"O
tempo do sonho pode ser comparado ao da chuva. Vem por estações
durante uma análise, fertiliza-a, e segue um movimento ternário
mas contínuo de concentração, precipitação, disseminação. O momento
do sonho e o de seu relato na sessão não são o sonho inteiro para
o analista. Como a concentração de água que se evapora e forma nuvens,
temas psíquicos, dotados de tensão emocional, vão-se acumulando
e começam a ser sonhados silenciosamente, na vigília, através de
pequenos atos de significação ambígua e da concatenação mais ou
menos frouxa de séries de idéias a respeito do tema, ou de lembranças
e idéias soltas que não se definem, a não ser a posteriori. Ocorrem
chuviscos de quando em quando: atos falhos, devaneios, fragmentos
oníricos indicativos do tema vindouro. Até que o sonho que já está
a ser sonhado alcança um estado de saturação que lhe permite precipitar-se
abertamente num episódio noturno recordável, feito tempestade de
verão. Depois, o relato, o trabalho interpretativo e a elaboração
disseminam o sonho na superfície psíquica, permitem-lhe infiltrar-se
nas camadas gerativas de associações, ampliam seu sentido e fertilizam
a análise. Por fim, evapora-se esse sonho, o campo do sonho parece
secar, mas é só o recomeço do ciclo: já estamos noutro sonho. Há
análises onde chove mais, outras onde chove menos, sem que essa
variação equivalha necessariamente a produtividade ou estagnação.
Surge o sonho, via de regra, numa zona congestionada do entrelaçamento
dos campos, donde resulta que seu conteúdo exprima regras atinentes
a distintos temas psíquicos simultaneamente; por isso não possui
um só sentido latente, mas uma rede de significações emocionais,
cuja análise "completa" levaria em princípio a cobrir quase toda
a análise; o sonho é um momento diagnóstico por excelência, identifica
o sujeito. Deve ser aproveitado. O trabalho de interpretação dos
sonhos tem-se modificado tanto desde Freud, que talvez seja mais
fácil dizer o que permanece. Não é absurdo pedir explicações e associações
ao paciente que conta um sonho, quer dizer, tratar o sonho como
episódio distinto e fenômeno isolável. Faça isso quando achar oportuno,
mas não se esqueça que a forma pela qual o sonho foi narrado e o
conjunto inteiro das idéias que o cercam, ainda e sobretudo se não
lhe parecem conectadas, são associações também, potencialmente.
Com o sonhador, o analista sonha simpaticamente, deixando-se levar
pela iluminação que o sonho propicia, sem pressa, esperando que
a precipitação insemine-lhe as idéias, para poder operar no mesmo
ritmo do campo onírico. Como existe uma forte tendência a se esquecer
um sonho, por obra da resistência, e quase todos assim se perdem,
a função do analista é aqui também comemorativa ou de recordação;
ele pugna por manter o sonho à tona por um tempo mais largo do que
espontaneamente se daria e por acompanhar seu movimento de disseminação
e nova concentração; pôr-se em fase com o campo do sonho é nossa
tarefa principal e nada fácil, pois em nós também operam resistências.
Por fim, é o sonho uma defesa do sono, como Freud mostrou. A isso
pode acrescentar-se que o sonho aberto, essa história visual que
se vive de noite e se conta de dia, é a oportunidade para sair de
um sonho, da surda corrente subterrânea dos temas de que o sonho
trata, cuja lógica preside ocultamente a vigília, até que se possa
manifestar num episódio constituído, ganhando estatuto de consciência:
o sonho é o despertar de um sonho.
Tomemos
um exemplo mínimo, em que praticamente não há concentração ou disseminação,
mas só precipitação. Sonhos comuns tematizam relações de vários
campos simultâneos; tentemos encontrar um que aparentemente só aborde
um tema e que permita só uma interpretação, para ver se não nos
diz um pouco mais do que o esperado, se não possui também função
diagnóstica. Em adultos tais sonhos são raros, no entanto existem;
há sonhos, por exemplo, que são quase só representações de um estado
físico. Um médico tem o seguinte sonho. Está numa montanha rochosa,
debaixo de forte temporal. Abriga-se com outras pessoas numa caverna
muito grande que contém, parece, toda uma cidade. À frente, no outro
extremo da montanha, abre-se caverna idêntica, com gente, casas,
estradas. Súbito, começa uma avalancha e grandes pedras estão rolando,
perigosamente. Vai de uma caverna para a outra, por um túnel longo
que as interliga. Ocorre que ele vinha sofrendo, há dias, de uma
inflamação dos ouvidos, conseqüência de natação e mergulhos. As
cavernas representam claramente as orelhas, o túnel figura as trompas
de Eustáquio, que ele sentia aumentadas e irritadas por secreção,
como se uma chegasse até a outra. Serosidade e secreção podiam estar
substituídas pela avalancha de pedras, tal a sensação de desconforto
nos ouvidos; a tempestade podia equivaler ao ruído desagradável,
característico do quadro clínico; as cidades nas cavernas indicariam
o tamanho subjetivo das orelhas doloridas, sua tumefação. Pareceria
não haver qualquer elaboração significativa, só uma transposição
do corpo à mente. No entanto, depois de algumas associações, persistia
a estranheza de uma tempestade sobre a montanha de pedras; e foi
de golpe, um pouco ironicamente, que se deu conta de que estivera
a sonhar nada menos que com o "rochedo do temporal" - que é assim
chamada a grossa parede óssea onde se assenta o pavilhão auricular.
Rochedo do temporal = temporal num rochedo. Esse tipo de sonho constitui
uma espécie de limite para a atividade analítica. Não há quase nada
a ser dito, a não ser talvez que ele prova a existência de sentido
no sonho. Nada parece indicar, contudo, a respeito do sonhador.
Será verdade? Nem tanto. Há um gosto especial pela representação
metafórica mostrado aí. Dessa pessoa pode-se esperar que sessões
inteiras, ou partes consideráveis delas, representem metaforicamente
estados de vida, sentimentos transferenciais, conflitos, expectativas.
Por outro lado, há um gosto pela palavra e mais especialmente pelo
jogo de palavras, contido no sonho, assim como certa intenção irônica,
que não brinca só com o ouvido inflamado, como também com a formação
médica, com a anatomia. Este sonho tem a aparência de ser pura precipitação,
mas como todos pode adquirir função diagnóstica da vida psíquica,
dizer como é o sujeito do sonho, como compreenderá as palavras do
analista, que deverá estar atento a operações metafóricas surpreendentes.
Um paciente talvez difícil, mas não completamente desinteressante
de analisar."
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