Madrid, na Espanha,
um dos responsáveis pelo Projeto Regional para a Formação
em Economia e Políticas Agrárias e de Desenvolvimento Rural
na América Latina.
Nos anos
seguintes à Conferência de Roma, o reconhecimento do problema
crítico de pessoas afetadas pela fome em todo o mundo e a evidência
de que a chamada Revolução Verde – expansão da
agricultura pelo avanço tecnológico – não iria
reduzir automaticamente os níveis de pobreza e má nutrição
no planeta levaram a uma redefinição de segurança alimentar.
Em 1983, a Organização das Nações Unidas para
Agricultura e Alimentação (FAO, em inglês) incluiu no
conceito a garantia do acesso físico e econômico das pessoas
à alimentação básica que elas necessitavam. Em
1986, um relatório do Banco Mundial introduziu uma distinção
entre insegurança alimentar transitória, decorrente de desastres
naturais, colapsos econômicos ou conflitos bélicos, e insegurança
alimentar crônica, associada a problemas estruturais de pobreza e de
baixa renda.
Uma semente
dessa idéia começou a ser plantada no Brasil, também
nos anos 80, por pesquisadores como o sociólogo Herbert de Souza, o
Betinho, que havia fundado em 1981 o Instituto Brasileiro de Análises
Sociais e Econômicas (Ibase), organização não governamental
sem fins lucrativos dedicada ao estudo das realidades econômicas, políticas
e sociais no país. No início dos anos 90, o Ibase e o IBGE divulgaram
um estudo intitulado “Mapa da Fome”, que apontava 32 milhões
de pessoas no Brasil com renda familiar insuficiente sequer para comprar uma
cesta básica por mês. Esse estudo desencadeou a famosa campanha
de Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria e Pela
Vida, encabeçada por Betinho, que conseguiu, em apenas um ano, doações
de alimentos não perecíveis de 25 milhões de pessoas
em mais de quatro mil comitês espalhados pelo país.
Em 1993,
o presidente Itamar Franco atendeu ao apelo da sociedade civil gerado pela
campanha de Betinho e criou a primeira versão do Conselho Nacional
de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) – substituído
pelo Conselho de Comunidade Solidária, no governo de Fernando Henrique
Cardoso, e reativado dez anos depois de sua criação pelo presidente
Lula. “As políticas públicas no Brasil passaram a incorporar
o foco de segurança alimentar e nutricional a partir de trabalhos desenvolvidos
por muitos pesquisadores, embora nas políticas você ainda tenha
uma incorporação muito parcial do enfoque”, afirma Renato
Maluf, pesquisador da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e assessor
especial e membro do Consea.
Segundo
ele, no Brasil, a interpretação inicial era diferente do sentido
original de food security, devido a um esforço, aqui, para
se construir uma visão de segurança alimentar que fosse além
da mera disponibilidade de bens alimentares de consumo. Mesmo assim, a questão
do acesso aos alimentos sempre esteve no foco tanto das políticas nacionais
quanto das internacionais. Em 1994, a FAO, lançou o seu Programa
Especial de Segurança Alimentar, centrado na ajuda a vários
países para o aumento da produção de alimentos, para
conter os índices de fome e subnutrição. Nesse mesmo
ano, o Brasil realizou a Primeira Conferência Nacional de Segurança
Alimentar, na qual a insegurança alimentar do brasileiro, fortemente
vinculada à idéia de acesso aos alimentos, foi associada à
concentração de renda e de terra no país.
“A
política nacional de segurança alimentar e nutricional vem sendo
construída e a incorporação das várias dimensões
[que o conceito abrange] vem sendo gradativa”, afirma o assessor especial
do Consea. Essa incorporação de outros aspectos ao conceito
original também foi gradativa a nível internacional. Em meados
dos anos 90, o acesso ao alimento para uma vida ativa e saudável, dentro
do conceito de segurança alimentar, passou a abranger questões
como preferência individual, balanço nutricional e inocuidade
dos alimentos (sua inofensividade à saúde). A exemplo do marco
inicial de 1974, foi novamente em Roma que aconteceu a Cúpula Mundial
de Alimentação, em 1986, onde se traçou a meta de erradicar
a fome em todos os países do mundo e reduzir o número de pessoas
subnutridas pela metade até 2015. Esse evento consolidou o seguinte
conceito:
“A segurança
alimentar, nos níveis individual, familiar, nacional, regional
e global, é alcançada quando todas as pessoas têm,
a todo momento, acesso físico e econômico a alimentos inócuos
[que não oferecem riscos à saúde] e nutritivos para
satisfazer suas necessidades dietéticas e preferências alimentares,
para uma vida ativa e saudável”. |
A
questão do risco à saúde, incorporada desde então,
envolve uma palavra em inglês (safety) que a exemplo do conceito
geral (security) também se traduz por “segurança”.
A ambigüidade desse termo, em português, que pode se referir tanto
aos alimentos (seguros) quanto à prática alimentar (segura),
pode levar a uma limitação do conceito. “Deve-se distinguir
claramente a segurança alimentar (food security) da inocuidade
dos alimentos (food safety). Esta última é uma condição
necessária para que haja segurança alimentar, mas é apenas
um aspecto. De nada valeria ter alimentos inócuos se estes não
existem em quantidade suficiente ou se a população não
tem acesso a eles”, esclarece Héctor Maletta, da Universidade
Politécnica de Madrid.
“Da
mesma forma, não pode existir segurança alimentar se os alimentos
causam dano [à saúde], mesmo quando há acesso a eles
em quantidade suficiente”, acrescenta. Além da questão
do acesso ao alimento, a idéia de insegurança alimentar envolve
ainda desde riscos por má conservação dos alimentos ou
grande concentração de substâncias nocivas que eles possam
conter, passando por formas de preparo ou processamento que destroem certos
nutrientes essenciais, até condições gerais de saúde
e saneamento ou possíveis reações alérgicas de
algumas pessoas a alimentos específicos.
A
percepção pública
Se para os
cientistas e os definidores de políticas públicas o conceito
de segurança alimentar é novo e controverso em determinadas
situações, que dirá para o público leigo. Robson
de Almeida, funcionário da Unicamp diz que nunca ouviu falar em segurança
alimentar e não faz idéia do que seja isso. A mestranda em engenharia
química Giselle Ferreira da Silva sugere que a expressão “está
relacionada à higiene e à conservação dos alimentos”,
associando o termo à idéia de risco que os alimentos podem oferecer
para a saúde.
Entre
os que conhecem a expressão, outro aspecto além do risco à
saúde predomina na percepção dos leigos sobre segurança
alimentar, influenciada pela campanha de Betinho e pelo recente programa Fome
Zero do governo federal: a questão do acesso
aos alimentos. “É claro que a fome, especialmente a fome crônica
e as formas de fome oculta, como a desnutrição, são as
dimensões mais evidentes e urgentes da segurança alimentar e
nutricional. É uma visão que expressa o direito de que todos
devem ter acesso aos alimentos e que ninguém passe fome”, observa
Renato Maluf, do Consea. “Temos feito um esforço para construir
uma visão em que o próprio combate à fome seja orientado
com um enfoque de segurança alimentar e nutricional. Não se
trata de distribuir alimentos de qualquer maneira, não é apenas
uma questão de dar renda a quem não tem para que possa comprar
alimentos. Tem [também] o tema de produção, o tema de
hábitos alimentares e a questão de soberania alimentar envolvidos”,
avalia.
Segundo o
assessor especial, a definição de segurança alimentar
do Consea prevê que a garantia de acesso regular e permanente a uma
alimentação adequada leve em conta as condições
econômicas, ambientais e culturais dos povos. Além disso, na
questão da produção de alimentos, o Consea também
estimula aquilo que tem sido uma das marcas do atual governo: a agricultura
familiar. O Conselho atua, ainda, na área de educação
alimentar, que envolve não apenas os hábitos alimentares e a
alimentação balanceada, mas inclusive a preocupação
ambiental para que a produção de alimentos seja sustentável
e valorize a biodiversidade. “É um componente fundamental que
a política seja construída com muita participação
social”, conclui.
(RC)