Ciência
e indústria de olho na funcionalidade dos alimentos
A relação
entre alimentos e benefícios para a saúde faz parte da sabedoria
popular há milênios, no entanto, há somente pouco mais
de uma década, a ciência voltou-se para esse tema. Nesse movimento,
que faz parte do novo olhar das ciências biológicas sobre as
milenares formas de conhecimento, esquadrinha-se a relação entre
determinados compostos dos alimentos e benefícios específicos
para a saúde, e populariza-se o termo alimentos funcionais.
Para Jocelem
Mastrodi Salgado, presidente da Sociedade Brasileira de Alimentos Funcionais
(Sbaf) e professora do Departamento de Nutrição Humana da Esalq-USP,
a definição é clara. “Alimentos funcionais são
alimentos ou ingredientes que, além das funções nutricionais
básicas, produzem efeitos metabólicos, fisiológicos ou
efeitos benéficos à saúde, como redução
do risco ou prevenção de determinadas doenças”,
diz ela, explicando ainda que a utilização de certos alimentos
na redução do risco de doenças é considerada há
milhares de anos, mas somente nos últimos 15 anos o termo alimento
funcional passou a ser adotado e disseminado.
Salgado
destaca que os alimentos funcionais não são remédios
e, portanto, não podem curar doenças, mas apresentam componentes
ativos capazes de prevenir ou reduzir o risco de algumas doenças,
dentre as quais as mais investigadas são as cardiovasculares, câncer,
hipertensão, diabetes, doenças inflamatórias, intestinais,
afecções reumáticas e mal de Alzheimer. Na opinião
dela, quando os alimentos funcionais são consumidos em sua forma natural,
não necessitam de supervisão médica, mas ressalta que
“a eficácia e segurança deles deve ser assegurada por
estudos científicos”.
José
Alfredo Arêas, do Departamento de Nutrição da Faculdade
de Saúde Pública da USP, concorda em parte com essas idéias.
Ele explica que esse é o conceito de alimentos funcionais que surgiu
no Japão, na década de 80, e é prevalente na maior parte
dos lugares, com exceção do Brasil. “No Japão,
eles ficaram conhecidos como Foshu (sigla em inglês para Foods for Specified
Health Use), mas no Brasil o conceito ficou um pouco confuso”, diz ele.
Arêas
atribui a indefinição do conceito em parte por causa da excessiva
abrangência da regulamentação elaborada, em 1999, pela
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “A
regulamentação é tão vaga e ampla que qualquer
coisa, que sabidamente é boa para a nutrição, pode ser
classificada como alimento funcional. Acredito que a regulamentação
seja abrangente para permitir que várias coisas sejam assim classificadas”,
argumenta ele.
Antônia
Aquino, gerente de produtos especiais da Anvisa, não concorda com essa
afirmação e argumenta que a legislação
brasileira é muito semelhante ao Codex
Alimentarius, e está de acordo com as exigências da
Organização das Nações Unidas para Agricultura
e Alimentação (FAO) e da Organização Mundial da
Saúde (OMS). Segundo ela, assim como o Codex, a Anvisa trabalha com
a idéia de alegações funcionais ou de saúde para
esses alimentos. Trata-se de avaliar as alegações sobre a relação
entre um alimento, ou substância de sua composição, e
uma função metabólica ou fisiológica para o organismo,
ou ainda, a relação entre um alimento e a diminuição
de risco de determinada doença.
Para que
a alegação seja avaliada, a empresa (ou outro requerente) deve
encaminhar para a Anvisa a documentação científica que
a sustenta. Ela pode ser relativa a uma substância com características
funcionais ou de saúde, que esteja presente naturalmente em um alimento
ou que tenha sido artificialmente adicionada a ele. Nesse sentido, para a
Anvisa o ácido graxo Ômega 3, por exemplo, pode ser o mote de
uma alegação funcional ou de saúde. “Não
apenas produtos industrializados, como também os alimentos que contêm
determinadas substâncias naturalmente, como o peixe ou o tomate, podem
ser vendidos com alegações de funcionalidade e então
passam a ser considerados alimentos funcionais”, diz a gerente da Anvisa.
Quando aprovadas, essas alegações passam a constar nos rótulos
das embalagens dos produtos.
Sobre a crítica
de que a amplitude da regulamentação e da definição
de alimentos funcionais poderia criar expectativas excessivas a algumas correntes
de pesquisa que querem apregoar o alimento como tendo finalidade de tratamento,
Aquino rebate dizendo que isso não procede, uma vez que “a legislação
não utiliza esse tipo de prerrogativa para o alimento, porque um decreto
lei de 1969 prevê que essa é uma prerrogativa dos medicamentos”.
A gerente
de produtos especiais da Anvisa explica que só são aceitas as
alegações de redução de risco de uma doença,
pois a agência entende que as doenças são multifatoriais,
e o alimento é apenas um dos fatores que contribui para uma boa saúde.
“O alimento não trata, nem cura, isso é função
de medicamentos, e também não previne, porque isso é
função de vacina”, diz Aquino.
Os
jogos do mercado
A dificuldade
de definição dos alimentos funcionais não ocorre apenas
no Brasil. Um relatório
de 2001, disponível no site do Ministério de Agricultura do
Canadá, sinaliza o mesmo problema a nível mundial.
O relatório
canadense analisou outros 45 relatórios que mencionavam ou discutiam
o tamanho do mercado de alimentos funcionais e apontou que as estimativas
variam dramaticamente. O documento associa essa variação à
falta de definição consistente para alimentos funcionais. Além
de incluir bebidas energéticas e alimentos enriquecidos, alguns autores
incluem alimentos orgânicos ou suplementos alimentares como alimentos
funcionais.
Entre as
diferentes estimativas, o relatório cita a previsão do Nutrition
Business Journal de que até 2010 os alimentos funcionais ocuparão
uma fatia de 5,5% do total do mercado de alimentos norte-americano, porcentagem
que representa 34 bilhões de dólares. Por outro lado, previsões
que consideram investimentos da indústria farmacêutica, afirmam
que a fatia de mercado dos alimentos funcionais, quando comparada aos alimentos
normais, aumentaria mais de 25% .
Independentemente
das estimativas diferenciadas, o relatório aponta a possibilidade de
superestimar valores ou encontrá-los numa variação muito
ampla, quando se tem em vista uma definição confusa de alimentos
funcionais. Nesse jogo de definições, marketing e números,
o relatório afirma que fortes investimentos têm sido feitos pela
indústria farmacêutica e que a funcionalidade dos alimentos,
na visão de empresários da indústria de alimentos, agrega
valor aos produtos assim rotulados.
Os
primeiros passos da pesquisa no Brasil
De acordo
com José Alfredo Arêas, a pesquisa no Brasil sobre alimentos
funcionais ainda é muito incipiente, com pesquisadores trabalhando
de forma desarticulada. Para mudar esse quadro, uma série de pesquisadores
e entidades vêm tentando estabelecer um protocolo de trabalho para a
área de alimentos funcionais no país. Em reunião em Brasília,
em abril deste ano, entidades como a USP, Unicamp, Unesp, Escola Paulista
de Medicina e Embrapa, entre outras, conseguiram determinar um protocolo básico
para estudo de alimentos funcionais. “No Brasil, nós temos trabalhado
de forma muito isolada e isso é comum numa área incipiente como
essa de alimentos funcionais. No entanto, num assunto multidisciplinar como
esse, só haverá um impulso sério, se houver uma ação
concatenada de estudos”, explica Arêas.
Apesar das
reuniões estarem apenas começando e dos projetos de pesquisas
não terem financiamento estabelecido, Arêas adianta que no protocolo
de trabalho já se estabeleceu o açaí e o caju como os
dois primeiros alimentos a serem estudados e cada pesquisador ou entidade
ficou responsável por uma parte do estudo. O trabalho inicial de seleção
das variedades viáveis para o estudo será feito pela Embrapa.
Quando
a biotecnologia entra no jogo
Segundo
Antônia Aquino, gerente de produtos especiais da Anvisa, não
há no Brasil solicitações de avaliação
para compostos funcionais presentes em alimentos geneticamente modificados.
A Comissão Nacional Técnica de Biossegurança (CTNBio),
que analisa os pedidos e registros de alimentos geneticamente modificados,
também não tem aprovações desse tipo. Apesar disso,
das controvérsias em torno da definição do termo e dos
protocolos de pesquisa no país estarem apenas no início, pesquisadores
brasileiros já sinalizam o rumo que se pretende dar a essa área
de pesquisa, que já é realidade nas articulações
entre as indústrias de alimentos e farmacêutica, agronegócios
e marketing.
E não
é à toa que esses interesses se articulam, afinal, apesar dos
debates em torno das estimativas de mercado não apresentarem números
específicos, a expectativa de ganhos é bastante significativa.
Em
entrevista ao website do Conselho de Informações sobre Biotecnologia
(CIB), a nutricionista e professora da Universidade Federal de Viçosa,
Neuza Brunoro, afirma que a biotecnologia é uma importante ferramenta,
que pode aumentar e melhorar as características nutricionais e funcionais
dos alimentos. Como exemplo, ela cita a aplicação da biotecnologia
para redução do teor de fitato no feijão, o que aumentaria
a biodisponibilidade de ferro e zinco, e o enriquecimento do arroz com vitamina
A, que foi produzido pela empresa Monsanto e ficou conhecido como arroz
dourado. Em ambos os casos, o principal argumento para a produção
desses alimentos geneticamente modificados é solucionar problemas de
desnutrição ou subnutrição, em especial em países
em desenvolvimento. Apesar disso, a maior parte dos compostos
funcionais pesquisados estão relacionados com
doenças crônicas e degenerativas, prevalentes nos países
desenvolvidos.
José
Alfredo Arêas considera que os alimentos funcionais não são
uma solução para problemas como a desnutrição
ou a subnutrição. O economista David Hathaway vai além,
colocando como contraponto aos alimentos funcionais, a multi mistura usada
em programas de alimentação, como o da
Pastoral da Criança, que pode ser obtida a um valor muito mais baixo.
Em sua opinião, os alimentos funcionais são produtos carregados
de tecnologia e investimento, para agregar valor e criar novas necessidades
ou ilusões.
Luiz Eduardo
de Carvalho, professor da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, concorda com Hathaway afirmando que antes mesmo de haver
uma definição sobre o que são alimentos funcionais, os
produtos e as propagandas sobre eles já estavam sendo veiculadas. “A
normatização veio depois. Não veio para categorizar,
limitar, orientar. A legislação veio para legitimar, viabilizar
e formalizar uma situação pré-dada”, questiona
ele complementando: “muitos ganham com essa situação,
e outros, os consumidores, alimentam seus sonhos e fantasias com isso como,
por exemplo, saber o que se pode comer para deixar de ser careca”.
Carvalho
critica a mídia por apresentar a questão sem uma visão
crítica. “Falam em melancias e licopenos, mas isso sempre existiu.
Todo alimento pode ser considerado funcional. Na verdade, o que se faz é
uma propaganda subliminar que termina abrindo as portas para a liberação
de fórmulas industrializadas, com rótulo, propaganda e preço
de remédio, logrando registro para tudo, sem ter que provar nenhuma
das propriedades terapêuticas e farmacológicas anunciadas, prometidas
e cobradas. Em suma: registra-se fácil e barato, como comida, mas vende-se
como remédio”, conclui ele.
(MK)
Para saber
mais leia: “Nutracêuticos:
Um desafio normativo”