Explosões
Cósmicas de Raios Gama
João
Braga
Nos
últimos anos, graças principalmente aos dados obtidos
pelo Observatório Compton de Raios Gama (americano), pelo
satélite ítalo-holandês BeppoSAX e pela missão
Internacional HETE (High Energy Transient Explorer), grandes
avanços foram obtidos no nosso conhecimento sobre os enigmáticos
fenômenos conhecidos por "bursts" de raios
gama, ou explosões cósmicas de raios gama. A fenomenologia
desses misteriosos objetos e os desenvolvimentos teóricos
recentes que tentam explicá-los constituem um capítulo
fascinante da astrofísica moderna.
As
explosões cósmicas de raios gama são os fenômenos
que emitem a maior quantidade de energia por unidade de tempo no
universo. Uma única explosão, com uma duração
típica de alguns segundos, emite tanta energia em raios gama
quanto o Sol vai emitir durante toda a sua vida de 10 bilhões
de anos, em todas as faixas do espectro eletromagnético;
isso é comparável a transformar inteiramente a massa
do Sol em energia - de acordo com a famosa fórmula E = mc2
de Einstein - em algumas dezenas de segundos, ou emitir durante
esse período de tempo a mesma energia que a nossa Galáxia
inteira emite em 100 anos. O único evento cósmico
mais energético do que uma explosão dessas foi a própria
explosão inicial do universo, o Big Bang.
Desde
a sua descoberta no final da década de 60, pelos satélites
militares americanos da série Vela, que estavam monitorando
um tratado de proibição de testes nucleares no espaço,
as explosões de raios gama têm fascinado e intrigado
os astrofísicos. As razões para isso inicialmente
foram baseadas no fato das explosões ocorrerem aleatoriamente
em tempo e posição na esfera celeste, não sendo
identificadas com nenhuma distribuição conhecida de
objetos cósmicos. Além disso, não havia contrapartidas
em outros comprimentos de onda, ou seja, os bursts não eram
aparentemente acompanhados de outras emissões.
Com
o advento dos grandes observatórios espaciais, principalmente
o Compton Gamma-Ray Observatory (CGRO), lançado em
1991 e desativado em 2000, o mistério começou a ser
desvendado. Com o aumento significativo do número de explosões
detectadas (o experimento denominado ``Burst and Transient Source
Experiment'' - BATSE - a bordo do CGRO detectava aproximadamente
um burst por dia e detectou cerca de 3000 eventos), a distribuição
de explosões no céu mostrou-se isotrópica com
um alto grau de confiabilidade. Isso sugeriu fortemente uma origem
cosmológica e praticamente eliminou a possibilidade das explosões
serem fenômenos associados à acresção
episódica de matéria sobre estrelas de nêutrons
magnetizadas na nossa Galáxia, até então o
principal modelo proposto para explicar a energética e as
escalas de tempo envolvidas. Evidências de periodicidade da
ordem de segundos e de linhas espectrais em absorção
na faixa de raios-X duros corroboravam essa hipótese, já
que eram compatíveis com os períodos típicos
de rotação e valores de campo magnético de
estrelas de nêutrons.
Os
bursts observados pelo BATSE/CGRO não seguiam uma
distribuição Galáctica e nem mostravam linhas
nos seus espectros. As periodicidades também não foram
mais detectadas. Começou a ficar cada vez mais claro que
as explosões deveriam ser fenômenos de natureza cosmológica,
e portanto muito mais energéticas do que se supunha até
então. Uma distribuição estendida dentro do
halo ou ``coroa'' da Via Láctea também foi considerada.
No entanto, evidências a favor da hipótese cosmológica
foram se acumulando.
Os
bursts em geral apresentam um espectro, ou seja, a distribuição
de intensidade em função comprimento de onda da radiação
emitida, de natureza não-térmica. Isso significa que
a emissão não se dá simplesmente por causa
da presença de gás aquecido a temperaturas de dezenas
a centenas de milhões de graus, mas sim como conseqüência
de algum outro processo físico. As durações
das explosões apresentam um distribuição bimodal,
com aproximadamente um terço dos bursts concentrados em durações
menores de 2 segundos e o resto com duração maior
do que 2 s. As curvas de luz das explosões variam desde perfis
suaves, com subida rápida e decaimento quase exponencial,
até curvas complexas com vários picos.
A outra
grande revolução no estudo das explosões cósmicas
de raios gama ocorreu a partir de 1996 com os dados do satélite
italiano/holandês BeppoSAX, especialmente através
de sua Wide Field Câmera (Câmera de Campo Amplo),
que utiliza o princípio de máscara codificada para
produzir imagens de vastas regiões da esfera celeste na faixa
de raios-X. Esta missão obteve imagens de alta resolução
de um ``afterglow'' do burst GRB 970228 (os bursts são
nomeados de acordo com a data de ocorrência: 970228 significa
28 de fevereiro de 1997), seguidas de várias detecções
a uma taxa aproximada de 10 por ano. Os chamados afterglows são
emissões, em energias mais baixas, posteriores à explosão
de raios gama inicial. As observações do BeppoSAX
permitiram pela primeira vez a determinação de posição
dos bursts com precisão de ~1 minuto de arco, o que permitiu
a detecção e o acompanhamento dos afterglows
em raios-X, na faixa óptica (luz visível) e em ondas
de rádio. Isso propiciou a determinação de
distâncias a partir de medidas de redshifts (desvios
para o vermelho) e a identificação de galáxias
distantes nas posições de ocorrências das explosões.
Finalmente, foi confirmado que os bursts encontram-se definitivamente
a distâncias cosmológicas! Mais de 30 afterglows de
explosões já foram localizados, com detecções
algumas vezes estendendo-se para a faixa de rádio e ocorrendo
em escalas de tempo de meses. Pelos menos 25 dessas detecções
resultaram na identificação de galáxias hospedeiras
dos bursts. É interessante notar que, caso uma explosão
cósmica de raios gama típica ocorra dentro da nossa
Galáxia e a emissão esteja direcionada na nossa direção,
ela seria vista na Terra com um brilho semelhante ao do Sol. Aliás,
ela seria a nossa última visão, porque a radiação
gama aniquilaria toda e qualquer forma de vida na Terra!
Os
fluxos observados dos bursts, considerando-se suas distâncias
cosmológicas, requerem a liberação de energias
da ordem de uma massa de repouso do Sol sendo numa região
de tamanho da ordem de quilômetros, numa escala de tempo de
segundos. Isso implica na formação de uma "bola-de-fogo''
(fireball) expandindo-se relativisticamente. A dificuldade
com esse cenário é que uma expansão suave da
fireball converteria a maior parte de sua energia em energia cinética
de partículas aceleradas, ao invés de luminosidade,
e produziria um espectro quase-térmico. Acrescente-se a isso
que as escalas de tempo envolvidas não explicariam eventos
muito mais longos do que milissegundos. O problema foi resolvido
com a introdução de choques no modelo de fireball.
A idéia é que ondas de choque ocorrerão inevitavelmente
no fluxo em expansão após a fireball tornar-se transparente.
Essas ondas irão então re-converter a energia cinética
de expansão em radiação não-térmica
de partículas e radiação. As curvas de luz
complexas podem ser compreendidas em termos de choques internos
no próprio fluxo, causados por variações de
velocidade. Na medida em que a fireball continua a se expandir,
ela varre quantidades crescentes de matéria externa, composta
de gás interestelar e possivelmente gás previamente
ejetado pela estrela progenitora. Para uma distribuição
aproximadamente homogênea de material externo, a velocidade
dos elétrons na fireball e a intensidade do campo magnético
turbulento diminuem com o tempo e o espectro torna-se mais suave
(menos energético), possibilitando a emissão posterior
em rádio e no óptico. Espera-se que radiação
da explosão, inicialmente concentrada em raios gama durante
o surto, evolua progressivamente em afterglows em raios-X, UV, óptico,
IV e rádio. As observações e o estudo das explosões
cósmicas de raios gama e seus afterglows têm proporcionado
uma confirmação desse modelo genérico de fireball.
Mais recentemente, foram obtidas fortes evidências que o movimento
relativístico de matéria se dá na forma de
jatos com aberturas de poucos graus.
Os
progenitores dos bursts não foram ainda bem identificados.
O cenário mais plausível atualmente é o de
que as explosões ocorram em uma fração muito
pequena de estrelas, as quais passam por um evento catastrófico
de liberação de energia no final de suas vidas. Uma
classe de candidatos é constituída por estrelas massivas
em rotação rápida cujos colapsos dos caroços
centrais detonam um processo conhecido como hipernova. Uma hipernova
provavelmente gera um buraco negro circundado por um disco espesso
(um toróide). Outra classe de candidatos é constituída
por binárias ``estrela de nêutron-estrela de nêutron''
ou ``estrela de nêutron-buraco negro'', que perdem momento
angular via emissão de ondas gravitacionais e sofrem coalescência.
Acredita-se que os bursts longos (durações maiores
do que 2 segundos) são causados pelo primeiro mecanismo,
enquanto as explosões curtas são conseqüências
do segundo tipo de progenitor. Ambas as classes de objetos possivelmente
geram produtos finais que envolvem a formação de um
buraco negro de algumas massas solares, circundado por um toróide
temporário formado por fragmentos da explosão. Uma
súbita liberação de energia gravitacional,
em quantidade suficiente para alimentar uma explosão cósmica
de raios gama, ocorre quando o toróide é engolido
pelo buraco negro. O grande aquecimento por compressão e
a grande dissipação gerados pela acresção
produz uma fireball em expansão relativística. Essa
fireball pode ser substancialmente colimada caso o progenitor seja
uma estrela massiva na qual um envelope extenso em rotação
rápida propicie uma rota de escape natural ao longo do eixo
de rotação. Isso explicaria a ocorrência de
jatos de matéria nos quais ocorrem as emissões súbitas
de raios gama observadas na Terra. Se os modelos de emissão
em jatos estiverem corretos, só vemos as explosões
quando as emissões estão alinhadas na direção
da Terra. Estima-se que cerca de 1000 explosões de raios
gama ocorram por dia no universo, o que significa que cerca de 1000
buracos negros, no mínimo, nascem por dia em algum lugar
do universo!
Para
a maioria dos afterglows de bursts longos localizados até
o momento, galáxias hospedeiras foram localizadas. Essas
galáxias são tipicamente de baixa massa e possuem
cor azul, o que é compatível com a presença
de estrelas progenitoras jovens e massivas. Os redshifts das hospedeiras
são comparáveis aos redshifts dos objetos mais distantes
detectados no universo. Além disso, os bursts de redshifts
conhecidos são suficientemente luminosos para serem detectados,
em princípio, a distâncias muito maiores que as dos
quasares e galáxias conhecidos até o presente. Portanto,
a localização rápida de explosões de
raios gama pode ser extremamente importante para o estudo das condições
do gás pré-galáctico em épocas extremamente
remotas na história do universo.
Como
conclusão, podemos afirmar que o estudo das explosões
cósmicas de raios gama está atualmente numa fase extremamente
ativa e fascinante em virtude principalmente dos resultados obtidos
pelo BeppoSAX e HETE (esse com a participação
do INPE, em S. J. Campos, SP) ao longo dos últimos 6 anos.
O mistério da origem e da natureza dos enigmáticos
surtos em raios gama, que perdurou por quase duas décadas,
parece em grande parte resolvido, mas muitas e importantes questões
permanecem abertas. As novas missões espaciais e experimentos,
em especial Swift e EXIST, em construção ou
em fase de planejamento, certamente irão trazer novos ingredientes
para as receitas de modelos e respostas para as muitas questões
remanescentes, além de, como em qualquer campo da ciência
humana, gerar um número ainda maior de novas perguntas.
João Braga é pesquisador do Dvisão de Astrofísica
do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.
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