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A
cisão com o príncipe herdeiro
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Freud disse mais de uma vez que o objetivo da psicanálise é diminuir o sofrimento humano. Mas isso não o livrou das próprias angústias, especialmente nas dissenções do grupo pioneiro de psicanalistas, particularmente, no caso de Carl Gustav Jung. A partida do "príncipe herdeiro", como Freud referiu-se a ele, nos melhores tempos que tiveram juntos, foi uma perda difícil. O distanciamento, no tempo, mostra que o choque entre os dois era inevitável. Freud e Jung pertenciam a universos distintos, cada um com suas leis, ainda que, em suas gêneses, tenham partilhado os mesmos princípios. E essa é uma justificativa de Jung, para defender-se da fidelidade que Freud exigia dele num ponto crucial: o papel da sexualidade nas neuroses. Jung sempre viu aí um conteúdo numinoso: "parecia-me claro que Freud, proclamando sempre e insistentemente sua irreligiosidade, construira um dogma, ou melhor, substituira o Deus ciumento que havia perdido, por outra imagem que se impôs a ele, a da sexualidade." Ao refutar o que Freud havia interpretado como "irreverência", Jung disse que havia se aproximado dele atraído pela ousadia de suas idéias. Em Memórias, Sonhos, Reflexões, conta que isso aconteceu em 1903, quando leu pela segunda vez A Interpretação dos Sonhos. A primeira das várias rupturas de Freud aconteceu com Wilhelm Fliess, em quem todo o grupo pioneiro - à exceção do "casmurro" Karl Abraham, segundo Ernest Jones - reconheceu uma "fascinante" personalidade. Depois vieram Alfred Adler, o socialista amigo de Trotsky, e Wilhelm Stekel a quem o escudeiro-mor qualificou pejorativamente de "jornalista nato." Jung foi o seguinte, mas não o último. Se fosse menos leal a Freud, o próprio Jones teria sido um dissidente. Freud se opôs com determinação ao interesse que Jones tinha por sua filha, Anna. A justificativa de Jones seria diferente dos outros, mas a verdade é que, cada um dos que foram, alegou uma razão. O primeiro encontro entre Jung e Freud aconteceu na casa de Freud, em Viena, em fevereiro de 1907. Para usar um termo caro à psicanálise, foi sintomática, a impressão que Jung registrou dele em suas memórias: "as primeiras impressões que tive de Freud permaneceram vagas e, em parte, incompreendidas". Mas essa é a conclusão de um parágrafo que Jung começa na direção oposta: "Conversamos a partir de uma hora da tarde, quase ininterruptamente, durante treze horas. Freud era a primeira personalidade verdadeiramente importante com quem me relacionava. Ninguém, entre as pessoas que eu conhecia, podia ser comparada a ele. Em sua atitude, nada havia de trivial. Eu o achei extremamente inteligente, penetrante, notável sob todos os pontos de vista." Quando encontrou-se com Jung, Freud estava iniciando um processo de reconhecimento internacional, especialmente nos Estados Unidos, onde fora levado por Havelock Ellis. A psicanálise ainda sofria forte resistência, mas já transbordava do seu confinamento inicial e para Freud, Jung era uma das provas disso. Jung quebrou "a primeira lança" por Freud num congresso em Munique onde Freud "foi propositadamente omitido, a respeito das neuroses obsessivas". Logo em seguida, em 1906, escreveu um artigo numa revista médica sobre a doutrina freudiana das neuroses e acabou advertido por dois colegas de que não teria futuro universitário que mantivesse aquele rumo. Jung continuou a defesa de Freud, com a "única diferença que, apoiado em minhas próprias experiências, não podia concordar que todas as neuroses fossem causadas por recalques ou traumas sexuais. Essa hipótese era válida em certos casos, mas não em outros." Três anos depois do primeiro encontro, em 1910, ainda em Viena, Freud repetiu a Jung o pedido de não abandonar a teoria sexual. Para Freud era preciso fazer dela "um dogma, um baluarte inabalável". Jung sentiu-se chocado com a proposta: "ele me pediu isso cheio de ardor, como um pai que pede aos filhos que vá à Igreja todos os domingos." Esse acontecimento, segundo Jung, "feriu o cerne de nossa amizade." Karl Abraham, que havia trabalhado sob a supervisão de Jung, segundo registra Jones, "já se mostrara intrigado com o que chamava de tendência para o ocultismo, a astrologia e o misticismo observados em Zurique, mas sua crença não provocou qualquer impacto em Freud, que começava a depositar grandes esperanças em Jung." Mas a dissenção tomava forma. Jung escreve em suas memórias que "em função da unilateralidade de Freud, nada havia a fazer. Talvez só uma experiência interior, de cunho pessoal, teria podido abrir-lhe os olhos. E mesmo assim seu intelecto talvez o reconduzisse à simples 'sexualidade', ou 'psicosexualidade'. Ele tornou-se vítima do único lado que podia identificar, e é por isso que o considero uma figura trágica, pois era um grande homem e, o que é principal, tinha o fogo sagrado." Em fins de 1910, Freud e Jung encontraram-se em Munique. Freud diz que o encontro lhe fez bem: "abri-lhe meu coração sobre a questão com Adler, das minhas próprias dificuldades e da minha dificuldade em lidar com o problema da telepatia... Estou mais convencido do que nunca de que ele é o homem do futuro." Ao menos no sentido que quis dar às suas palavras, Freud se equivocava. Jung partiria em breve. Quanto à telepatia, o assunto aparece em dois de seus escritos: O Sonho e a Telepatia e Psicanálise e Telepatia. No primeiro caso, Freud encerra dizendo: "por ventura, terei despertado a impressão de que quero tomar partido a favor do caráter real da telepatia no sentido ocultista? Lamentaria muito. Na realidade, quis ser completamente imparcial. Pelo que me toca, não poderia ser outra a minha atitude, pois não tenho direito de emitir juizo, já que nada sei a esse respeito." No ano anterior, no encontro em Viena, Jung havia procurado saber de Freud sua opinião sobre precognição e parapsicologia em geral. No relato que deixou sobre isso diz, referindo-se a Freud, que "fiel a seu preconceito materialista, repeliu todo esse complexo de questões, considerando-as mera tolice. Ele apelava para um positivismo de tal modo artificial que precisei conter uma resposta cáustica. Alguns anos se passaram antes que Freud reconhecesse a seriedade da parapsicologia e o caráter de dado real dos fenômenos ocultos." A ruptura final aproximou-se no melhor estilo freudiano: num sonho. Jung conta que sonhou com uma casa desconhecida, de dois andares, que sentia como sua. Na andar superior, entre móveis rococós, as paredes tinham quadros valiosos. No andar inferior, tudo era antigo, dos séculos 15 ou 16. A exploração de uma porta aberta levou-o a uma escada que conduzia a adega e aí, uma argola abriu uma passagem para uma gruta baixa e rochosa, empoeirada, onde dois crânios antigos se decompunham. Freud, na avaliação de Jung, fez uma interpretação envolvendo desejos secretos de morte. Mas ele próprio enxergou outros conteúdos que o levaram, pela primeira vez, à noção de inconsciente coletivo. Jung entendeu a casa do sonho como "uma espécie de imagem da psique". A consciência "era caracterizada pela sala de estar e parecia habitável, apesar do estilo antiquado." No andar térreo já começava o inconsciente: "quanto mais eu descia em profundidade, mais as coisas se tornavam estranhas e obscuras. Na gruta, descobri restos de uma civilização primitiva, isto é, o mundo do homem primitivo em mim; esse mundo não podia ser atingido pela consciência. A alma primitiva do homem confina com a vida da alma animal, da mesma forma que as grutas dos tempos primitivos foram freqüentemente habitadas por animais, antes que os homens se apoderassem delas." Em 1911, Jung confessa que, num certo sentido, Freud "havia perdido sua autoridade sobre mim." Quando estava concluindo a redação de Metamorfoses e Símbolos da Libido, sabia que o capítulo O Sacrifício lhe custaria, em definitivo, a amizade de Freud. Jung expõe aí sua própria concepção do incesto onde, na maior parte dos casos, "representa um conteúdo altamente religioso e por esse motivo desempenha um papel decisivo em quase todas as cosmogonias e em inúmeros mitos. Mas Freud, atendo-se ao sentido literal do termo, não podia compreender o significado psíquico do incesto como símbolo e eu sabia que ele jamais o aceitaria." Em 1910, e ainda mais em 1911, Jones registra que "Freud sentia-se conturbado ao saber que a intensa absorção de Jung em suas pesquisas mitológicas estava interferindo gravemente nos deveres de presidência (da Sociedade Psicanalítica Internacional) que havia atribuído a ele." Quando a ruptura definitiva aconteceu, em abril de 1914, Jung sentiu-se desamparado: "todos os meus amigos e conhecidos se afastaram de mim. Meu livro não foi considerado uma obra séria. Passei por místico e, dessa forma, encerraram o assunto." Freud se deu conta disso e numa carta que escreveu a Jones disse: Pode ser que superestimamos Jung e as suas realizações no futuro. Não se encontra ele numa situação simpática perante o público, no momento em que se volta contra mim, isto é, contra o seu passado." Jung escreveu outras palavras. Avaliou que "olhando para trás, posso dizer que sou o único que prosseguiu o estudo dos dois problemas que mais interessaram a Freud: o dos 'resíduos arcáicos' e da sexualidade. Espalhou-se o erro de que não vejo valor na sexualidade. Muito pelo contrário, ela desempenha um grande papel em minha psicologia, principalmente como expressão fundamental, mas não única, da totalidade psíquica. Minha preocupação essencial era aprofundar a sexualidade além do seu limite pessoal e seu alcance de função biológica, explicando-lhe o lado espiritual e o sentido numinoso. Exprimia, assim, o que fascinara Freud, sem que ele o compreendesse." Ulisses Capozoli |
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Atualizado em 10/10/2000 |
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