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Células-tronco desafiam a mídia

As pesquisas sobre células-tronco não desafiam somente cientistas e religiosos, mas jornalistas também. Para as informações sobre esse tipo de pesquisa chegarem até as pessoas, os jornalistas precisam decifrar o complicado linguajar dos cientistas, driblar os interesses das empresas jornalísticas e farmacêuticas e tentar transpor a falta de consenso ético sobre as pesquisas com células-tronco.

Neste cenário, como veicular notícias sobre hipóteses, pesquisas e resultados sem grandes distorções? Este é um grande desafio. Por um lado, a mídia desempenha um papel importante na busca da sociedade por uma nova ética e advertindo sobre a necessidade de normas de biossegurança que a protejam no futuro. Por outro, ela deve mostrar as possibilidades abertas pelas novas tecnologias, apresentando para a sociedade, de forma equilibrada, que benefícios concretos a pesquisa pode trazer.

"Embora o veículo primário para a divulgação de informações médicas e a discussão de seus aspectos éticos sejam os journals e publicações especializadas, a mídia leiga também tem um papel a desempenhar. É ela que mais freqüentemente leva a informação à população em geral. E a discussão bioética não pode, evidentemente, ficar restrita aos cientistas. É a sociedade, por meio de suas instituições políticas, que deve definir se a clonagem terapêutica, por exemplo, será aceita" afirma o jornalista e editorialista do jornal Folha de S. Paulo, Hélio Schwartzman. "O cientista precisa, é claro, ser ouvido, mas a palavra final é da sociedade. É ela que sofre as conseqüências (positivas e negativas) de uma nova tecnologia, droga ou procedimento".

Cláudio Cohen, professor de bioética da Faculdade de Medicina da USP e presidente da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas da USP, diz que o papel educativo da imprensa poderia ser melhorado para auxiliar a sociedade a elaborar e aceitar os novos conceitos que a ciência proporciona e que trazem conflitos bioéticos. "Por exemplo, o novo conceito de morte (morte encefálica), o novo conceito de vida (células-tronco, clonagem), ou ainda a quem pertence a vida - ao indivíduo, à sociedade ou a Deus - quando se fala de aborto ou eutanásia. Esses conceitos são de difícil assimilação e ainda não existem valores plenamente normatizados ou universalizados aceitos, eles geram enormes conflitos entre os filósofos, os cientista, os religiosos e a sociedade", afirma Cohen "A imprensa precisa incentivar a discussão dos novos limites da vida que a ciência nos oferece".

Para ele, a mídia tem cumprido com seu papel informativo na área de saúde, mas o papel formativo pode ser melhorado aumentando o número de jornalistas especializados e melhorando a comunicação entre jornalistas e cientistas.

"Na questão das células-tronco a discussão bioética passa pelo conceito do indivíduo sobre o que é vida, isso vale também para o que fazer com os embriões congelados nos casos de inseminação artificial. A mídia tem se posicionado favoravelmente, e eu também, a respeito das pesquisas sobre as células-tronco. Porém, tem-se falado muito pouco sobre esse assunto e a sociedade como um todo ainda não tem uma noção a respeito do que venha a ser célula- tronco e o desenvolvimento desse tipo de terapêutica. Portanto, tem dificuldade de pensar eticamente sobre esse assunto. É mais fácil para um cidadão comum ter opinião própria sobre a guerra ou a pena de morte do que a respeito das conseqüências para a humanidade das pesquisas com células-tronco" afirma Cohen.

Na opinião da jornalista e fundadora do Movimento em Prol da Vida (Movitae), Andréa Bezerra de Albuquerque, a divulgação sobre pesquisas com células-tronco, pela mídia, é falha e sensacionalista. Em parte, ela responsabiliza a imprensa pela confusão que existe entre as clonagens reprodutiva e terapêutica. Segundo ela, o sensacionalismo da mídia deixa os cientistas receosos "Os cientistas contam com a divulgação, querem a veiculação, mas sabem que são muitos os erros que saem na mídia".

Apesar desses problemas, a paixão recíproca entre os cientistas e a mídia é bem conhecida e permeada de interesses. A corrida genética humana, iniciada na década de 1990, com seus megaprojetos executados pelos países ricos, é um bom exemplo da instrumentalização da mídia. Apesar dos resultados do seqüenciamento do genoma humano só terem sido publicados em 2001 pelas revistas Science e Nature, Bill Clinton e Tony Blair apressaram-se, em 2000, para divulgar que os cientistas de seus países conheciam o genoma humano, portanto, detinham o biopoder. Enquanto todos os jornais do mundo enchiam suas páginas com as afirmações de Blair e Clinton, poucos se dispuseram a esclarecer os riscos e benefícios desse novo conhecimento científico, além de não mostrarem os verdadeiros interesses das indústrias farmacêuticas desses mesmos países no desenvolvimento de novas - e, em geral, pouco acessíveis - biotecnologias.

Para Schwartzman, é difícil controlar esse tipo de situação. "O risco de instrumentalização da mídia existe e não está restrito ao campo da medicina. Vale para tudo. Mas a busca pela independência, que já é uma característica de parte da mídia, tende a contrabalançar um pouco esse perigo. Se um dos grandes jornais brasileiros descobrisse que seu repórter recebe 'por fora' dos laboratórios, não tenho dúvida de que esse seria um caso - e justo - de demissão sumária".

Albuquerque chama a atenção para a manipulação ideológica de informações científicas "Quando são citados os grupos religiosos e toda a polêmica sobre células-tronco, só é ouvida a igreja católica, que é contra. A única contra, diga-se de passagem. A Rede Globo é campeã nisso, nunca fala sobre o assunto, quando fala coloca um padre para dizer que é contra. Os judeus são a favor e nunca são ouvidos, assim como os umbadistas, espíritas, presbisterianos, budistas etc."

Ela se queixa da forma leviana com que os meios de comunicação tratam o assunto clonagem humana, impedindo que as pessoas tenham informações corretas sobre o assunto e saibam diferenciar a clonagem reprodutiva da terapêutica "Um fato clássico de sensacionalismo, que só serviu para atrapalhar nossa luta, foi o destaque para os raelianos (veja reportagem). Tudo isso contribui para um entendimento equivocado sobre o que é a pesquisa com células-tronco e todas suas possibilidades".

Apesar de toda a confusão, é a mídia que pode ajudar a sociedade a enxergar os potenciais e os perigos das pesquisas com células-tronco. Neste contexto, os meios de comunicação não são apenas instrumentos de divulgação de conhecimentos e ideologias sobre as novas biotecnologias, mas um agente de negociação entre os vários atores envolvidos. Resta à sociedade manter-se atenta, para que os economicamente mais fortes não usem os meios de comunição de acordo com seus interesses.

(JS)

 
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Atualizado em 10/02/2004
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