Em
meio à discussão ética, a pesquisa avança
em todo o mundo
Há
tempos a comunidade científica internacional discute o potencial
para a medicina, os riscos e os aspectos éticos de estudos
envolvendo células-tronco. Os que defendem a necessidade
de pesquisas com células-tronco embrionárias garantem
que elas podem representar grande esperança para o tratamento
de doenças como mal de Parkinson e diabetes. Entre os opositores
ao uso de embriões em pesquisas, há os que apontam
as células-tronco adultas como uma alternativa viável
e eticamente razoável para os mesmos fins. Ambas as vertentes
já deram resultados promissores, mas ainda há muito
a ser feito para que os testes feitos com cobaias de laboratório
possam gerar novos tratamentos em humanos.
Entre
os mais recentes resultados, uma equipe da Universidade de Toronto,
do Canadá, liderada por Duncan Stewart, apresentou no ano
passado, na Sessão Científica da American Heart
Association, um estudo sobre a restauração da
circulação sanguínea em ratos afetados por
hipertensão arterial pulmonar, a partir de células-tronco
da medula óssea transplantadas para vasos sanguíneos
pulmonares.
Nesse
mesmo evento, pesquisadores alemães da Universidade de Dusseldorf
apresentaram os primeiros resultados de transplantes de células-tronco
retiradas de medula óssea em seres humanos com problemas
cardíacos. Essa pesquisa, realizada com 40 pacientes - 20
que se submeteram ao transplante e 20 de um grupo de controle -,
indicou que três meses após o tratamento a partir de
células-tronco, a fração do sangue bombeado
pelo coração dos pacientes passou de 55% para 65%,
e o percentual de tecido cardíaco danificado passou em média
de 33% para 14%.
"O
grupo alemão trabalhou com pacientes que tinham infarto agudo.
A fração de ejeção [de sangue] dos pacientes
alemães, pelo fato de serem pacientes de infarto agudo, é
em geral maior que a de pacientes com infarto crônico",
comenta o pesquisador Antonio Carlos Campos de Carvalho, do Laboratório
de Cardiologia Celular e Molecular da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). "Mas isto não diminui de maneira
nenhuma a importância dos resultados do grupo alemão.
Os resultados obtidos na Alemanha mostram que se pode aplicar as
terapias ao infarto agudo, e assim, evitar que os pacientes evoluam
para um quadro de insuficiência cardíaca muito comum
após o infarto", acredita.
Outro
estudo que também já deu resultados com um grupo restrito
de humanos que se submeteram a transplantes foi realizado pela equipe
de Jonathan Lakey, da Universidade de Alberta, no Canadá,
com pacientes com diabetes do tipo 1. Essa doença é
causada pela redução de disponibilidade ou perda de
sensibilidade à insulina, hormônio que regula os níveis
de açúcar no sangue e é secretado pelo pâncreas.
A partir de células pancreáticas de órgãos
doados, os pesquisadores induziram a maturação in
vitro de células-tronco de ilhotas, que são as
precursoras das células produtoras de insulina. Dos 38 pacientes
que se submeteram ao transplante, após um ano, 33 estavam
livres da terapia com insulina.
As
aplicações das pesquisas com células-tronco,
no entanto, ainda são restritas em relação
a seres humanos, e além disso os tratamentos já disponíveis
são caros e nem sempre dão resultado positivo. Em
novembro de 2003, a Associated Press noticiou a morte de
um garoto de quatro anos de idade na Califórnia, nos Estados
Unidos, uma semana após ele ter recebido o transplante de
células-tronco retiradas do cordão umbilical de um
recém-nascido. O garoto sofria de síndrome de Sanfilippo,
uma doença rara que causa em crianças a perda gradativa
da capacidade de falar e andar. Seus pais conseguiram levantar através
de doações e do seu seguro de saúde cerca de
US$ 1 milhão para financiar as pesquisas no Duke University
Medical Center. Os pesquisadores dessa instituição
afirmam que já haviam feito esse mesmo transplante em 11
crianças com síndrome de Sanfilippo nos últimos
três anos, e seis delas, segundo eles, passam bem.
Os
pesquisadores, em geral, são cautelosos quanto à previsão
de quando os avanços na pesquisa vão poder ser aplicados
com segurança em tratamentos de humanos. "Apesar dos
grandes avanços atuais, o campo de células-tronco
ainda está em estágio inicial", comenta Ping
Wu, da Universidade do Texas, nos Estados Unidos. "Nós
esperamos que o uso de células-tronco venha a se tornar uma
das melhores formas de cura de certas doenças, mas eu penso
que ninguém sabe ao certo quando isso pode acontecer",
opina Jong-Hoon Kim, do National Institute of Neurological Disorders
and Stroke, também dos Estados Unidos. "Uma coisa
que eu posso supor é que alguns cientistas podem usar essa
tecnologia em testes clínicos em um futuro próximo",
conclui Kim.
Entre
as pesquisas que já haviam dado resultado em anos anteriores,
em 2002, Jong-Hoon Kim e sua equipe publicaram o resultado de um
estudo no qual geraram uma classe específica de neurônios
a partir da cultura in vitro de células-tronco embrionárias.
Os neurônios gerados foram usados para reverter sintomas de
mal de Parkinson em ratos. Na ocasião, os pesquisadores defenderam
que as células-tronco embrionárias seriam capazes
de gerar tipos de células especializadas, que por sua vez,
seriam terapeuticamente eficazes em animais.
"Células-tronco
de embriões humanos, no entanto, são diferentes de
células-tronco embrionárias de ratos no que diz respeito
à morfologia, métodos de cultura e o seu comportamento",
disse Kim à ComCiência por e-mail. "Além
do mais, existem algumas diferenças mesmo entre linhas de
células embrionárias humanas, dependendo de sua origem",
acrescentou. "Apesar desses problemas, há vários
cientistas que estão trabalhando com células-tronco
embrionárias humanas em todo o mundo e eles estão
conseguindo muitos resultados positivos para resolvê-los",
afirmou.
Outra
equipe do mesmo instituto de pesquisa norte-americano, liderada
por Eva Mezey, apresentou em 2003 a hipótese de que alguns
tipos de células da medula óssea - que os pesquisadores
supõem sejam células-tronco - poderiam entrar no cérebro
humano e produzir novos neurônios. Essa hipótese foi
levantada a partir de um estudo em que os pesquisadores examinaram
os tecidos do cérebro retirados na autópsia de quatro
pacientes que haviam recebido transplante de medula óssea
e sobrevivido por até nove meses. Mezey e seus colaboradores
supõem que a irradiação ou algum outro tratamento
recebido pelos pacientes pode ter facilitado a entrada das células
no cérebro. Os pesquisadores verificaram que nos dois pacientes
mais jovens estavam as áreas do cérebro com o maior
número de neurônios derivados da medula. Mas eles não
conseguiram ainda determinar que fatores de crescimento ou outros
sinais induzem as células da medula óssea a entrar
no cérebro e produzir neurônios.
Na
Universidade do Texas, nos Estados Unidos, a equipe de Ping Wu também
já havia apresentado em 2002 resultados de experimentos com
células-tronco embrionárias isoladas do sistema nervoso
central e transplantadas em ratos adultos, que apontaram a possibilidade
de tratamentos futuros para doenças neurodegenerativas. Segundo
os pesquisadores, o maior obstáculo, até então,
é que a maioria das células-tronco isoladas do sistema
nervoso central de adultos ou embriões não se diferenciavam
em neurônios quando transplantadas em áreas não-neurogênicas
do sistema nervoso central de um adulto.
O laboratório
de Wu desenvolveu um procedimento in vitro que induz as células-tronco
neurais humanas a iniciar sua diferenciação até
um certo estágio. "Elas podem transformar-se em tipos
específicos de neurônios, de acordo com o local onde
são transplantadas", explica Wu. "Por exemplo,
elas se tornam neurônios motores quando transplantadas para
a medula espinhal", completa. Antes de iniciar os testes com
humanos, os pesquisadores ainda estudam se os neurônios gerados
são capazes de liberar neurotransmissores e se não
há formação de tumor a partir das células-tronco
embrionárias implantadas nas cobaias.
Outro
estudo com células-tronco embrionárias que gerou resultados
promissores em 2002 foi realizado pela equipe liderada por Clare
Blackburn, da Universidade de Edimbugo, no Reino Unido. Os pesquisadores
implantaram um tipo específico de célula-tronco epitelial
em ratos com deficiência na produção de glóbulos
brancos, o que resultou na recuperação dos níveis
das células de defesa desses animais. Essa pesquisa gerou
perspectivas para o desenvolvimento de novos tratamentos para problemas
no sistema imunológico e melhora nos resultados de transplantes
em pacientes com leucemia. Mas ainda é preciso estabelecer
se essa célula específica pode ser encontrada em humanos
e ser usada para regenerar a produção de glóbulos
brancos.
Na
defesa de estudos como esses, os pesquisadores Stuart H. Orkin e
Sean J. Morrison, do Howard Hughes Medical Institute, dos
Estados Unidos, em artigo publicado na revista Nature em
2002, observam que as células-tronco coletadas de tecidos
de adultos são mais restritas que as embrionárias
em seu potencial de desenvolvimento e capacidade de proliferação.
Eles apontam como exemplo as células-tronco hematopoiéticas
- ligadas à formação e desenvolvimento de células
sanguíneas - que formam todo tipo de célula sanguínea
in vivo, mas proliferam pouco em cultura in vitro.
"Estudos recentes têm levantado a possibilidade de que
algumas células-tronco adultas podem restaurar células
fora do seu tecido de origem. No entanto, esses resultados são
controversos e têm se demonstrado em geral de difícil
reprodução", afirmam.
É
o que aconteceu, durante um bom tempo, em relação
às pesquisas que tentavam diferenciar células do músculo
cardíaco em cultura in vitro. Em 1999, Shinji Makino
e sua equipe da Universidade de Keio, no Japão, relataram
no Journal of Clinical Investigation ter conseguido essa
diferenciação a partir de células-tronco hematopoiéticas.
Antonio de Carvalho, da UFRJ, explica que a capacidade das células-tronco
hematopoiéticas e neurais de gerar diversos tipos de células
- tecnicamente chamada de pluripotencialidade - permitia supor que
essas células, se cultivadas em ambiente adequado, poderiam
originar células cardíacas. "Vários laboratórios,
inclusive o da UFRJ, tentam desde então, sem sucesso, reproduzir
os resultados da equipe de Makino", conta.
"O
sistema hematopoiético, porém, não é
a única fonte de células-tronco para os transplantes
cardíacos", emenda. O laboratório da UFRJ, que
iniciou em 2000 um projeto de pesquisa com o objetivo de transplantar
células-tronco para corações submetidos a infarto
experimental, já conseguiu - ao lado de muitos outros laboratórios
no mundo - isolar e cultivar por longo período células
de medula óssea de ratos, induzindo-as a se diferenciar em
células musculares cardíacas. O primeiro relato que
descreve a diferenciação de células-tronco
da medula óssea em músculos cardíacos, em camundongos
infartados, foi publicado na revista Nature em abril de 2001,
pela equipe de Donald Orlic, da Faculdade de Medicina de Nova York.
Apesar
de ser um campo de pesquisa ainda em estágio inicial, como
diz Wu, e não ser possível precisar em quanto tempo
trará resultados em tratamentos de humanos, como afirma Kim,
as pesquisas com células-tronco continuam avançando
a cada ano, e cada nova descoberta impulsiona novas investigações
em laboratórios de todo o mundo. Independente do avanço
da pesquisa, o debate ético continua. E vice-versa.
(RC)
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