Reportagens






 
O mistério dos raios cósmicos com energias macroscópicas

Carlos Ourivio Escobar

" ...io no posso che restare fedele
alla stupenda monotonia del mistero."
Pier Paolo Pasolini, Diario.

Imagine uma lâmpada de apenas 5 watt, ligeiramente azulada, a vinte quilômetros de distância, percorrendo o céu com a velocidade da luz numa noite sem Lua, tendo como fundo a miríade de estrelas da Via Láctea. Enxergar uma luz tão fraca como esta é um dos desafios que um grupo de centenas de cientistas de 18 países estão enfrentando hoje na região semi-desértica da Pampa Amarela, na província de Mendoza ao sul da Argentina. A fraca luz é produzida por um fenômeno natural, ainda que raro, e ocorre sempre que raios cósmicos de altas energias colidem no topo da atmosfera provocando o chamado chuveito atmosférico extenso que consiste de bilhões de partículas secundárias as quais, ao percorrerem a atmosfera, produzem está fraca luminosidade. O que pretendem investigar esses cientistas usando esta técnica tão delicada e sensível? Qual seria o enigma científico que se revelaria de maneira tão sutil?

A comunidade internacional de raios cósmicos está hoje esperando ansiosamente que os primeiros dados do Observatório Pierre Auger sejam divulgados e que com eles um passo decisivo seja dado para desvendarmos o mistério dos raios cósmicos com energias macroscópicas. Embora tenham sido descobertos na segunda década do século XX, os raios cósmicos continuam a desafiar a compreensão de físicos e astrofísicos. Muito aprendemos desde então, sabendo hoje que o Universo está coalhado de verdadeiros aceleradores cósmicos que são capazes de acelerar prótons e núcleos atômicos até energias milhares de vezes superiores àquelas atingidas nos maiores aceleradores de partículas construídos pelo homem, tais como os hoje existentes no Fermi National Accelerator Laboratory (Fermilab), nos EUA, e no CERN, laboratório europeu.

Estes prótons e núcleos adquirem essas energias através de múltiplas colisões com imensas nuvens magnéticas que podem ser criadas nas ondas de choque resultantes de grandes explosões de supernovas, as quais ocorrem com uma frequência bastante elevada em uma galáxia comum como a nossa: cerca de uma explosão de supernova a cada 30 anos! Estes aceleradores cósmicos foram propostos por Enrico Fermi em 1949 e acredita-se sejam eles responsáveis pela grande maioria dos raios cósmicos que incidem incessantemente sobre a Terra. O grande mistério é que, no afã de investigar o espectro de energia dos raios cósmicos, os cientistas não cessam de se surpreender com o fato que a fronteira de altas energias está constantemente deslocando-se: nos anos 40, as energias observadas nos raios cósmicos atingiam valores até então inacessíveis aos aceleradores terrestres. Em 1962, John Linsley relatou, em um artigo publicado no Physical Review Letters, ter observado um evento com energia igual a 16 joule! Isto significa que uma única partícula sub-atômica, um próton, carrega uma energia equivalente, por exemplo à de uma bola de tênis no saque de um tenista profissional!

Hoje, 40 anos após a descoberta de Linsley, falecido no ano passado, temos acumulado um pouco mais de uma dezena de eventos com essas energias fabulosas. Qual a verdadeira razão para o deslumbramento dos cientistas com eventos desta magnitude? Uma visão ingênua da natureza poderia nos induzir à atitude de assumir que se algo não é proibido pelas leis da física, este algo compulsoriamente ocorrerá! Ora, não há , tanto que se saiba, nenhum princípio físico que proíba ou que imponha um limite máximo às energias atingidas em aceleradores. Bastaria conceber aceleradores com dimensões cada vez maiores ou então aceleradores com dimensões fixas mas campos magnéticos cada vez maiores para atingirmos energias inusitadas. Este é exatamente o princípio que norteia os projetos de aceleradores terrestres, construídos pelo ser humano: para uma dada tecnologia de imãs, para um dado valor de campo magnético, se quisermos atingir energias maiores só há uma alternativa: aumentar o tamanho do acelerador, aumentar seu raio, no caso do acelerador ser circular ou então seu comprimento, no caso de acelerador linear. Alternativamente, podemos fixar o seu tamanho e mudar os imãs que mantém os prótons em órbita no acelerador, enfrentando neste caso, uma barreira tecnológica que, para sua superação, requereu o desenvolvimento dos imãs supercondutores que hoje equipam os grandes aceleradores do Fermilab e CERN.

No cosmos, em objetos astronômicos, não suprendentemente, as mesmas opções existem: objetos como estrelas de neutrons são muito compactas, com raios de apenas dezenas de quilômetros e massas até duas vezes a massa do Sol e campos magnéticos enormes, atingindo até 10000 vezes o valor dos campos hoje alcançados nos laboratórios terrestres em imãs supercondutores; no outro extremo temos gigantescas rádio galáxias com dimensões até 100 vezes maiores que nossa Galáxia mas campos magnéticos apenas 10 vezes maiores que os nela encontrados. O balanço final deste jogo entre tamanho e poder magnético dos aceleradores cósmicos é que não conhecemos hoje locais no Universo onde essas partículas possam ser aceleradas até as energias macroscópicas que observamos! Conhecendo essas dificuldades, no início dos anos 60, um dos gigantes da física de raios cósmicos,Kenneth Greisen, professor na Universidade de Cornell, vindo da escola de Bruno Rossi,especulou sobre a eventualidade de uma energia limite no espectro da radiação cósmica. Poucos anos depois, em 1966, esta idéia ganharia força, não por argumentos de balanço de energia nos aceleradores cósmicos mas sim pela conjunção da descoberta de Linsley em 1962 com outra descoberta notável dois anos depois.

Não bastassem as dificuldades em fornecer energias macroscópicas para os raios cósmicos, um outro problema igualmente fascinante surge quando da propagação desta radiação da sua, ainda desconhecida, fonte até nós. Este problema, o segundo grande enigma das partículas com energias macroscópicas, deve-se ao fato que o Universo é permeado por um ruído de fundo constante, tal como o ruído de fundo produzido em um rádio mal sintonizado. Este ruído de fundo existe hoje na região de frequências de micro-ondas, é uniforme em qualquer direção que olhemos no Universo, e permeia toda sua extensão, tendo recebido o nome de Radiação Cósmica de Fundo (RCF), descoberta por Penzias e Wilson do Bell Labs em 1964. Greisen e, independentemente, na antiga União Soviética, Zatsepin e Kuzmin, deram-se conta que a partícula detectada por Linsley jamais poderia ter alcançado a Terra caso fosse produzida a distâncias cosmológicas.

O argumento é simples e elegante, usando efeitos da relatividade especial de Einstein. Prótons com energias tão elevadas como a observada por Linsley, possuem uma velocidade tão próxima à da luz que enxergam a RCF com frequência tão elevada que seu espectro é deslocado da região de microondas (4000 Mhz ) para a região de raios gamas, ou seja, uma luz capaz de fragmentar os prótons, subtraindo-lhes energia. Greisen, Zatsepin e Kuzmin (GZK) mostraram que não deveriam chegar até nós raios cósmicos com energias maiores que 8 joule, caso os mesmos sejam produzidos em cataclismas cósmicos que ocorreram a distâncias cosmológicas de nós, hipótese bastante plausível em vista das dificuldades de aceleração em aceleradores astrofísicos convencionais, tais como ondas de choque em explosões de supernovas.

Aí estão, portanto, apresentados os dois grandes enigmas dos raios cósmicos com energias macroscópicas: não existem perto da Terra fontes com potência e mecanismos eficazes para acelerar partículas a energias tão grandes e, por outro lado, se essas fontes ocorreram no universo primordial, no seu passado mais remoto, as partículas por elas jogadas no Universo não poderiam chegar até nós sem sofrerem considerável degradação de energia, deixando sem explicação os cerca de 10 eventos até hoje acumulados de raios cósmicos com energias macroscópicas, superiores a 10 joule!

Este é o enigma que o Observatório Pierre Auger pretende elucidar, colhendo uma quantidade de eventos sem precedentes, graças ao seu tamanho, sua precisão na determinação das energias dos eventos e sua capacidade de determinar a direção no céu de onde vieram essas partículas. A natureza ama esconder-se e cabe aos seres humanos
desenvolverem as ferramentas e métodos de análise que nos permitam desvendar esses segredos.

Para ler mais:
L'enigme des "Zetta-Machines", M. Boratav e P. Peter, La Recherche, num. 281, pg. 62, novembro de 1995.
"Cosmic Rays Mysteries", J. Lloyd-Evans e A. A. Watson, Physics World, Setembro de 1996, pg. 47.

Carlos Ourivio Escobar é professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp.

 
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Atualizado em 10/05/2003
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