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Do
começo ao fim
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A Interpretação dos Sonhos (1900) é, segundo psicanalistas e estudiosos, o marco de inauguração da psicanálise. Moisés e o Monoteísmo é a última obra que Freud publicou em vida. Moisés... é menos o exercício de uma aplicação - ficcional e aventureira, segundo alguns - da interpretação psicanalítica no campo da história, neste caso dos judeus e sua religião, do que a consolidação e o aprofundamento de um eixo central da psicanálise ao qual o livro princeps, de 1900, deu início. A distinção que Freud estabelece no desfecho de sua obra (em Moisés...) entre verdade material e histórica, é, neste sentido, talvez a mais apropriada para ilustrar o objetivo ao qual Freud dirigiu, do começo ao fim, seu esforço e o alvo que visava atingir nos diferentes territórios em que se meteu. A verdade histórica freudiana pouco tem a ver com os fatos ou objetos de historiadores e estudiosos dos diferentes campos da cultura e/ou das ciências naturais. Esses, os fatos, passados ou presentes, dizem respeito à verdade material; servem de meio para entrever e perseguir algo que os transcendem e os determinam. Coisa esta que Fabio Herrmann designou, dentro de um sistema conceitual próprio, da psique do real. Matriz edípica, linguagem, lei, Outro, mito, etc. são todos conceitos da psicanálise contemporânea que remetem para este real, da psique. Verdade histórica cuja inscrição não se encontra exclusivamente no indivíduo e nem tão somente no grupo mas naquilo que os atravessa e os perpassa - os constitui, e na história. A religião judaica que Moisés instaurou é uma perseguição constante deste eixo, de cunho essencialmente negativo (formulado em torno da matriz edípica, da castração), e que é da própria análise, permitindo-lhe (ao judaísmo) alcançar aquilo que Freud avaliou ser o ideal do trabalho analítico: o pensamento ou a dimensão não sensorial do real humano. A interpretação não é uma simples decifração e tradução de conteúdos, sejam eles, no contexto clínico, individuais, sejam no da cultura - de um de seus objetos -, mas a abordagem, sempre indireta, deste real em meio às suas realizações e a seus desdobramentos específicos. Ver-se-ia, então, que é o método que se coloca em primeiro plano. O método da psicanálise visa e nos coloca em contato com o real psíquico. O que nos defronta, neste centenário da psicanálise, com uma curiosa realidade situada no âmbito público: A descrença e o desrespeito à psicanálise - aliás, por definição inassimilável à civilização ocidental - e ao seu criador junto ao chamado público culto, têm adquirido força de uma origem bem característica à vida moderna. A vulgarização das descobertas científicas nos meios de comunicação nutre-se de uma confusão da ciência com suas influências sobre a produção e a sofisticação dos bens, materiais, corporais e públicos; obteve uma aceitação silenciosa por parte dos cientistas visto a crescente dependência de suas pesquisas de financiamentos públicos. Entretanto, a atividade científica, mais do que a psicanálise, centra-se no exercício de um método: os fatos e as hipóteses são sempre passageiras. Entretanto, a positivação exacerbada em prol de uma eficácia pragmática faz o público aderir à verdade dos genes, sua procura em toda parte para tudo explicar. Não surpreende que tal busca torna ainda mais ridículo o já banalizado "Freud explica" da compactuada e apressada consciência pública em relação à psicanálise. Somente o resgate da ordem do método, o científico, de um lado, e da psicanálise de outro - os dois muito singulares, e irredutíveis um ao outro - é que colocaria em relevo a verdade presente na história de Moisés para a urgente e a mais fecunda interlocução da psicanálise com a ciência. Daniel Delouya - Psicanalista. Pesquisador pós-doutor no Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Núcleo de Psicanálise da PUC-SP. É autor de Depressão (São Paulo, Casa do Psicologo, 2000) e Entre Moisés e Freud - tratados de origem e de desilusão do destino, lançado recentemente pela Editora Via Lettera. |
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Atualizado em 10/10/2000 |
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