Células-Tronco
e Câncer: vida e morte com uma origem comum?
Flávio
Henrique Paraguassú-Braga
e Adriana Bonomo
As
células-tronco estão presentes desde a vida embrionária
até a vida adulta, e provavelmente até nossa morte.
São elas as responsáveis pela formação
do embrião e também pela manutenção
dos tecidos na vida adulta. No início da vida embrionária,
as células-tronco são virtualmente totipotentes, ou
seja, apresentam capacidade de gerar quaisquer tecidos do organismo.
Contudo, após a formação do embrião
propriamente dito, diversos tecidos mantêm células-tronco
que participam da fisiologia normal (e da patologia também)
na vida adulta.
Conceitualmente,
as células-tronco apresentam duas características
fundamentais: 1) auto-renovação ilimitada, por exemplo,
a capacidade de multiplicar-se gerando células iguais à
célula-original durante toda a vida, e ; 2) pluripotência,
como, por exemplo, a capacidade de gerar diferentes tipos celulares.
Apesar
de existirem em baixa freqüência, seus números
são suficientes para manter os tecidos que necessitam de
renovação constante. Em alguns sistemas onde são
bem caracterizadas, sua freqüência é estimada
em 1 para cada 100.000 células totais daquele tecido. As
células-tronco, à medida que se dividem, geram progenitores
comprometidos, com uma capacidade de proliferação
ainda mais limitada e um restrito potencial de diferenciação
devido ao comprometimento com uma linhagem celular única.
A partir deste ponto, esta célula já comprometida
chamada precursor, já possui morfologia definida e seu potencial
proliferativo é limitado ou mesmo nulo.
As
células-tronco mais bem conhecidas, são as células-tronco
do tecido hematopoiético, identificadas por Till e McCulock
há mais de 40 anos. Recentemente, outros tecidos tiveram
suas células-tronco identificadas como do sistema nervoso,
fígado, pele e mucosas, intestinos e até mesmo coração.
Figura
1. Hematopoiese
O tecido
hematopoiético se desenvolve na vida adulta de maneira hierarquizada.
A Célula Tronco Hematopoiética (CTH) é multipotente
e imortal, ou seja, apresenta potencial para diferenciar-se em qualquer
célula hematopoiética e pode ao longo prazo gerar
outras células-tronco. As CTH originam as Células
Progenitoras Hematopoiéticas (CPrH), que são células
determinadas às diferentes linhagens hematopoiéticas,
com alto potencial e taxa de proliferação. Essas por
sua vez originam as Células Precursoras Hematopoiéticas
(CPH) e Células Maduras (CM) do sangue e de outros órgãos,
sendo totalmente diferenciadas morfo e funcionalmente.
No
sistema hematopoiético, o papel das células-tronco
é muito claro. Por hora, produzimos 1-5x109 células
vermelhas e 1-5x109 células brancas. A produção
desses tipos celulares, os três principais dentre outros elementos
celulares do sangue, é constante e necessária já
que a meia vida das células sanguíneas é muito
curta, sendo em alguns casos da ordem de horas. A homeostasia do
tecido sanguíneo é rigidamente regulada e qualquer
alteração nessa dinâmica entre morte e produção
celular resulta em algum processo patológico. Por exemplo,
quando não há produção de células
novas ou há morte em excesso de células diferenciadas,
temos aplasias ou anemias. Por outro lado, quando temos uma produção
exacerbada de novas células ou uma resistência maior
de células diferenciadas à morte, temos neoplasias
ou cânceres. Esses desequilíbrios também ocorrem
em tecidos de outra origem como tecido nervoso, conjuntivos (osso,
cartilagem) e tecidos epidermais (pele, intestinos, estômago,
e glândulas).
Câncer: "desdiferenciação" ou doença
da célula-tronco?
Classicamente, aprendemos que um câncer é uma célula
imortal, ou que é uma célula que apresenta características
embrionárias pois, como muitos tecidos embrionários,
é uma célula que não apresenta um estado de
diferenciação claro e, ao mesmo tempo, apresenta uma
notória capacidade de proliferação. Esse conceito
evoluiu para "o câncer é uma célula incapaz
de diferenciar-se" refletindo o antigo conceito de células
com características embrionárias no indivíduo
adulto.
Atualmente,
o conceito de um câncer como uma doença de células
que não se diferenciaram ou que perderam seus mecanismos
de controle de proliferação evoluiu para "o câncer
é uma doença da célula-tronco".
Inicialmente,
aprendemos que um câncer tem uma capacidade de proliferação
ilimitada. Contudo, o que parece é que um tumor, seja um
tumor sólido, seja uma leucemia (câncer das células
do sangue), se comporta como uma unidade tecidual, com uma dinâmica
de renovação que envolve proliferação
e morte de uma população celular heterogênea.
Esta heterogeneidade aparece principalmente em relação
ao potencial proliferativo dessa população.
Leucemias:
um modelo enriquecedor
Se pensarmos numa leucemia da maneira clássica descrita no
item anterior, na qual todas as células são capazes
de proliferação ilimitada, qualquer célula
purificada de uma população de células leucêmicas
seria capaz de proliferar indefinidamente tanto in vitro quanto
in vivo. A partir da década de 60, pesquisadores como Bruce
e Gaag, Wodinsky, entre outros, e posteriormente Park e seus colaboradors
no início dos anos 70, apresentaram as primeiras evidências
de que isso não era verdade. Esses últimos evidenciaram
que apenas 1 a 4% de células leucêmicas de camundongos
eram capazes de formar colônias1
quando transferidas para outro animal geneticamente idêntico.
Figura
2. A origem da célula tronco leucêmica (CTL)
Uma
determinada leucemia pode ser vista como um tecido hematopoiético
anormal iniciada por CTLs que sofrem uma desenvolvimento aberrante
e pouco controlado. As CTLs podem ser CTHs que se tornaram leucêmicas
como resultado de alterações acumuladas (1) ou progenitores
mais comprometidos que readquiriram capacidade de autorenovação
da célula tronco (2).
Mais
recentemente, isso foi demonstrado para leucemias humanas, por Blair
e colaboradores e Bonnet e Dick. Utilizando camundongos imunodeficientes
(animais desprovidos de sistema imune e portanto incapazes de rejeitar
quaisquer células), mostraram que apenas uma fração
de células leucêmicas de leucemia mielóide aguda
(LMA) era capaz de gerar doença (por exemplo, proliferar).
Essa população correspondia à fração
com características de células-tronco, similares às
células-tronco hematopoiéticas2.
Mais do que isso, mostraram que as outras populações,
que não apresentam as características da célula-tronco,
não eram capazes de gerar a doença e que a freqüência
das células capazes de gerar doença era extremamente
baixa, variando de 0,2 a 1% da população total de
células doentes.
Muitas
leucemias, e alguns tumores sólidos também, apresentam
anormalidades genéticas que, por sua vez, caracterizam a
patologia ou, por outras vezes, correlacionam com o prognóstico
da doença. De qualquer forma, tais anormalidades nos gens,
que envolvem deleções ou translocações
de cromossomos ou suas partes servem para identificar essas células
tumorais e talvez sua origem. Ainda na leucemia mielóide
aguda (LMA), a anormalidade cromossômica mais comum é
a translocação de parte do cromossomo 8 que se justapõe
ao cromossomo 21, identificado como um transcrito quimérico
chamado AML1-ETO. Em pacientes em remissão da LMA, o transcrito
AML1-ETO, pode ser encontrado nas células-tronco hematopoéticas
normais, e as mesmas células quando isoladas são capazes
de gerar células sanguíneas normais, assim como não
foram capazes de gerar leucemia. O que indica que a translocação
ocorreu nas células-tronco, mas alguma ou algumas alterações
a posteriori foram necessárias para a transformação
maligna. Isto é verdade em outros tipos de leucemias, como
na leucemia mielóide crônica, onde um produto de translocação
gênica (específico dessa leucemia) aparece não
só nas células leucêmicas, mas também
em células hematopoiéticas normais e também
em outros tipos celulares como no endotélio. Este último
tem a mesma origem embriológica que as células do
sangue, indicando que a translocação ocorreu numa
célula tronco embrionária, que originou tanto o tecido
hematopoiético que se malignizou quanto os vasos sanguíneos,
que são normais.
Figura
3
A manutenção
de um tecido tumoral baseado em uma célula tronco tumoral
leva a complicações biológicas no curso da
doença. A maioria dos métodos de tratamento quimioterápicos
têm como alvo células em proliferação
(células vermelhas). As células tronco (células
azuis) são pouco freqüentes e quiescentes portanto resistentes
a esses tratamentos. A longo prazo elas voltam a compor um novo
tecido tumoral (1). Baseados nos estudos da biologia da célula
tronco, a diferenciação das células tronco
tumoral, a tornaria sensível à quimioterapia (2).
O mesmo aconteceria ao estimular a proliferação da
célula tronco tumoral (células verdes - 3).
Acredita-se
que a transformação maligna se dá pelo acúmulo
de mutações, que podem ser acompanhadas ou não
de aberrações cariotípicas (anomalias genéticas
citadas acima). A probabilidade das alterações ocorrerem
se relaciona ao potencial proliferativo da população
em questão. Por isso, essa transformação maligna
pode não ocorrer na célula-tronco, que é uma
célula com freqüência quiescente, mas pode ocorrer
em seus progenitores, que são células que passam por
vários ciclos de divisão para expansão da população
periférica. De fato, podemos até propor que a baixa
freqüência das células tronco adultas somado a
sua quiescência a protegem de mecanismos de transformação
maligna.
Câncer
de mama
Assim como o tecido hematopoiético, o tecido mamário
possui células-tronco capazes de gerar diversos tipos celulares.
Se
nos lembrarmos da função da mama, que é a produção
de leite durante o período de gestação e lactação,
podemos dizer que a mama por excelência é um tecido
displásico. Responde à gestação com
hipertrofia, proliferação e especialização
de células epiteliais que produzem leite, regredindo após
a lactação. O tecido mamário é notoriamente
formado pelo desenvolvimento de ramificações, botões
mioepiteliais que adentram o tecido adiposo subjacente quando em
desenvolvimento. Ao final das terminações existe um
sítio com células tidas como células-tronco
da mama: as mesmas geram células progenitoras, que dão
origem a uma camada externa, mioepitelial, e outra população
que forma uma camada interna, que se diferenciam para formar a luz
do tubo em desenvolvimento.
Analogamente
às leucemias, o câncer de mama parece depender de uma
célula-tronco para se manter, porém um modelo baseado
em células-tronco para câncer de mama surgiu apenas
no ano passado .
De
maneira similar ao realizado com as leucemias do sistema hematopoiético,
Al-Hajj e colaboradores separaram diversas subpopulações
de células de câncer de mama em função
da presença de marcadores moleculares específicos
e injetaram em camundongos imuno-incompetentes. Das várias
subpopulações, apenas uma foi capaz de gerar tumores
nesses camundongos, com toda a heterogeneidade celular presente
na população original. Esses dados mostram que também,
neste caso, há uma célula-tronco cancerosa, e que
apenas esta é tumorigênica.
Implicações
A pesquisa e caracterização de células-tronco
tumorais é crucial no entendimento do câncer enquanto
doença. Muitas das informações que obtemos
e derivamos para o diagnóstico, prognóstico e tratamento
dessa patologia deriva de populações heterogêneas,
com diferentes graus de maturação. Cada vez mais temos
a noção de que o câncer é um tecido ou
uma unidade tecidual, que se desenvolve com suas próprias
células-tronco, assumindo um crescimento que não corresponde
ao padrão do organismo. Neste momento, cada vez mais se torna
urgente a caracterização das células-tronco
tumorais para otimização das metodologias de diagnóstico
e avaliação de prognóstico. Um melhor ou pior
prognóstico está relacionado à freqüência
de células-tronco em um tumor. A conseqüência
direta é a necessidade do desenvolvimento de estratégias
terapêuticas que consigam atuar sobre as células-tronco,
e não apenas sobre as células com alto potencial proliferativo,
porém com baixa capacidade de autorenovação.
Essas estratégias deverão considerar a especificidade
dos marcadores das células-tronco, sua baixa freqüência
e baixa taxa de proliferação que a torna resistente
aos quimioterápicos ciclo-dependentes. Quem sabe, num futuro
próximo, novas formas de regular o crescimento e manutenção
da célula-tronco, estarão disponíveis para
o tratamento das doenças malignas.
Referências:
1.
A formação de colônias se refere à capacidade
proliferativa das células, sendo somente formada por células
com alto potencial proliferativo. [voltar]
2. As células tronco hematopiéticas
são bem caracterizadas quanto às moléculas
que expressam em sua superfície. Estas características,
que chamamos de fenótipo, permitem que sejam identificadas
e purificadas a partir de uma população heterogênea.
[voltar]
Flávio
Henrique Paraguassú-Braga, trabalha no Banco de Sangue de
Cordão Umbilical e Placentário do Instituto Nacional
de Câncer, do Rio de Janeiro. Adriana Bonomo é pesquisadora
da Divisão de Medicina Experimental do CPQ do mesmo instituto
e é também professora do Instituto de Microbiologia,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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