Neutrinos
do cosmo
Marcelo
Guzzo
1.
Neutrinos Atmosféricos
A interação de raios cósmicos que atingem o
alto da atmosfera terrestre produz grandes quantidades de partículas
elementares conhecidas como pions ou mésons-pi. Esses pions
são partículas instáveis e desintegram-se em
frações de segundo após terem sido produzidas,
criando partículas secundárias chamadas muons e seus
neutrinos, conhecidos, por isso mesmo, como neutrinos do muon. Os
muons, por sua vez, também são partículas instáveis
que desintegram-se formando um terceiro conjunto de partículas
elementares: os elétrons, os neutrinos do elétron
e mais um neutrino do muon. Os neutrinos produzidos nessa seqüência
de decaimentos são chamados neutrinos atmosféricos.
Observando-se a seqüência de decaimentos descrita acima,
espera-se que para cada dois neutrinos do muon, somente um neutrino
do elétron seja observado. Vários detectores têm
investigado os neutrinos atmosféricos. Dentre eles o detector
SuperKamiokande registrou, em 1998, dados muito precisos que revelaram
um comportamento bastante surpreendente sobre os neutrinos atmosféricos.
Observou-se que a relação entre o número de
neutrinos do muon e neutrinos do elétron varia segundo o
ângulo de chegada do neutrino ao detector. Mais especificamente,
os neutrinos que vêm de cima para baixo, ou seja, aqueles
criados no alto da atmosfera que se localiza acima das nossas cabeças,
respeitam essa relação esperada de 2 para 1 entre
o número de neutrinos do muon e neutrinos do elétron.
Essa relação vai se modificando a medida em que os
neutrinos atmosféricos vão chegando ao detector vindo
de regiões mais próximas do horizonte. Essa tendência
se acentua ainda mais para os neutrinos que vêm de regiões
que se situam abaixo da linha do horizonte, a ponto que, ao se chegar
à situação na qual os neutrinos atmosféricos
estão vindo de baixo para cima, essa relação
entre o número de neutrinos do muon e neutrinos do elétron
se torna 1 para 1. Ou seja, para cada neutrino do muon encontrado
no detector de SuperKamiokande, um outro neutrino do elétron
também é encontrado.
O que
isso pode nos dizer? Neutrinos que vêm de cima para baixo
são criados no alto da atmosfera a uma altitude que varia
de 10 a 20 km. Neutrinos que vêm de baixo para cima, ao contrário,
são criados na atmosfera que se situa do outro lado do planeta.
Atravessam toda a Terra sem interagir com praticamente nenhum dos
seus átomos antes de aparecerem sob nossos pés, nos
atravessarem e seguirem seu caminho para o céu. Este ponto
da atmosfera que se situa do outro lado do planeta se encontra a
cerca de 12.000 km de distância, isto é, o tamanho
do diâmetro da Terra.
Aquela
relação do número de neutrinos do muon e neutrinos
do elétron que diminui a medida que passamos de neutrinos
que vêm de cima para baixo para neutrinos que vêm de
baixo para cima, pode ser explicada pelo fenômeno quântico
conhecido por Oscilações de Sabor. Este fenômeno
permite que neutrinos do muon se convertam em neutrinos de outro
tipo (provavelmente neutrinos que não são do tipo
- ou sabor - eletrônico). E depende da distância na
qual o detector se encontra do ponto onde os neutrinos são
criados. Assim, podemos explicar as diferentes medidas entre os
neutrinos que vêm de cima para baixo e aqueles que vêm
de baixo para cima, porque os primeiros não tiveram tempo
de oscilar, enquanto os últimos tiveram que percorrer uma
distância muito maior para chegar até nós, tendo
sofrido, portanto, mais Oscilação de Sabor.
Mas
os neutrinos atmosféricos não são a única
fonte de neutrinos que sugere que essas partículas apresentem
o fenômeno de Oscilação de Sabor. Há
também os neutrinos solares.
2.
Neutrinos solares
Centenas de trilhões de neutrinos produzidos no Sol nos
atingem a cada segundo. Essas partículas neutras - que interagem
muito pouco com a matéria e que devem ter massa muito pequena
- nos atingem seja de dia, seja de noite, depois de atravessarem
toda a Terra.
Neutrinos
são gerados continuamente em reações nucleares
dentro do Sol. De fato, o Sol pode ser entendido como um imenso
reator nuclear onde a 'queima' de hidrogênio, o combustível
das estrelas, ocorre em abundância. Queimar hidrogênio,
no caso, é uma forma simplificada de descrever a chamada
fusão nuclear desse elemento, em que quatro átomos
de hidrogênio (1H), ao se fundirem devido a altíssimas
pressões e temperaturas no interior da estrela, geram um
átomo de hélio (4He), dois pósitrons
(e+), dois neutrinos do elétron (),
bem como 28 milhões de elétrons-volt de energia, liberados
em forma de luz e calor.
Quanto
maior a massa de uma estrela, mais neutrinos são gerados.
Só em nossa galáxia, há cerca de um bilhão
de estrelas, o que dá uma idéia da produção
de neutrinos a cada segundo, que deve ser somada aos criados desde
o início do universo. Não é um absurdo, portanto,
dizer que trilhões de neutrinos nos atravessam em um curto
intervalo de tempo. A sorte é que eles interagem muito pouco
com a matéria e não há conseqüências
desse imenso fluxo de partículas sobre a nossa saúde.
Desde
1970, Davis e seus colaboradores monitoram o fluxo de neutrinos
solares que atingem a Terra através do experimento chamado
Homestake, localizado numa mina profunda no estado da Dakota do
Sul (Estados Unidos) (veja mais clicando aqui).
No entanto, essa experiência só detectou cerca de um
terço do total previsto pelas teorias que explicam o funcionamento
do Sol. Essa diferença ficou conhecida como o problema do
neutrino solar. Por mais de uma década, esses dados permaneceram
sem nenhuma confirmação independente. Só em
1987, Koshiba e colaboradores tornaram público o resultado
de suas observações de neutrinos solares, usando o
experimento de Kamiokande (Japão) (veja mais clicando aqui).
O déficit observado por Davis foi confirmado por Koshiba.
O problema
do neutrino solar tornou-se então um ponto central nas discussões
sobre essa partícula elementar e sobre o funcionamento do
Sol e outros experimentos surgiram para investigá-lo. Dentre
eles, pode-se citar o experimento italiano GALLEX, construído
no Laboratori Nazionali del Gran Sasso, próximo a Roma e
o experimento SAGE (Soviet-American Gallium Experiment), construído
em Baksan, na Rússia. Estes dois detectores são do
tipo geoquímicos e, em meados da década de 1990, registraram
seus primeiros resultados que confirmaram o déficit de neutrinos
solares observados por Homestake, Kamiokande, Gallex e Sage.
Muitas
hipóteses foram levantadas para explicá-lo, mas só
em 2002 o experimento SNO (Sudbury Neutrino Observatory), no Canadá,
mostrou que o déficit de neutrinos solares se devia a um
processo chamado conversão de sabor, no qual um neutrino
criado no Sol se transforma em outro tipo de neutrino que não
era detectado nos experimentos de Homestake e Kamiokande.
Mais
recentemente o experimento de KamLAND, no Japão, que detecta
anti-neutrinos produzidos em cerca de 20 reatores nucleares distribuídos
a distâncias que variam de 80 a 350 km do detector, detectaram
um déficit de eventos em relação ao que era
esperado. Tal resultado só pode ser interpretado assumindo-se
que os neutrinos solares também sofrem o processo quântico
conhecido por Oscilação de Sabores. E este fenômeno
explica também o déficit de neutrinos solares observados
nos experimentos mencionados anteriormente. Isso sugere um quadro
consistente que sugere fortemente que os neutrinos sejam partículas
elementares que possuem massa, uma vez que é condição
necessária para a existência do fenômeno das
Oscilações de Sabor, a existência de massa dos
neutrinos.
Embora
tenhamos fortes evidências que os neutrinos oscilem e conseqüentemente,
como já dissemos anteriormente, tenham massa, não
podemos afirmar ainda qual é o valor dessa massa. Isso porque
o fenômeno de oscilação não é
sensível ao valor da massa do neutrino, mas somente à
diferença dos quadrados das massas dos tipos de neutrinos
envolvidos na oscilação.
Assim,
temos avançado consideravelmente no conhecimento que temos
dos neutrinos. Entretanto, este é ainda um campo onde muito
temos que aprender. Isso tem sido feito através de uma cooperação
estreita entre os físicos experimentais, que constróem
experimentos incríveis e os físicos teóricos
que hipotetizam idéias e conceitos que são ou não
verificados nos experimentos.
Marcelo
Guzzo é professor do Instituto de Física Gleb Wataghin,
da Unicamp.
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