Célula-tronco
é promessa para medicina do futuro*
Antonio
Carlos Campos de Carvalho
O ano
de 2004 está apenas começando, mas o estudo e a utilização
de células-tronco continuam sendo uma das grandes polêmicas
no campo da bioética. Desde que o fisiologista alemão
Theodor Schwann lançou, em 1839, as bases da teoria celular,
pesquisadores de todo o mundo sentiram-se instigados com a possibilidade
de gerar um organismo adulto completo a partir de apenas uma célula.
Pesquisas com células-tronco avançam na busca de tratamentos
para muitas doenças que afetam milhões de pessoas,
mas o entendimento sobre os detalhes de como um organismo completo,
com inúmeros tipos diferentes de células, forma-se
a partir de apenas uma célula, já data do início
do século 20. Foi nesse período que vários
embriologistas, entre eles os alemães Hans Spermann e Jacques
Loeb começaram a decifrar os segredos das células-tronco
por meio de experimentos com células de embriões.
As
pesquisas de Spermann e Loeb mostraram que quando as duas primeiras
células de um embrião de anfíbio são
separadas, cada uma é capaz de gerar um girino normal, e
que, mesmo após as quatro primeiras divisões celulares
de um embrião de anfíbio, o núcleo dessas células
embrionárias ainda pode transmitir todas as informações
necessárias à formação de girinos completos.
Em 1996, o nascimento da ovelha Dolly, primeiro mamífero
clonado a partir do núcleo de uma célula adulta diferenciada,
trouxe a resposta sobre a possibilidade de um núcleo de uma
célula totalmente diferenciada ser capaz de gerar um indivíduo
adulto normal. Foi a primeira demonstração de que
a vida animal poderia surgir de outra forma, a partir do núcleo
de uma única célula do corpo de um indivíduo
adulto.
Todo
organismo pluricelular é composto por diferentes tipos de
células. Todos os 200 tipos celulares distintos encontrados
entre as cerca de 75 trilhões de células existentes
em um homem adulto, derivam das células precursoras denominadas
células-tronco, também denominadas células-mãe.
São células mestras que têm a capacidade de
se transformar em outros tipos de células, incluindo as do
cérebro, coração, ossos, músculos e
pele. O processo de geração das células especializadas
- do sangue, dos ossos, dos músculos, do sistema nervoso
e dos outros órgãos e tecidos humanos - é controlado
pelo genes específicos na célula-tronco, mas os pesquisadores
ainda não dominam todos os fatores envolvidos no processo.
Compreender e controlar esse processo é um dos grandes desafios
da ciência na atualidade.
É
fundamental que as pesquisas com células-tronco embrionárias
e adultas continuem a ser feitas para que possamos ter respostas
para perguntas como: qual o melhor tipo de célula-tronco
para ser usada em cada doença degenerativa? qual a melhor
via de introdução dessas células? por quanto
tempo duram os efeitos benéficos das terapias com células-tronco?
será necessário e possível repetir-se os procedimentos
de injeção de células-tronco no mesmo paciente?
Ter uma legislação permitindo o uso de células-tronco
embrionárias humanas em pesquisa é de fundamental
importância.
Pesquisas
recentes mostraram que células-tronco apresentam duas características
básicas: são indiferenciadas e têm a capacidade
de gerar não só novas células-tronco como também
grande variedade de células de diferentes funções.
Para realizar esta dupla tarefa (replicação e diferenciação),
a célula-tronco pode seguir dois modelos básicos de
divisão: o determinístico, no qual sua divisão
gera sempre uma nova célula-tronco e uma diferenciada, ou
aleatório (ou estocástico), no qual algumas células-tronco
geram somente novas células-tronco e outras geram apenas
células diferenciadas.
Existem
diferentes tipos de células-tronco, mas a diferença
básica está na existência de células-tronco
embrionárias e células precursoras do organismo já
desenvolvido, chamadas células-tronco adultas. Estas últimas
recebem também a denominação pós-natal
por alguns cientistas, por estarem presentes em recém-nascidos
e no cordão umbilical.
Células-tronco
embrionárias
Em 1998 a equipe do biólogo James Thomson, na Universidade
de Wisconsin (instituição que detém a maioria
das patentes sobre linhagens de células-tronco humanas nos
Estados Unidos) tornou o sonho biotecnológico um pouco mais
real, quando conseguiu isolar as primeiras células-tronco
de embriões humanos. No mesmo ano, também foram isoladas
células embrionárias germinativas humanas, derivadas
das células reprodutivas primordiais de fetos, pelo embriologista
John Geahart, da Universidade Johns Hopkins (EUA). Como as ES, as
EG também são pluripotentes, ou seja, podem gerar
qualquer célula do organismo adulto. A disponibilidade de
células ES e EG humanas abriu horizontes impensáveis
para a medicina, mas também trouxe complexos problemas ético-religiosos.
As
células-tronco embrionárias têm a capacidade
de se transformar em praticamente qualquer célula do corpo,
com exceção da placenta, e são encontradas
somente nos embriões. É essa capacidade que permite
que um embrião se transforme em um organismo pluricelular
formado. Cerca de cinco dias após a fertilização,
o embrião humano se torna um blastocisto - uma esfera com
aproximadamente 100 células. As encontradas em sua camada
externa vão formar a placenta e outros órgãos
necessários ao desenvolvimento fetal do útero. Já
as existentes em seu interior, células-tronco embrionárias,
formam quase todos os tecidos do corpo. Apesar de estudadas desde
o século 19, há apenas 20 anos pesquisadores conseguiram
cultivar em laboratório células retiradas da massa
celular interna de blastocistos de camundongos. Essas células
conhecidas como ES podem se proliferar indefinidamente in vitro
sem se diferenciar, mas também podem se diferenciar se forem
modificadas as condições de cultivo. A grande conquista
dos cientistas foi encontrar as condições adequadas
para que as células ES proliferem e continuem indiferenciadas.
Outra
característica especial dessas células é que,
quando reintroduzidas em embriões de camundongo, dão
origem a células de todos os tecidos de um animal adulto,
mesmo as germinativas (óvulos e espermatozóides).
Apenas uma célula ES, no entanto, não é capaz
de gerar um embrião. Isso significa que tais células
não são totipotentes, como o óvulo fertilizado.
O fato das células ES reintroduzidas em embriões de
camundongo gerarem tipos celulares integrantes de todos os tecidos
do animal adulto revela que elas têm potencial para se diferenciar
também in vitro em qualquer desses tipos, de uma célula
da pele a um neurônio. Vários laboratórios já
conseguiram a diferencição de células ES de
camundongos, em cultura, em tipos tão distintos quanto as
células hematopoiéticas (precursoras das células
sangüíneas) e as do sistema nervoso (neurônios,
por exemplo), entre outras. A capacidade de direcionar esse processo
de diferenciação permitiria que, a partir de células-tronco
embrionárias, fossem cultivados controladamente os mais diferentes
tipos celulares, abrindo a possibilidade de construir tecidos e
órgãos in vitro, na placa de cultura, tornando viável
a chamada bioengenharia.
O potencial terapêutico das células-tronco não
pode e nem deve ser desprezado. O não benefício da
utilização das células-tronco sempre existe,
mas é preciso distingui-lo do malefício. Este sim
seria um problema. Os testes clínicos realizados no mundo
até o momento tiveram como objetivo principal afastar a possibilidade
de malefícios. Até por este motivo não se realizaram
ainda testes clínicos com as células-tronco embrionárias,
pois ainda não há segurança de que se injetadas
em pacientes no seu estado indiferenciado elas não possam
levar ao surgimento de tumores.
Células-tronco
adultas
Em 1998, a equipe italiana liderada pela bióloga Giuliana
Ferrari, do Instituto San Rafaelle-Tellethon, apresentou o primeiro
relatório sobre as propriedades das células-tronco
adultas. Os pesquisadores estabeleceram que células-tronco
de medula óssea podem dar origem a células musculares
esqueléticas e podem migrar da medula para regiões
lesadas no músculo. Estudos recentes constataram que além
da pele, do intestino e da medula óssea, outros tecidos e
órgãos humanos - fígado, pâncreas, músculos
esqueléticos (associados ao sistema locomotor), tecido adiposo
e sistema nervoso - têm um estoque de células-tronco
e uma capacidade limitada de regeneração após
lesões.
Mais
recente ainda é a idéia de que essas células-tronco
adultas são não apenas multipotentes (capazes de gerar
os tipos celulares que compõem o tecido ou órgão
específico onde estão situadas), mas também
pluripotentes (podem gerar células de outros órgãos
e tecidos). A pluripontecialidade foi demonstrada pela equipe de
cientistas liderados pelos neurobiólogos Christopher Bjornson,
da Universidade de Washington, Seattle, USA e Angelo Vescovi, do
Instituto Nacional Neurológico de Milão, Itália,
em janeiro de 1999. Os pesquisadores demonstraram que uma célula-tronco
adulta derivada de um tecido altamente diferenciado e com limitada
capacidade de proliferação pode seguir um programa
de diferenciação totalmente diverso se colocada em
um ambiente adequado. Também deixou claro que o potencial
de diferenciação das células-tronco adultas
não é limitado por sua origem embriológica:
células neurais têm origem no ectoderma e células
sangüíneas vêm do mesoderma embrionário.
Essa pluripotencialidade das células-tronco adultas elimina
não só as questões ético-religiosas,
envolvidas no emprego das células-tronco embrionárias,
mas também os problemas de rejeição imunológica,
já que células-tronco do próprio paciente adulto
podem ser usadas para regenerar seus tecidos ou órgãos
lesados. Infelizmente, a pluripotencialidade das células-tronco
adultas tem sido contestada por estudos desenvolvidos em diversos
laboratórios, tornando ainda mais necessário que os
cientistas possam investigar o uso de células-tronco embrionárias
humanas nas terapias celulares, comparando-as com as células-tronco
adultas.
Gostaria
de enfatizar que as células-tronco autólogas (do próprio
indivíduo) de qualquer fonte não curam as doenças,
pois não corrigem as causas da doença seja ela infecciosa,
ambiental ou genética. Elas permitem que se regenere os orgãos
afetados, mas se a causa da doença não for removida,
o orgão será novamente lesado. Sendo assim, é
importante que se possa conjugar as terapias celulares com a gênica,
por exemplo, na cura de doenças de origem genética.
Isto requer a manipulação genética das células-tronco
do indivíduo para corrigir o defeito genético antes
de injetá-las no paciente. Se a doença for de causa
infecciosa ou ambiental é preciso que além da terapia
celular se remova o agente infeccioso ou ambiental causador da doença.
Existe
a possibilidade da utilização de células-tronco
heterólogas (de indivíduos diferentes do receptor)
mas ainda há muita discussão a respeito de problemas
de rejeição imunológica com estas células.
Aqui novamente há ainda necessidade de muita pesquisa.
Antonio
Carlos Campos de Carvalho é professor de fisiologia e biofísica
da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos responsáveis
pelo Instituto de Bioengenharia Tecidual do Instituto do Milênio.
* Adaptação
por Margareth Franco, do artigo de Antonio Carlos Campos de Carvalho,
publicado originalmente na revista Ciência Hoje (SBPC), vol.
29, n. 172, junho de 2001, com autorização, revisão
e atualização do autor.
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