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Faltam leis, sobra polêmica

A primeira coisa que chama atenção quando buscamos por leis e regulamentações no campo da biotecnologia e genética é justamente a falta de leis e regulamentações específicas. No caso da manipulação de celúlas-tronco, não é diferente. Apesar desse tipo de célula já ser utilizada em pesquisas e terapias na maioria dos países do mundo, uma minoria deles possui uma legislação voltada ao tema.

No Brasil, a situação se repete, ainda não existe uma lei que trate especificamente de pesquisas envolvendo células-tronco. Até pouco tempo, o que impedia a realização de pesquisas com células-tronco retiradas de embriões era uma disposição na Lei de Biossegurança (Lei nº 8.974/95) em que havia a proibição a "toda e qualquer pesquisa que implique em manipulação de células germinais humanas, bem como a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servirem como material biológico disponível".
A aprovação pela câmara dos deputados no dia 5 de fevereiro, do substitutivo da Lei de Biossegurança (Lei nº 2.401) não trouxe alterações significativas nesse aspecto. A nova lei, que ainda precisa ser aprovada pelo senado, continua proibindo a manipulação de embriões humanos, apesar de abrir algumas exceções para "intervenção em material genético humano in vivo" o que poderia possibilitar, dependendo da interpretação da lei, pesquisas com células-tronco embrionárias.

Para Adriana Diaféria, professora de direitos difusos e coletivos da Pontíficia Universidade Católica (PUC) de São Paulo "o que se tem visto é uma diversidade de projetos de lei que tratam desta questão levando em consideração diversos aspectos, muitas vezes conflitantes entre si, o que dificulta, sobremaneira, uma regulamentação adequada sobre o assunto". Na opinião de Diaféria, a regulamentação de novas tecnologias é difícil, principalmente, por causa da incerteza sobre os efeitos causados pela utilização desses novos procedimentos. "Na verdade, a elaboração da legislação ocorre na medida em que demandas concretas no desenvolvimento das atividades nesses novos campos impõem situações de conflito que necessitam de parâmetros claros e seguros", enfatizou Diaféria.

Segundo César Jacoby, representante do Ministério da Saúde na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), a criação de leis relacionadas ao uso de células-tronco embrionárias vem acontecendo de forma lenta, não apenas no Brasil, mas em todo mundo. "Seria impossível acreditar que o processo de construção de uma norma seguiria a mesma velocidade das descobertas científicas. Mesmo porque, o que é tido como verdade hoje, amanhã, pode ser reconsiderado, e aí como ficaria o sistema legal dos países?", argumentou Jacoby.

Além das dificuldades de regulamentação que acompanham os temas ligados à biotecnologia, quando falamos da criação de leis voltadas ao uso de células-tronco é preciso considerar que a procedência dessas células influencia diretamente na questão legal. Assim, ao mesmo tempo que existe uma resolução que autoriza o uso de células-tronco retiradas de sangue de cordão umbilical ou placenta, no caso das células-tronco retiradas de embriões a questão fica mais complexa, girando em torno da legitimidade para permissão das pesquisas já que, nesse caso, implicaria na perda do embrião.

Utilização de células-tronco "adultas"
Mesmo sem uma legislação específica as pesquisas e terapias com células-tronco "adultas" - retiradas do cordão umbilical, placenta e medula óssea - são realizadas no país.

No Brasil existem atualmente oito Bancos de Sangue de Cordão Umbilical e Placentário (BSCUP) (leia reportagem nesta edição). Nesse locais, o sangue contendo células-tronco retiradas do cordão umbilical e placenta de doadores é armazenado para utilização em terapias e pesquisas.

Os BSCUP possuem normas de funcionamento definidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Entre elas estão: a gratuidade da doação; autorização do doador para descarte do material depois do prazo considerado seguro para utilização; vinculação de todo banco de sangue a um serviço de hemoterapia ou de transplante de células progenitoras hematopoéticas; possuir um manual técnico operacional com detalhes de todos os procedimentos de seleção de doadoras, coleta, transporte, processamento de células, armazenamento, liberação, descarte e registros.

No dia 18 de janeiro, o prazo estipulado pela Anvisa para que os bancos de sangue se adequassem às suas normas terminou. Mas, segundo a entidade, ainda não houve tempo para estimar quantos já se adequaram.

Pesquisa esbarra no status moral do embrião
A manutenção de um dispositivo legal que, de forma geral, proíbe o uso de embriões, deixou muitos movimentos favoráveis à legalização decepcionados com o que consideram ser uma barreira para realização de descobertas científicas que podem salvar vidas.

"Faltou compaixão e ética na votação", declarou Andréa Bezerra de Albuquerque, diretora presidente do Movimento em Prol da Vida (Movitae), uma organização que tem com principal bandeira a luta pela legalização do uso terapêutico de células-tronco embrionárias.

No entanto, essa questão ainda não parece estar perto de um consenso moral e legal efetivo. Uma das grandes polêmicas que envolvem o tema, está fora do âmbito da biossegurança, é a definição do status moral do embrião. Ou seja, a necessidade de definir a partir de que momento o embrião passa a ser considerado um ser humano. Essa questão influencia na legalidade acerca das pesquisas com embriões, já que no campo jurídico, tanto a vida, como a dignidade da pessoa humana são considerados bens jurídicos passíveis de proteção.

"Não podemos analisar a questão somente sob a ótica da biossegurança. É preciso observar outros aspectos e princípios constitucionais que protegem a vida humana, em todas as suas formas. Isso sem mencionar a indefinição acerca da natureza jurídica do embrião humano", enfatizou Diaféria. Segundo ela, a regulamentação sobre permissão do uso de células-tronco embrionárias não deveria ser realizada dentro da Lei de Biossegurança. "A Lei de Biossegurança se propõe a tratar de OGM e seus derivados, a regulamentação do uso de embriões para fins terapêuticos dentro desse espaço fica deslocada e contribui para existência de ambigüidades na lei".

Já na opinião da advogada do Movitae, a legalização do uso de células-tronco embrionárias não entraria em contradição com o direito à vida. "Estamos falando de um embrião de até 14 dias, no máximo, são apenas 100 ou 200 células que não estão num útero. Para nós a moralidade está em salvar a vida de milhares de pessoas que morrem por causa de doenças degenerativas"

Indefinição legislativa é internacional
A complexidade dessa questão pode ser demonstrada através da dificuldade que várias nações enfrentam para definir sua postura e criar leis sobre o tema.

Dos países que integram a União Européia (UE), a Inglaterra foi o primeiro a autorizar a utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas, em 2000. Mas, até hoje, apenas Finlândia, Grécia, Suíça e Holanda seguiram seu exemplo.

A maioria dos outros países que integram a UE não possui legislação específica sobre o tema. Em outros, a utilização de células-tronco embrionárias é permitida apenas em casos muito particulares, como o da fertilização in vitro.

Em laboratórios em Cingapura, Taiwam e Coréia do Sul já são realizadas pesquisas com células-tronco embrionárias, mas a legislação sobre o assunto apenas começa a ser discutida. O governo da China foi pioneiro ao aprovar, em fevereiro deste ano, as primeiras regulamentações permitindo pesquisa com clonagem de embriões humanos para retirada de células-tronco.

Nos Estados Unidos, a utilização não é totalmente proibida (leia reportagem nesta edição) e uma nova lei federal sobre o assunto está sendo debatida no Congresso. No entanto, os recursos federais para esse tipo de pesquisa são bastante controlados. Apenas dois estados, Califórnia e New Jersey possuem leis permitindo a utilização de células-tronco embrionárias derivadas de reprodução assistida - e que seriam descartadas.

Ao que tudo indica, como afirmou Diaféria, esse assunto ainda terá que ser muito discutido, porque a importância de leis específicas e claras nesse campo é fundamental. Como acrescentou Jacoby, "a criação de normas não tem o poder de resolver todos os problemas, isso é certo, mas a regulamentação pode justamente acabar com posições ambíguas e ser um fator inibidor da má utilização dos procedimentos, enquanto não há uma lei que trate do tema, corre-se o risco de uma 'permissão geral'".

(MT)

 
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Atualizado em 10/02/2004
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